SINAPSE: na piscina

Hiroshi Yoshimura, “Soundscape Surround” e aprender a nadar

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

PISCINA

Hiroshi Yoshimura e o hábito de nadar

 

Quando Hiroshi Yoshimura compôs Soundscape Surround, escreveu no encarte que sua música deveria trafegar pelos mesmos espectros sonoros que “a vibração de passos, o zumbido do ar condicionado ou o barulho de uma colher dentro de uma xícara de café”. De acordo com ele, “se o Surround puder ser ouvido como uma música que está próxima do próprio ar, permitindo-nos entrar no cenário sonoro de cada ouvinte, ou como algo que existe dentro de uma nova perspectiva, expandindo o meio-termo entre o som e a música, e transformando-o num espaço confortável, isso seria muito apreciado”.

Tenho ouvido este álbum ao longo das últimas semanas, e o que acontece imediatamente após o play é uma mudança no ambiente que me cerca, que se torna instantaneamente mais lírico e me deixa contemplativo, atento aos detalhes do cotidiano. Especialmente no caminho até a piscina pública, que passei a frequentar recentemente.

Há muitos anos tenho o desejo de começar a nadar. Fiz natação quando era criança e nunca mais retomei essa atividade, embora o desejo de praticá-la nunca tenha verdadeiramente me abandonado. Apesar de já ter morado em cidades litorâneas e também em metrópoles como São Paulo, que possui muito mais opções de piscinas disponíveis para frequentar, nunca me engajei de verdade nessa busca. Recentemente, resolvi enfim voltar a esse flerte e começar a dar a devida atenção à natação como atividade física.

Descobri uma piscina em centro comunitário da região onde moro. É gratuita e majoritariamente frequentada por famílias, que se encontram depois do horário da aula dos filhos para momentos de lazer no fim da tarde, ao fim da canícula, por volta das 16 horas. Fora esse público cativo que o ocupa nos dias de verão, o clube é pouco frequentado. Sou o único que usa a piscina para de fato praticar natação, despertando olhares curiosos quando chego sozinho, visto meus óculos e vou e volto deslizando pela raia sem puxar muito assunto com ninguém.

Infelizmente o lugar possui uma estrutura precária, abandonada pela prefeitura num limbo entre administrações e mandatos políticos. Construído em 1986, o centro comunitário é lembrado pelas gerações mais antigas com saudosismo e hoje guarda pouco do que foi no passado. É um lugar recoberto de cacos de pedra São Tomé, o que dá um tom ocre ao lugar, que se mistura com a tonalidade de fim da tarde num encardido que chega a ser simpático por sua honestidade. O espaço conta com dois vestiários e um quartinho onde se amontoam baldes de cloro e, claro, a piscina. Para além da atividade física em si, entrar na água é uma maneira de ficar alheio aos ruídos da vida, dispersando minha ansiedade não só no exercício aeróbico, como também nessa espécie de câmara de privação de sentidos de baixo custo. Quando estou submerso o que ouço é apenas um murmúrio abafado – um filtro low pass com reverb, para os produtores musicais de plantão –, que me deixa ensimesmado, mas de uma maneira mais consciente do meu próprio corpo.

Surround curiosamente traz na capa uma piscina que brilha num dia de sol. Seus títulos são sugestivos, como “Something Blue” e “Water Planet”. Originalmente lançado como álbum em janeiro de 1986, foi gravado por Yoshimura como encomenda da construtora Misawa Homes, com o objetivo de funcionar como uma “amenidade” projetada para melhorar os espaços residenciais recém-construídos da empresa – um pouco na linha das trilhas sonoras da Muji compostas por Haruomi Hosono. Reeditado no final do ano passado, Surround consagrou seu lugar como clássico cult da música ambiente.

Hiroshi Yoshimura pretendeu compor uma música que se aproximasse do ar. Para mim, ela soa como a água: Surround me tira do cotidiano e me leva através de uma espécie de portal subjetivo, de encontro a uma música ambiente que constrói o seu próprio ambiente através do som.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte