Savannah: a festa comandada por imigrantes africanos na capital mais ao sul do Brasil

A festa itinerante fortalece seu nome no mapa cultural de Porto Alegre com afrobeats, amapiano e kuduro ecoando pelas caixas de som

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Fotos: Afrovulto

Era um domingo quente e ensolarado em pleno inverno gaúcho. Daqueles que servem de alívio para o presente e de ansiedade climática em relação ao futuro que nos aguarda. Me arrumei, subi na bicicleta e fui em direção ao endereço onde os organizadores da Savannah faziam um churrasco no terraço. Esse churras, a princípio, começaria às 14h. Mas Paulus Tupopila, um dos criadores da festa, já havia me antecipado pelo WhatsApp que, “como todo mundo é atrasado”, os convidados iriam “chegar pelas 15h”. Perguntei: “Mal de brasileiro?”. Com bom humor, ele garantiu: “Africanos são pior”.

Talvez isso explique por que a edição que colei num sábado chuvoso foi lotar por volta da 1h da manhã, mesmo com os trabalhos iniciados às 22h. Logo na entrada, depois de dar o nome na lista e passar pelo guarda-volumes, cruzei com um painel para fotos estampando o logo do projeto e seu slogan: “The True African Xperience” (“A Verdadeira Experiência Africana”, em tradução livre). Nas palavras de Bryan Alhassan, cofundador do projeto, os sentimentos de alegria e felicidade são os pilares. Paulus detalha:

– A gente quer trazer [pra cá] o que está acontecendo na África hoje em dia. Se uma pessoa que foi pra Savannah sair daqui de Porto Alegre e for pra Namíbia, Gana ou Angola, vai poder chegar lá e dizer ‘Eu não me sinto tão distante. Eu já vivi isso’.

(Foto: Alisson Batista)

Savannah x Pampa

Ambos se mudaram para Porto Alegre por conta dos estudos: Paulus, que nasceu na Namíbia, veio para estudar Engenharia Civil; Bryan, que é de Gana, para cursar Administração. Além da raça, do continente e da condição de imigrante, os amigos têm em comum o interesse nos negócios e a skin festeira. “A gente se conheceu em festa, falava de negócios. Eu sempre tive a ideia de fazer uma festa, Paulus também”, retoma Bryan.

O continente africano está no centro da Savannah que, por sua vez, está a serviço do empoderamento negro. A virada de chave para o conceito se deu durante a formatura de um amigo, como me conta Paulus: “Alugamos uma casa e fizemos essa comemoração. Aí deu aquela luz: estamos aqui, escutando nossa música, com os nossos irmãos – muitas pessoas africanas vieram. E fazia tempo que a gente não se sentia tão em casa. Sentimos que esse era o rolê”. Assim, em agosto de 2022, pegando carona no aniversário de Bryan, a primeira edição da festa aconteceu.

Paulus, DJ Jonboss e Bryan, em edição realizada em novembro (Foto: Gui OS)

Imigrantes dos mais diversos países africanos e suas culturas são os protagonistas do projeto que cada vez mais estabelece diálogos com os povos de diáspora presentes na cidade: negros brasileiros e de outras regiões do mundo, como os haitianos que também a frequentam. Para além dos povos originários e da população negra que habita a região Sul do país, os fluxos migratórios do Brasil nos últimos anos têm transformado ainda mais a paisagem local. Pela via do trabalho, venezuelanos e haitianos chegam à região, segundo o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra).

(Foto: Afrovulto)

Nos dados sobre o 1º quadrimestre de 2023, o Rio Grande do Sul já figura como o quarto estado brasileiro que mais recebeu trabalhadores imigrantes no mercado formal, com 6,9 mil admissões. Um olhar para a década de 2010 nos ajuda a traçar esse movimento de expansão de populações imigrantes e refugiadas para o país – comportamento que se espelha no contexto gaúcho. O DataMigra aponta que, entre 2010 e 2022, o estado registrou a entrada de 5.466 mil africanos e 23.863 mil centro-americanos e caribenhos (SisMigra). Senegaleses representam 67% do primeiro grupo; haitianos, 95% do segundo. No campo das Solicitações de Reconhecimento da Condição de Refugiado, o RS recebeu 206 pedidos vindos do continente africano e 1.092 mil da América Central e Caribe de 2016 a 2022.

“A gente quer trazer [pra cá] o que está acontecendo na África hoje em dia. Se uma pessoa que foi pra Savannah sair daqui de Porto Alegre e for pra Namíbia, Gana ou Angola, vai poder chegar lá e dizer ‘Eu não me sinto tão distante. Eu já vivi isso’” – Paulus Tupopila

Corpo, música e território

As edições da Savannah são temáticas e acontecem de forma itinerante. Na festa de junho, o tema escolhido foi “Soweto”, homenagem à histórica cidade sul-africana. Bem antes de ser nome de grupo de pagode, o termo Soweto deriva de South Western Townships (Bairros do Sudoeste, em português). Inicialmente, foi um bairro criado em 1963 para ser a área oficial da população negra, majoritariamente pobre, na Joanesburgo em pleno regime do Apartheid. Tornou-se um importante território de articulação antirracista e palco dos principais protestos contra o sistema de segregação racial no país. Um dos fatos mais conhecidos de sua história é o massacre de Soweto, quando, em 16 de junho de 1976, uma manifestação anti-Apartheid foi reprimida com violência e assassinatos pela polícia local.

Na Soweto de cá, o legado de orgulho e identidade africana foi reverenciado. A sensação era a de que eu não estava em Porto Alegre. E assimilar que eu estava, assim como aquela manifestação cultural tão rica, me deixou admirada. O line up afrocentrado era formado pelos DJs Michel, Jonboss, d’Sousa, Kobby e Deejay B. Com influência de Brasil e África, os sets se tornaram caldeirões ao misturarem afrobeats, amapiano, R&B, kuduro, rap, drill, trap, funk e pagode. O teste de sonoridades rola solto, à medida que a temperatura da pista é aquecida a fogo baixo. Apesar do revezamento, os DJs mal saem de perto da mesa de som e com frequência assumem as controladoras de forma simultânea.

Deejay B, Koby, Michel, d’Sousa e Jonboss no front da Savannah Soweto (Foto: Alisson Batista)

“Minha pesquisa era mais inclinada para o afrohouse. Agora, o desafio tem sido tocar mais afrobeats. E ir buscando mais outras músicas dentro de África”, me explica o DJ angolano d’Sousa. Além deles, o kuduro sempre está presente nas suas apresentações e na fusão com afrohouse e funk que forma o “afrofunk”. Ele comenta: “Como os bpms estão na mesma faixa, é fácil pra misturar e fica da hora pra galera. Os africanos conhecem o ritmo, vocês, brasileiros, conhecem o ritmo, e a pista fica boa de ver”. Do funk daqui, d’Sousa menciona MC Kevin o Chris, além do clássico “Baile de Favela”, de MC João e DJ R7.

“É sobre a união, sobre a felicidade e sobre a nossa originalidade” – Bryan Alhassan

Deejay B é da ala brasileira do time. Nascido em Porto Alegre, ele faz questão de se apresentar como “cria do Campo da Tuca”, comunidade na zona leste da capital. Com o mesmo orgulho, ele me conta que é o único DJ que tocou em todas as edições da Savannah até agora. A pesquisa com a cultura Hip Hop foi fundamental para se inserir no projeto. “Eu toco hip hop desde sempre, e alguns artistas já tocavam também afrobeats, tipo Drake, Nicki Minaj, PartyNextDoor. Eu já buscava por um rap mais voltado pra África. Os meninos [Bryan e Paulus] que me apresentaram o afrobeats. Eu conhecia pelo som, mas não sabia o nome”, diz. De lá para cá, a familiaridade cresceu não só com o ritmo em ascensão, como também com a produção sonora de países como Congo e Cabo Verde, já amarrados ao seu set.

Através do som, os organizadores querem promover um ambiente de pertencimento cada vez mais diverso. “Queremos que cada país se sente acolhido, incluso. [A gente se pergunta] ‘Que música um brasileiro vai querer ouvir sábado, depois de um dia de trabalho? E uma pessoa da Namíbia? E do Sul da África? E do Norte?”, elucida Paulus.

Sentia a pista como uma tecnologia de aquilombamento. Nela, a dança era o código de acesso e sociabilidade. DJs e público, homens e mulheres, africanos e brasileiros, todos metendo dança. Mas, é fato que ela fluía com bem mais liberdade, suingue, tônus e quadril entre os frequentadores africanos, mesmo que essa parte fosse majoritariamente masculina. A todo momento, rodas de dança se formavam na pista; ora só com homens, ora só com mulheres, e na maioria das vezes, tudo misturado.

(Foto: Alisson Batista)

Algumas nacionalidades eram identificadas pela reação aos sons. Nos funks, os brasileiros se alvoroçavam. Quando Burna Boy tocava, os nigerianos sorriam com autoridade. Nos clássicos do Kuduro, angolanos gritavam, cantavam e roubavam os holofotes. Ao redor, abraços, sorrisos e copos pro alto dos organizadores e DJs, vestindo (literalmente) a camiseta da festa, entre conversas em vários idiomas.

Durante boa parte da festa, um projetor rodava cenas dos lives sets “Amapiano Balcony Mix”, do canal oficial da Major League DJz, dupla de DJs formada pelos gêmeos sul-africanos Bandile e Benele Mbere. Um movimento que parece encapsular uma festa na outra, um continente no outro. Os 15 Cº marcados pelos termômetros da cidade não faziam nenhum frio ali dentro, enquanto quem dançava se derretia em suor. Perto das 4 horas da manhã, um dos DJs, ao microfone, identifica alguns dos países de África presentes na festa: Guiné Bissau, Namíbia, Nigéria, Angola, Gana, Senegal, Cabo Verde. Em uma fala sobre tradição, convida os representantes de alguns deles para mostrar um pouco de seus países através da dança.

Cálculos em rota

Diversão, conexão entre imigrantes de países africanos e aproximação do público de Porto Alegre a essas culturas são objetivos de Bryan e Paulus com a festa desde o início. Ao longo do tempo, o propósito tem amalgamado tudo isso em uma palavra: comunidade. “É sobre a união, sobre a felicidade e sobre a nossa originalidade”, pontua Bryan. A simbologia mais bonita surge de uma lembrança que eles compartilham comigo, entre risos, sobre um rolê na casa de Paulus. Na ocasião, a quantidade de gente era tão grande que, na hora de servir a comida, foi necessário formar uma corrente em que os pratos servidos eram passados de mão em mão até o último da fila. “Isso é Savannah”, resume Paulus.

(Foto: Gui OS)

Entretanto, a experiência da Savannah “Soweto” foi marcada também por um caso de assédio a uma das frequentadoras da festa. A prevalência do público estrangeiro reverbera a hegemonia do gênero masculino entre a população imigrante. É fato que o perfil de migrantes no Brasil passa por um aumento de crianças e mulheres nos últimos sete anos, e elas já representam quase metade desse grupo. Mas os homens seguem maioria (OBMigra).

As brasileiras estavam em maior número entre as mulheres presentes na edição. A ocorrência do assédio joga luz às dinâmicas de gênero e às dinâmicas de hiperssexualização da mulher negra e da mulher brasileira que permeiam as culturas dentro do Brasil e mundo afora. O caso ganhou uma nota de repúdio na qual a organização afirma que “A festa Savannah tem como objetivo ser um espaço seguro e alegre para que todas as pessoas se sintam bem”, e que não compactua com a violência contra as mulheres.

Durante esta conversa para o Monkeybuzz, quando perguntados sobre a situação, os fundadores da festa rechaçaram o ocorrido e confirmaram que medidas para tornar o ambiente mais seguro para as mulheres estão sendo implementadas. Bryan comentou: “Nosso propósito é trazer as pessoas para um ambiente que eles se sentem que estão em casa, independente da onde esteja. Eu não me sinto seguro dentro de uma festa que acontece uma coisa assim, então, eu não quero ver isso acontecendo numa festa que eu faço parte da produção”. Ambos afirmam também que as problemáticas de hiperssexualização das mulheres negras e brasileiras, a hiperssexualização de seus próprios corpos, enquanto homens negros africanos no estrangeiro, e os atravessamentos de tudo isso fazem parte das conversas do dia a dia.

Os próximos passos do projeto previstos para este ano são instigantes. Em articulação com outras festas pretas locais, a Savannah se organiza para visitar cidades do estado e também realizar uma edição na rua. Sobre o futuro, os planos são ambiciosos. Bryan me responde que a Savannah quer se tornar “o maior festival que o Brasil já viu!”.

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