Rumba chavista e a música socialista venezuelana

Um giro por Caracas mostrou que as cores e os sons da Venezuela vão da salsa ao reggaeton, e do EDM à rumba chavista, estilo popular entre a juventude

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Fotos: Aminta Zea e Leo Gimenes

Uma investigação histórica criteriosa nos mostra que o socialismo venezuelano é um socialismo do século 21. O que isso significa? Significa dizer que esta foi a primeira – e até agora a única – experiência socialista consolidada após a virada do milênio. Inicialmente com táticas de guerrilha e posteriormente com a Revolução Bolivariana de 1999, o país elegeu democraticamente como representante o ex-presidente Hugo Rafael Chávez Frias: guerrilheiro, preso político e presidente da Venezuela de 1999 a 2013. O chavismo encontra hoje representantes nos mais variados setores da sociedade – podemos citar, por exemplo, os trabalhadores fabris, os camponeses, os povos originários, a classe artística e, é claro, a juventude. Estes últimos dois setores, como sabemos, representam o epicentro da produção cultural nacional e das músicas que mais tocam em rádios, festas, botequins e eventos políticos.

“A Revolução é um feito profundamente cultural, ou não é”

Hugo Chávez, na virada do século, assumiu a presidência de um país que vivia um colapso econômico de crescimento desde os anos 1980 e 1990. A desigualdade econômica na Venezuela também se agravou à época, com pacotes neoliberais financiados pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) que visavam responder à enorme dívida que pairava sobre a privatização de empresas estatais, redução dos subsídios do petróleo e a descentralização do sistema político venezuelano. Certamente, se fossem pelos neoliberais, o próprio ar venezuelano teria sido privatizado.

Um dos papéis que o governo assumiu a partir de 1999 foi o da reinvindicação nacionalista e popular da história do país, a começar pela ressignificação da figura de Simón Bolívar, herói nacional e cujo legado mundial é o da unidade e libertação da América Latina, além de ter sido um dos responsáveis pela independência venezuelana. Foi durante o governo de Chávez que o nome do país passou a ser República Bolivariana da Venezuela, por exemplo. Essa recusa às tendências neoliberais mundiais da virada do milênio resultou na emergência da chamada “venezolanidad” ou venezuelanidade. A cultura, antes da Revolução Bolivariana de 1999 que elegeu Chávez, era vista como uma “guinda de la torta” – ou a cereja do bolo, o que significa dizer que a cultura popular era invisibilizada aos olhos da burguesia e era um privilégio para poucos. Numa nação que emergiu da argila de grandes libertadores, não é de se surpreender que o chavismo, num contraste gritante com as imagens distorcidas veiculadas por uma mídia imperialista e tendenciosa, é uma afirmação de vida, educação e cultura.

A morte de Chávez em 2013 – que levou a um luto de mais de cinco dias na capital do país – consolidou o chavismo enquanto ideologia política resultante não apenas de seu legado. Trata-se de uma continuação do projeto bolivariano, maior do que a própria figura do ex-presidente. Uma década se passou e em meio a tantas crises econômicas geradas por sanções criminosas e grandes desafios, encontramos venezuelanos repetindo o canto “¡Chávez no murió, se multiplicó!” ou “Chávez não morreu, se multiplicou!” nas tribunas anti-imperialistas locais. Com mais de novecentas sanções impostas contra o povo venezuelano e um atraso econômico em grande parte decorrente da inflação global e da COVID-19, o investimento na cultura segue entre prioridades dessa nação socialista.

Porque de fato, se não é possível estabelecer trocas comerciais com os países mais poderosos do mundo, o povo inevitavelmente apelou para a criatividade; a Venezuela, de muitas maneiras, dominou a arte de “fazer bicos”. Projetos de longa data como o Misión Cultura – ou Missão Cultura – e a Orquestra Sinfônica Simón Bolívar ainda são insuficientes para conter, por exemplo, a grande quantidade de edifícios abandonados por conta de dificuldades econômicas. Ainda assim, com a Constituição de 1999 em mãos, ao povo foi concedido pelo governo o poder de revitalizar estruturas inteiras, como o Casino Caracas: um edifício modernista feito em concreto e localizado na Avenida Urdaneta, no bairro central La Candelaria, em Caracas. O espaço hoje promove arte contemporânea, apresentações musicais ao vivo, festas e até competições de skate.

La Rumba

O reggaeton – de origem porto-riquenha e panamenha em meados dos anos 1980 – e o chamado neo perreo – termo popularizado pela cantora chilena Tomasa del Real nos anos 2010 – figuram hoje entre os estilos mais escutados no mundo. Dentre alguns representantes atuais, temos Bad Bunny, J Balvin, Ms Nina, Anitta, Kali Uchis, além de outros nomes latino-americanos já bastante conhecidos. Na Venezuela, assim como em outros países culturalmente caribenhos, existe a rumba: um gênero já antigo, mas que foi se modificando com o tempo e hoje mescla reggaeton, EDM, trap e música nacionalista numa combinação única.

O termo “rumba” é também gíria recorrente para se referir a festas, e, ao vagar pelas ruas boêmias de Caracas, fica evidente que o povo venezuelano é movido pela música e pela dança. Numa breve caminhada pelas ruas de San Agustín del Sur escuta-se salsa por toda parte e vê-se pessoas dançando dentro dos bares e pelas ruas em frente a carros tunados com soundsystems. É bem comum que nessas partes algum estranho te convide despretensiosamente a dançar. Além da salsa, que também toca dentro das estações de metrô da cidade, se ouve em Sabana Grande as tradicionais llaneras, além dos ritmos eletrônicos que se fazem presentes nas caixas de som dos botecos, lojas, camelôs, escolas, universidades e táxis. Com tanto som e ritmo por todas as partes, foi surpreendente não termos escutado maracas e congas ao passarmos pela imigração no aeroporto.

Há um canal no YouTube chamado ElectroChávez, que parece não atribuir autoria às canções – o que, suspeitamos, é fruto da cultura coletivista que emergiu e que produz a música chavista hoje. Uma das canções intitulada “Rumba Chavista” possui a seguinte letra:

Aquí llegamos los socialistas

Pa’ que se prenda la rumba chavista

 

Quien dice que chavista no baila

Quien dice que chavista no goza

Quien dice que chavista no baila

Socialismo es la cosa

Aqui chegamos os socialistas

Pra bombar a festa chavista

 

Quem disse que chavista não dança

Quem disse que chavista não curte

Quem disse que chavista não dança

Socialismo é a coisa

Ainda no mesmo canal há a canção “Pepas Chavista”, bastante dançante, com muitos elementos eletrônicos e vocais mais melódicos. A música é uma declaração de amor ao socialismo e a uma possibilidade de política mais alegre e festiva. Há inclusive menção ao PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), ao qual pertencia Chávez e atualmente faz parte o presidente Nicolás Maduro.

No me importa lo que de mí se diga

Yo sí soy chavista, rumbero y buena vibra

La vida es una, disfruta el momento

Seguimos venciendo, que digan lo que quieran

Sonriendo, vamos construyendo el sueño de Hugo Chávez con fuerza y energía

 

Y siguelo

La rumba ya se prendió

Y siguelo

Con el PSUV voy yo

 

Ven pa’ cá para que sepas

Como los chavistas prenden una fiesta

 

Sube la mano que nos vamos pa arriba

Toda la calle la tenemos prendida

Los socialistas estamos con alegría

Luchando por la patria mía

 

Y vamonos

Como el PSUV enseñó 

Y vamonos

La rumba ya se prendió

Y siguelo

Não me importa do que de mim se diga

Eu sou sim chavista, festeiro e gente boa

A vida é uma só, desfrute o momento

Seguimos vencendo, que digam o que queiram

Sorrindo, vamos construindo o sonho de Hugo Chávez com força e energia

 

E seguimos

A festa já bombou

E seguimos

Com o PSUV eu vou

 

Vem pra cá para que você saiba

Como os chavistas bombam uma festa

 

Joga a mão pro alto que vamos pra cima

Toda a rua está festejando

Nós socialistas estamos com alegria

Lutando pela minha pátria

 

E vamos

Como o PSUV ensinou

E vamos

A festa já bombou

E seguimos

Outra canção que mescla ritmos tradicionais, EDM e reggaeton foi produzida pelo DJ Yonaiker Jhosany e se chama “Viva Venezuela”. Nessa faixa extremamente dançante foram sampleados dois versos de uma canção venezuelana antiga de mesmo título. Trata-se de uma composição lançada em 1982 pelo grupo Un Solo Pueblo. Criado em 1976, o grupo de música tradicional afro-venezuelana contava com muitos membros por todo o país, dada a proposta de ser um coletivo que abarcasse representatividade e riqueza cultural a nível nacional. (“Viva Venezuela, mi patria querida / Quien la libertó, mi hermano, fue Simón Bolívar” – “Viva Venezuela, minha pátria amada/ Quem a libertou, meu irmão, foi Simón Bolívar”).

Quando discutimos música e censura, é muito comum que a aversão ao socialismo e a governos comunistas apareça. Em parte porque ela de fato ocorreu: uma pessoa não podia escrever uma peça ou um livro sobre qualquer tema, muito menos tocar qualquer tipo de música na União Soviética, por exemplo. Porém, as condições materiais do nosso hemisfério são diferentes e nunca tiveram a pretensão de copiar modelos soviéticos, já que inventamos nossas próprias formas de operar dentro da cultura: Cuba, que sofre há mais de 60 anos um bloqueio econômico, já demonstra nuances em relação à censura e, ainda assim, segue exportando sua cultura musical para o mundo inteiro.

O caso da Venezuela é específico porque, assim como mencionamos no início desse texto, trata-se de um socialismo do século 21. Na era da internet a censura é mais rarefeita, especialmente porque o controle de conteúdo é mais difícil, de modo que é possível escutar no YouTube músicas antichavistas e que falam diretamente contra o governo. No entanto, uma pergunta interessante que contrapõe essa discussão é: quais são as censuras não ditas do capitalismo neoliberal? Quando pensamos sobre isso, fica mais claro o motivo pelo qual as rumbas chavistas são produzidas, e porque incorporam gêneros e estilos musicais da juventude, criados muitas vezes por essa mesma juventude. Isso porque o neoliberalismo se vende como o ápice da liberdade humana, ao mesmo tempo em que cerceia a popularidade e alcance de artistas de todos os campos da cultura. Podemos concluir, portanto, que as pessoas veem ainda hoje em Chávez fonte de inspiração, e colocam na música a paixão pela construção de um socialismo sul-americano, bolivariano, anti-imperialista – e, sobretudo, festeiro.

Uma playlist para introduzir a rumba chavista, que engloba gêneros e estéticas diversas na composição do que podemos considerar hoje a música socialista venezuelana.

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