SINAPSE: falar em línguas

Kristin Michael Hayer, glossolalia e Octavio Paz

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

GLOSSOLALIA

Kristin Michael Hayter e o dom das línguas

 

A musicista americana Kristin Michael Hayter sempre flertou com a ideia de se comunicar por meio da glossolalia religiosa, também chamado como o dom de línguas ou simplesmente o falar em línguas. O nome de seu projeto mais famoso, Lingua Ignota, por exemplo, é inspirado por uma língua sagrada desconhecida, criada no século 12 pela mística cristã alemã Hildegard de Bingen.

Recentemente, Hayter abandonou seu projeto anterior em nome de uma evolução pessoal e começou a se apresentar como Reverend Kristin Michael Hayter. No álbum SAVED!, lançado em outubro do ano passado, ela se aprofunda na mitologia da religião pentecostal. A artista se converteu em pastora a partir de um cadastro online e, para gravar o disco, passou por processos de privação de sono e jejum, em busca da comunicação em línguas.

A música de Kristin Hayter sempre foi intensa e assustadora. Agora, apesar de clamar pela salvação divina, as coisas não diminuem o seu tom apocalíptico. No entanto, há algo de interessante por aqui, porque seja gritando em suas composições próprias, ou cantado suave e melodiosamente o repertório do cancioneiro popular cristão, SAVED! usa técnicas de gravação para criar um clima de transcendência:

“Cada música foi gravada em um gravador de 4 pistas e depois degradadas em uma série de pequenos toca-fitas meio quebrados. As técnicas de manipulação da fita proporcionam efeitos adicionais de deterioração da textura. O resultado é um artefato que parece perdido em decadência, esquecido, como se nunca tivesse sido feito para ser ouvido.”

A capa do disco traduz bem essa sensação, de um documento encontrado perdido num casebre de madeira no meio de uma floresta, digno de um filme de terror independente. Em SAVED!, a sobreposição dos signos – a música, o ruído e a deterioração – é quase mais importante que a música em si. O que passa a mensagem final não é só a performance de Hayter, mas a amálgama de tudo.

Dentro do imaginário cristão, a narrativa da torre de babel simboliza a separação definitiva entre o céu e a terra – as línguas que, até então, eram todas unidas, são separadas e a humanidade deixa de se entender. Por isso, o hábito cristão de falar em línguas é uma prática associada à reconexão. Como Reverend Kristin, o foco da artista se voltou para a ideia pentecostal de que não há intermediário entre nós e Deus, que podemos nos comunicar com Ele diretamente através de nossas próprias experiências transcendentais pessoais.

Para o poeta mexicano Octavio Paz, o falar em línguas obedece a leis rítmicas inconscientes que não se distinguem em essência das que regem a elaboração de poemas. Ele escreve em seu livro Convergências: “metros, acentos, pausas, acoplamento de sílabas, explosão de fonemas e, enfim, todas as variações do ritmo verbal. O discurso de quem fala em línguas é ininteligível, mas não carece de forma. Pelo contrário: oferece-se à nossa percepção como uma forma verbal pura. É uma arquitetura de sons edificada como a linguagem rítmica do poema”.

No poema “Fabula (que não me atreverei a traduzir), ele escreve:

“Todo era de todos

Todos eran todo

Sólo había una palabra inmensa y sin revés

Palabra como un sol

Un día se rompió en fragmentos diminutos

Son las palabras del lenguaje que hablamos

Fragmentos que nunca se unirán

Espejos rotos donde el mundo se mira

destrozado.”

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Autor:

é músico e escreve sobre arte