Revolução Rasta: Toots & the Maytals e os 50 anos de “Funky Kingston”

Como o disco mais aclamado da banda jamaicana encabeçou um dos maiores gêneros musicais de protesto da história

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Fotos: Reprodução

A década de 1970 na Jamaica foi conturbada. Autointitulado socialista, o então primeiro Ministro Michael Manley realizava reformas importantes – foi ele quem empurrou pautas relacionadas ao aumento da presença do povo em espaços governamentais, além de avançar em temas como reforma agrária e voto feminino. No entanto, Manley governou durante um dos períodos mais violentos da história do país, onde se estabelecia uma disputa sangrenta: de um lado, o People’s National Party (PNP), partido de Manley que declarou apoio, por exemplo, a Fidel Castro e defendia a construção de um socialismo jamaicano; do outro, o Jamaica Labour Party (JLP) ou Partido Trabalhista da Jamaica, que fazia uma oposição de extrema-direita (financiada pela CIA) ao governo de Manley. Gangues armadas dos partidos geraram conflitos que levaram à morte e à miséria de muitas pessoas, criando um ambiente de guerra civil que obrigou o presidente a decretar estado de exceção.

Mas o que isso tem a ver com Toots & The Maytals e o clássico disco Funky Kingston? O panorama histórico é parte importante para compreendermos o contexto de popularização do reggae a nível mundial – não apenas enquanto gênero musical que prega paz, amor e fraternidade, mas também enquanto canção de protesto. Esses ideais estão, inclusive, relacionados ao rastafarianismo, movimento religioso de matriz africana surgido na Jamaica por volta da década de 1930 e que tem como profeta o último imperador da Etiópia, Haile Selassie I. Muitas das práticas, crenças e percepções de mundo dos rastafári estão incutidas no reggae, com aparições e menções frequentes à bandeira do Império Etíope contendo as cores verde, amarelo e vermelho, além da imagem do Leão de Judá; bem como referências ao uso de maconha, planta ritualística e sagrada dentro da cosmovisão rastafári. No entanto, a religião também reivindica o pan-africanismo, e acredita na ideia de que os descendentes de africanos fora de África devem poder voltar para sua terra, o que dá ao rastafári não apenas uma dimensão religiosa, mas também o caráter de movimento político.

Colocando o reggae em reggae music

O grupo originalmente se chamava The Maytals e consistia num trio vocal formado em Kingston ainda no começo dos anos 1960. Foi a partir deles que o termo reggae se popularizou, aparecendo pela primeira vez na canção “Do The Reggay”, de 1968, época em que o gênero ainda era pouquíssimo conhecido fora de seu país de origem. Em 1972, isso começa a mudar: o apelido do vocalista Frederick “Toots” Hibbert passou a encabeçar o nome da banda e, naquele período, o grupo contribuiu com duas canções para a trilha sonora do filme The Harder They Come, protagonizado por Jimmy Cliff. O filme ficou marcado como grande lançamento do reggae no audiovisual, fazendo com que o gênero e a cultura jamaicana se tornassem mundialmente conhecidos. Ao final do mesmo ano, o grupo grava a primeira versão do álbum Funky Kingston, que seria lançado somente em 1973 pela Dragon Records na Jamaica e no Reino Unido. Tamanho era o desconhecimento sobre o gênero que, na época do lançamento do disco, a International Times o classificou como “rock and roll jamaicano”.

Funky Kingston abarca diferentes perspectivas a respeito da dura realidade da classe trabalhadora jamaicana, incluindo a difícil vida no campo, mas também abre espaço para a ousadia de, apesar de tudo, celebrar a vida. Há, entretanto, uma questão que complica a tarefa de analisar as canções do disco: em 1975, foi lançada outra versão nos EUA que se popularizou imensamente, mas que deixou de lado a seleção de canções feita pela banda e acabou, sem querer criando, uma espécie de greatest hits do grupo. Ainda assim, ambas as versões trazem canções maravilhosas que merecem ser celebradas – seja estando apenas em uma ou outra versão ou, ainda, nas duas.

A faixa que dá nome ao disco é uma clara alusão ao funk estadunidense dos anos 1960 nas vozes de James Brown e The Temptations, especialmente na forma como a música é cantada: a faixa é repleta de gemidos e alusões sexuais, e Toots solta a voz de maneira áspera, rasgada e enérgica. E ainda que o ritmo seja claramente o gingado sincopado do reggae, o piano e os instrumentos de sopro aproximam ainda mais a canção do estilo americano. Além disso, Toots faz referência à América e fala sobre tocar essa canção de norte a sul, de leste a oeste.

Outra canção realiza um retrato fiel da realidade jamaicana dos anos 1970 e desbanca o preconceito de que letras de reggae seriam inofensivas, ingênuas ou de que tratam apenas de temas relacionados à paz, amor e o consumo de maconha. Trata-se da belíssima “Time Tough”, que fala sobre o brutal sentimento de impotência diante do desemprego. O eu lírico relata insônia, diz que não consegue lidar com seus próprios sentimentos e que ainda por cima tem de enfrentar cada dia com suas demandas financeiras numa sociedade que lhe cobra dinheiro, mas não lhe oferece emprego. A música nos sensibiliza para o fato de como tempos economicamente difíceis e situações geopolíticas de subdesenvolvimento nos fazem ficar sem perspectiva alguma. Apesar disso, é impressionante a forma como a energia do reggae permite que a melodia seja alegre e dançante, quase como uma sátira da própria realidade que nos ergue para seguirmos em frente.

Há ainda “In The Dark”, que explora principalmente referências ao soul e à música gospel, tanto na incorporação de corais femininos quanto nas letras, que tratam da escuridão na qual por vezes nos perdemos. A canção ainda evoca o amor incondicional a Deus, escancarando a inspiração em grandes nomes como Aretha Franklin ou os potentes vocais das The Supremes, mas também revelando a relação profunda do vocalista com a música gospel por conta de sua trajetória de vida. Seus pais eram adventistas do sétimo dia, o que fez com que Toots tivesse contato com o gênero muito cedo na vida. Isso porque no Caribe como um todo há muitas comunidades evangélicas que se encontram musicalmente em torno desse estilo, especialmente pelo fato de existirem também em comunidades negras.

Por que falar em uma “Revolução Rasta”?

Apesar de não ter se tornado tão popular e emblemático quanto The Wailers – de Bob Marley e Peter Tosh –, Toots & the Maytals fez parte da vanguarda a alçar os primeiros voos internacionais do reggae. A banda espalhou o gênero a uma audiência muito maior do que já se havia visto, tirando o reggae do lugar de ritmo local para levá-lo ao resto do planeta e elevá-lo enquanto um dos estilos musicais mais populares do mundo – passando a ser produzido não apenas na Jamaica, mas em diversos países. (Inclusive no Brasil, que tem a sua própria capital nacional do reggae: São Luís, no Maranhão). A partir daí, a mensagem de paz, amor, fraternidade e resistência negra intrínseca ao gênero ensurdeceu os ouvidos da branquitude ignorante, que não compreendia seu privilégio de raça e sua “vantagem” colonial.

Os 50 anos de Funky Kingston devem ser lembrados não apenas pela qualidade, originalidade e energia dos repertórios de ambas as versões, mas também porque foi força motriz de uma verdadeira revolução da consciência humana diante da realidade social jamaicana e global. Talvez o disco não tenha operado uma revolução política propriamente dita no sentido marxista, de que levou as massas às ruas e tirou o poder da classe dominante, mas com certeza emplacou uma grande presença internacional da cultura, do povo e da situação política jamaicana. Esse importante movimento ajudou a tirar os holofotes dos hippies brancos nos Estados Unidos, que defendiam o fim da guerra do Vietnã enquanto usavam ácido e viviam o estilo de vida americano, e os aponta para um problema real de violência e miséria. Um quadro que diz respeito à maioria da população da Jamaica, mas que também, em muitos sentidos, reflete a situação do negro periférico no Sul Global.

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