Screamin’ Rachael e o groove de “1999”

Lançada há 25 anos, a coletânea é mais um dos motivos pelos quais a artista de Chicago recebeu a alcunha de “A Rainha do House”

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Ao longo dos anos 1980, muitas lendas do house de Chicago começaram a acelerar vinis de grupos como CHIC, Sister Sledge, Earth, Wind & Fire e The Trammps e, em seguida, produziram faixas com máquinas sonoras para um público jovem de uma cidade industrial, em espaços cada vez mais frequentados por pessoas pretas e de origem latino-americana. Alguns nomes podem ser mencionados: Farley “Jackmaster” Funk, Frankie Knuckles, Jesse Saunders, Marshall Jefferson, Maurice Joshua, Mr. Fingers, Phuture e Ron Hardy.

Talvez por machismo, talvez pelo papel de produtora, atuando nos bastidores da Trax Records, há uma personalidade que costuma escapar pelas beiradas das listas de grandes artistas da house music: Screamin’ Rachael – a Rainha do House. Há 25 anos, ela lançava a groovada e fundamental coletânea 1999 (1999).

Nascida em Chicago, Rachael Cain começou sua trajetória na cena punk e hard core dos anos 1980 com a banda Screamin’ Rachael and Remote – na época em que essa cena convivia com a cultura Club Kid, que emergia com a house music, em clubes como The Warehouse, The Space Place, The Powerplant. A ideia de acelerar um vinil de música disco dos anos 1970 para fazê-lo mais frenético e compatível com o desejo por BPMs mais altos, tanto por parte do público quanto dos DJs, foi dando lugar a faixas que tinham um apelo menos pop e mais alternativo. No começo dos anos 1980, os produtores passaram a investir em batidas 4×4 mais repetitivas, mecânicas, com graves acentuados e trazendo frequentemente melodias sem vocais. Para isso, o uso de sintetizadores e drum machines como o Roland TB-303, TR-808 e TR-909 foi decisivo para consolidar um som mais futurista e experimental que se inspirava em grupos como Cerrone, Giorgio Moroder, Kraftwerk e Yellow Magic Orchestra, mas também em jazz, soul e R&B. Numa Chicago que já era considerada polo musical nacional, também começam a ser incorporados elementos do hip hop.

Em entrevista dada para o documentário Pump Up The Volume – A History of House Music (2001), Rachael conta que os espaços onde se tocava esse tipo de música eram quase totalmente compostos por pessoas pretas e latinas, dentre elas muitos homossexuais e mulheres trans – justamente o motivo pelo qual ela se sentia tão acolhida, já que era um ambiente onde a diversidade era regra. Havia algo de mágico e revolucionário nesses espaços também por conta da liberdade de ser, estar, se mover, usar drogas e ter relações sexuais na própria pista de dança. Ela também comenta sobre o estilo único de mixagem, que cortava partes de faixas e tornava a transição mais dinâmica, criando uma expectativa maior no público. Isso a atraiu para suas criações que uniam pop, disco e a cultura dos clubes noturnos. Em 1985 ela lançou “My Main Man”, seu primeiro single pela Trax Records, gravadora da qual se tornaria dona mais tarde. No mesmo ano, saiu “Fun With Bad Boys”, outra faixa icônica presente na coletânea que contou com colaborações de Afrika Bambaataa, seu amigo e mentor.

Apesar de não ter recebido reconhecimento imediato, Rachael ficou famosa na cena que se consolidava. Ela, inclusive, tinha contato com o grupo inicial dos chamados Club Kids de Nova York, além de amizade com figuras polêmicas – como a pessoa retratada em Party Monster (2003), estrelado por Macaulay Culkin, que se baseia na história real de Michael Alig, responsável pela morte de Angel Melendez, assassinado após uma discussão sobre dívidas de droga. Rachael produziu uma faixa sobre a história chamada “Murder In Clubland”, que trata um pouco da polêmica e das controvérsias envolvidas. Apesar de tudo, ela nunca conseguiu se convencer totalmente de que Michael teria sido capaz de cometer tal atrocidade, como afirmou numa entrevista, e precisou de muita terapia para sair da negação em relação ao crime. Ao longo dos anos em que esteve preso, Alig manteve contato com ela.

Em 2007, Rachael assumiu a Trax Records e se tornou a proprietária da marca. Ao longo da pandemia da Covid-19, ela inclusive chamou Alig para coordenar as primeiras festas online da sua gravadora, que aconteciam todos os sábados.

Party like it’s 1999

O disco 1999 (1999) parece traçar uma pequena biografia da Rachael, além de marcar um processo de transição entre a tradição da velha guarda do house inspirada pela disco e a inserção de elementos de electro, trance, hip hop e EDM. Quase todas as faixas escancaram a profunda conexão dela com a era disco dos anos 1980, trilha sonora dos primórdios da cultura clubber. Podemos dizer que há, sim, algo de muito localizado no tempo e na história do gênero na maneira como as músicas foram produzidas. Afinal, para o lançamento da coletânea, elas muito provavelmente contaram com recursos analógicos e uma masterização posterior. A voz de Rachael é marcante e traz o espírito inicial da house music, em meio a letras repletas de positividade, sensualidade, relatos da noite e muito ecstasy.

“Dance All Night”, produzida com Afrika Bambaataa, tem tom desafiador nos versos, com a cantora questionando se a pessoa com quem está falando irá dançar com ela e se acabar a noite toda. Já faixas como “Nice Boys Go To Hell” ironizam a figura do “bom garoto”, demonstrando o gosto pelo inesperado, irreverente e talvez até perigoso aspecto dos bad boys. “Ecstasy” presta homenagem principalmente a duas coisas: primeiro, ao acid house, marcado pelo trabalho de Phuture com “Acid Tracks”, na qual Rachael inclusive colaborou; e segundo, ao hip hop que aparece também como referência proeminente. A última faixa do disco, “It’’ All Right”, traz um contraste interessante em relação ao restante do disco, explorando rock e country, remontando às origens de Rachael antes de ser apresentada à house music.

Mesmo chamada de A Rainha da House Music pela Billboard, Rachael nem sempre é lembrada em listas dedicadas aos nomes lendários do gênero. Mas o fato é que sua dedicação e seus esforços foram decisivos para o incremento da cena de Chicago – que ajudaria a pavimentar o caminho para que outros gêneros e criações emergissem.

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