SINAPSE: o humano e a máquina

Manuel Göttsching, sintetizadores e Kasparov x Deep Blue (1997)

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (sempre às quartas-feiras).

 

GAMBITO DO REI

Manuel Göttsching e o xadrez

 

Manuel Göttsching, que nos deixou nesta semana, foi um músico inovador, cujo álbum  E2-E4, de 1981, é considerado por muitos uma obra-prima da música eletrônica. Minimalista, o trabalho teve efeitos duradouros nas gerações que o sucederam, influenciando artistas como Mogwai ou LCD Soundsystem.

E2-E4 é um álbum composto com sintetizadores e sequenciadores. Na produção, é possível ouvir um Prophet 10, que oferece uma camada sonora de dois acordes repetidos à exaustão sobre uma percussão ricocheteante e repetitiva. Pouco a pouco, estes elementos evoluem e criam um universo prismático de som, como se estivéssemos ouvindo o comunicado ancestral de uma formação mineral que, aos poucos, ganha vida. Na segunda metade do trabalho, um solo de guitarra infinito cria linhas melódicas que conduzem a atenção do ouvinte. Tudo improvisado e gravado ao vivo ao longo de uma hora de duração.

O nome do álbum vem da jogada mais famosa do xadrez, a abertura na qual o peão do rei avança duas casas e dá início a partida. A jogada, assertiva, controla o centro do tabuleiro e abre espaço para o bispo avançar. Trata-se do primeiro movimento mais popular em todos os níveis do jogo, sendo a jogada de abertura favorita do controverso e genial campeão mundial Bobby Fischer.

E2 e E4 também faz uma referência ao alcance das notas de guitarra, uma notação que diz respeito a nota “mi” que vibra a 82.407 Hz e a mesma nota “mi”, soando duas oitavas acima, em 329.63 Hz – mais popularmente conhecidas no Brasil como as cordas “mizão” e “mizinha”. Esse tema das dualidades é o tema do trabalho, que, em suma, varia apenas entre dois acordes ao longo de toda a sua extensão. De acordo com o músico, “esses acordes estão sempre variando em dinâmica e na entonação, mas tudo sempre variando ligeiramente ao longo do tempo”.

Uma resenha sobre o álbum aponta as qualidades de uma música que situa-se precisamente no ponto em que o humano encontra a máquina: “A maior parte da música é sintetizada e sequenciada, um dispositivo tipo Rube Goldberg que serpenteia por seções pré-programadas, mas quando seu violão entra, ouvimos o toque de um músico criado tocando música clássica em cordas de nylon”.

Em 1997, 16 anos após o lançamento de E2-E4, Garry Kasparov, então campeão mundial e para muitos o maior enxadrista de todos os tempos, viria a perder uma revanche contra o computador Deep Blue, da IBM, marcando a história do xadrez como a primeira vitória de uma inteligência artificial contra os humanos no jogo. Ao contrário do senso comum, a derrota de Kasparov para o computador abriu ainda mais as possibilidades do xadrez. Ao invés de acabar com a graça do jogo e encerrar as chances de diversão dos humanos, os computadores nos permitiram enxergar jogadas que, até então, nunca tinham sido consideradas. O curioso é que, durante o segundo match entre Deep Blue e Kasparov – que havia ganhando do computador no ano anterior –, o enxadrista chegou a sugerir que a IBM teria utilizado “ajuda humana”. Hoje em dia, o comum, obviamente, é que trapaceiros recebam ajuda de computadores, as famigeradas engines, como no recente e não solucionado caso da acusação contra Hans Niemann.

Um colunista da revista New Yorker, ao se lembrar de uma amizade de infância com um – problemático – prodígio do xadrez, avalia o poder de uma personalidade rebelde colocada contra um sistema de regras. Ele escreveu: O xadrez é um mundo fechado e perfeito com um conjunto de regras claramente definido e finito – o oposto da vida e, para aqueles que se dedicam a ele, um substituto da vida, exatamente por esse motivo. Jogar xadrez de maneira séria é a melhor maneira de um jovem evitar enfrentar o tipo de experiência interpessoal complexa que é o tipo de aprendizado mais essencial e necessário para ajudar uma pessoa a trilhar seu caminho no mundo”.

Um senso comum no mundo do xadrez é a capacidade, entre os jogadores mais avançados, de visualizar e antecipar jogadas. Para um leigo, ser capaz de avaliar as melhores possibilidades dentro de um trilhão (sem exageros) de caminhos alternativos é realmente impressionante. No entanto, o atual campeão mundial Magnus Carlsen, ao ser questionado sobre os seus cálculos mentais, revelou que o seu processo tem mais a ver com o instinto: acho que é parcialmente subconsciente, porque às vezes, há um processo de tomada de decisão em minha mente e, de repente, faço um movimento sem saber por que o fiz”.

Quanto a Manuel Göttsching, ao ser entrevistado sobre o seu processo de criação e composição, lembra do momento de eureka inesperado que teve ao compor E2-E4 com a ajuda de um sintetizador: “apenas viva o momento, e apenas sinta. Toque uma emoção e deixa a coisa fluir… Mas não se esqueça de apertar o botão ‘gravar’”.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte