Umm Kulthum: uma rainha egípcia em cinco canções

Um resumo dos 60 anos de carreira da maior voz do Egito e um dos nomes mais celebrados da canção árabe

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Fotos: Reprodução

Nascida com nome de Fatima Ibrahim Al-Biltaji, ela já veio ao mundo como promessa divina: o sheikh Ibrahim El Said Al-Biltaji liderava uma mesquita na pequena aldeia de Tamay Al-Zahayira e havia deixado Fátima Al-Maligi – sua mulher que estava grávida – em casa enquanto ia fazer a oração do alvorecer, a chamada salât al fajr. Num cochilo, antes que o cântico que convoca os muçulmanos à oração fosse proferido, Ibrahim teve uma visão num sonho onde uma das filhas do profeta Muhammad, chamada Umm Kulthum, lhe dava um presente. Ao voltar para casa, descobre que sua mulher havia dado à luz uma menina – que ele passou a chamar de Umm Kulthum. A homenagem à experiência religiosa do pai ressoa no tom mítico e profético em torno dessa lendária artista, Mas seu pai jamais poderia prever que ela se tornaria uma das egípcias mais famosas do planeta, conhecida por muitos como “A Voz do Egito”. No entanto, a data precisa de seu nascimento segue incerta, e as diversas fontes indicam que ela teria nascido em algum ano na virada do século 19 para o 20, entre 1898 e 1904. Daí o motivo pelo qual esse texto pretende celebrar seus talvez 125 anos dessa grande cantora, percorrendo cinco canções fundamentais.

O Egito Monárquico e o Pan-Arabismo Nasserista

Por ter tido acesso à educação formal numa escola corânica, dado que seu pai era um líder religioso, Kulthum apresentou ao meio secular a música e o canto eruditos. Ela apresentou às massas de todo o Mundo Árabe o que antes era considerado “alta cultura”, acessível apenas às elites. De algum modo, sua forma de se apresentar e se portar em espaços públicos refletiu profundamente a cultura e a situação política da época. Na primeira metade do século 20, o Egito deixava de ser um protetorado britânico com a Revolução Egípcia de 1919, mas se mantendo alinhado aos interesses coloniais por meio do estabelecimento de um Reino do Egito, cujo rei era o Sultão Fuad I. Nesse reinado, que dura até 1953, havia a concepção de que o sinônimo de modernidade era ocidentalização, e por isso a cultura – e consequentemente a música – passaram por grandes transformações.

Em 1932, por exemplo, houve o Congresso de Música Árabe do Cairo, reunindo pesquisadores e músicos do mundo inteiro, que, com seu tom orientalista, propuseram medidas de ocidentalização da música árabe: a inclusão de instrumentos e modos de apresentação ocidentais, bem como o estabelecimento de notação da música clássica árabe – que era tradicionalmente improvisada e, dessa forma, não necessitava registro escrito – foram algumas das decisões tomadas dentro desse congresso. Umm Kulthum, que não participou do congresso, visto que as mulheres só puderam frequentar o Instituto de Música Árabe do Cairo em 1947, se apresentou, ainda assim, no evento e a partir daí se tornou conhecida por artistas do mundo todo.

Ao vermos suas apresentações ao vivo, nos deparamos, portanto, com essa estética de realeza: a presença de uma enorme orquestra, músicos vestidos de smoking e suntuosas salas de concerto geralmente são o plano de fundo das gravações nas quais encontramos a majestosa presença de Umm Kulthum. Sempre trajada com belíssimos vestidos, coberta de elegantes joias e com os seus pomposos e icônicos penteados, ela levava consigo também um lenço para enxugar o suor do rosto, dado que as apresentações eram bem longas. Por isso também ela nunca cantou em cabarés ou casas noturnas, justamente pelo que se esperava de uma mulher dentro daquele contexto social monárquico.

Há muitos estudos a respeito de sua vida e alguns deles envolvem temas polêmicos, como a possível bissexualidade da cantora: o pesquisador egípcio Mousa Al-Shadidi publicou em 2019 o livro A Sexualidade de Umm Kulthum. Outra situação polêmica envolve ela e o tio do Rei Faruk, segundo rei do Egito – eles teriam se apaixonado, mas não puderam se casar por conta da origem plebeia e camponesa de Kulthum, além do fato de ela ser artista. Porém, por ter uma relação muito próxima com a família real, ela se sente profundamente traída e magoada pela situação.

Essa desilusão é considerada um dos motivos pelos quais ela se aproxima da figura de Gamal Abdel Nasser, na época um revolucionário e um dos responsáveis pelo fim da monarquia em 1953 e a criação da República do Egito, da qual foi presidente. No entanto, Kulthum já era bastante politicamente alinhada a movimentos nacionalistas egípcios e inclusive cantou para soldados no conflito entre Egito e Israel e sempre teve afinidade com Nasser. Governado pela União Socialista Árabe, o período nasserista no país teve uma proposta pan-arabista de integração das comunidades árabes, bem como um forte nacionalismo e uma firme postura contra a presença britânica e francesa em territórios árabes. Foi provavelmente nesse período que ela se tornou símbolo nacional através de sua voz, visto que foi durante a administração do Nasser que se criou um sinal de rádio transnacional, permitindo que pessoas de outras partes do Mundo Árabe pudessem ouvir “A Voz do Nilo”. Isso nos mostra como a figura da cantora constituía também uma fonte de poder político em seu país, tamanho seu respeito.

60 anos de carreira em cinco canções

Não há, dentro da cultura ocidental, algo equivalente ao tarab, conceito por vezes utilizado para definir a música tradicional árabe, mas que expressa principalmente o sentimento de deleite e êxtase proporcionado pela música. No entanto, se tem alguém capaz de despertar esse sentimento é Umm Kulthum. Tentamos resumir seus 60 anos de carreira, com mais de 300 músicas gravadas, em apenas cinco canções. Em cada uma delas, a orquestra com suaves arranjos de alaúdes, violinos e o chamado derbake acompanha sua potente e incomparável voz – que faz cada palavra dançar, esbanjando o melhor da poesia árabe.

Começamos por انت عمري (“Enta Omry”), lançada em 1964 e dividida em dois atos somando quase uma hora de música. A obra é ao mesmo tempo uma canção e um disco inteiro, o que nos dá um exemplo de como a música clássica árabe requer atenção e entrega completa. Isso se repete ao longo de toda a obra da artista, já que o formato da música clássica árabe se dá num ritmo diferente da música ocidental como a conhecemos e consumimos hoje. O título se traduz por “Você É Minha Vida” e é uma das várias canções de Kulthum que percorrem o poder dilacerante e avassalador do amor.

Também temos ألف ليلة وليلة (“Alf Leila wa Leila”), que na tradução literal seria “Mil Noites e A Noite”, mas que em verdade se refere às Mil e Uma Noites, talvez uma das obras mais conhecidas a respeito do Mundo Árabe. Trata-se de um conjunto de histórias e contos populares do Oeste Asiático e do Sul Asiático que foram compilados em língua árabe ainda no século 9 e chegaram à Europa por meio de uma tradução do orientalista francês Antoine Galland. A peça performada por Kulthum tem quase 45 minutos, foi composta pelo egípcio Baligh Hamdi e lançada em 1969.

Outra canção interessante é القلب يعشق كل جميل (“El Qalb Yaashaq Kul Jamil”), que se traduz por “O Coração Parte Tudo que é Belo”. Trata-se de uma belíssima peça também dividida em dois atos cuja gravação demonstra o tarab mencionado anteriormente em ação, especialmente quando ouvimos o público indo ao delírio conforme sua voz guia os altos e baixos, os pontos de antecipação e o clímax de cada parte da canção. O disco foi lançado em 1971, pouco antes de sua condição de saúde se agravar.

Outro registro bastante marcante de sua trajetória é اذكرينى (“Ezkoreeny”) que significa “Lembre-se de Mim” e é composta de dois atos que totalizam pouco mais de 30 minutos de música. O disco contendo essa faixa foi lançado em 1975, ano em que a cantora morreu devido a um ataque cardíaco. Kulthum já vinha sofrendo com problemas de saúde pelo menos desde 1971, e sua última passagem pelos palcos foi em 1972.

Por fim, على باب مصر (“Ala Bab Misr”), que se traduz como “Nas Portas do Egito” e foi lançada em 1966, pela Sono Cairo. Essa canção também fez parte de uma coletânea que chegou inclusive a ser impressa em vinil no Rio de Janeiro, um disco raríssimo avaliado hoje em mais de mil reais. Uma curiosidade é que o nome do país de origem da cantora como o conhecemos vem do grego, e o nome em árabe seria “misr”, que quer dizer “fronteira” – daí a sutileza interessante no título da canção.

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ARTISTA: Umm Kulthum

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