5pra1: Café Tacvba

Um guia por entre as experimentações da célebre banda mexicana, que desafia o jeito de fazer rock em espanhol ao propor comportamentos, linguagens e sons revolucionários

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Fotos: Divulgação

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

O público do Estádio Gigantinho, em Porto Alegre, recebeu de forma um tanto tímida, em 1997, a banda Café Tacvba. Esta seria a primeira vez do quarteto mexicano no Brasil e também a única edição do Festival Tordesilhas, um evento natimorto que tentou aproximar artistas latinos e brasileiros.

Anos mais tarde, em 2014, Rubén Albarrán (vocais e violão), Emmanuel “Meme” del Real (piano e vocais) e os irmãos Joselo (violão) e Enríque Rangel (baixo e contrabaixo) voltaram ao país para encontrar uma outra plateia morna, que contrastava com o sol escaldante do Autódromo de Interlagos, em São Paulo. Naquele mesmo dia, fãs de indie se empurrariam por bandas anglo-saxãs, consolidando o perfil de público do festival Lollapalooza.

No restante da América hispânica, definitivamente, não se pode dizer que alguma vez o mesmo tenha ocorrido. Criada em 1989 por jovens músicos que, nas horas livres, viam-se obcecados pela obra de Martin Scorsese, Café Tacvba deu forma à sua sonoridade cercando-se por um sem fim de referências urbanas e atemporais, tão logo foram marcados seus primeiros shows em festas privadas da Ciudad Satélite, um bairro de classe média alta no Centro Histórico da Cidade do México.

Após serem descobertos pelo produtor Gustavo Santaolalla – hoje, além de produtor, um célebre compositor de trilhas sonoras, ganhando, inclusive, o Oscar pelos trabalhos em Babel e O Segredo de Brokeback Mountain –, transformaram-se em símbolo tanto do rompimento com fórmulas clássicas de se fazer rock, quanto do resgate ao orgulho de ser mexicano. “Começamos como um grupo de amigos e acabamos como uma equipe de trabalho, uma comunidade criativa”, contou o baixista Enríque Rangel, em entrevista no livro Café Tacvba: Bailando por Nuestra Cuenta, de Enrique Blanc. “Estamos além das definições de amizade ou de irmandade, ou mesmo cumplicidade”.

Irreverente, contestadora e, sobretudo, imersa em sua busca pela criatividade que contraria os prognósticos de separação, a banda atravessou décadas narrando tudo aquilo que encontrava ao redor e oferecendo uma atenção singular às relações humanas. Vem daí seu apreço, em paralelo, às causas sociais, entre as quais o ambientalismo. Este é o trunfo que os leva a ser, com frequência, reverenciados por seus pares, mesmo quando seus trabalhos pareceram ter sido concebidos em momentos de pressão.

Passados 30 anos, a regra geral segue a mesma: desafiar as convenções e, por que não, a própria gravidade, se pensarmos na presença em cena. Com dois especiais da série MTV Unplugged gravados, pode-se dizer que Café Tacvba trata de reescrever, a cada ano, sua trajetória na modernidade, de modo a testar provocações e limites. Neste texto, mergulhamos em diferentes fases de uma das maiores bandas mexicanas da história, a fim de compreender por que segue sendo tentador despertar a constância dos olhares e se perder, para se encontrar, por entre os rincões do México.

Café Tacvba (1992)

Três anos seriam gastos tocando em bares até que fosse definida a sonoridade do trabalho de estreia da banda, uma mescla de elementos de rock, new age e música regional. Autointitulado, o projeto chegou em 1992 com a guarnição do respeitado produtor argentino Gustavo Santaolalla, que àquela altura ajudava a moldar parte significativa da cultura popular mexicana em colaborações com as bandas Molotov e Maldita Vecindad y los Hijos Del Quinto Patio, antes de acompanhar o debut da jovem Julieta Venegas.

Nestas 13 canções que servem como carta de apresentação, os Tacvbos conduzem o ouvinte até a cena cultural underground da época, capturando não apenas uma estética punk e despretensiosa, que se esquiva de qualquer sofisticação, mas que também trata de acenar ao esquema acústico em que se deram suas primeiras apresentações. É o caso das faixas “María” e “Las Batallas”, impulsionadas pelo violão, mas também de “Noche Oscura”. Neste punk rock escolhido como abre alas, “respira-se a decadência” em meio a homens e mulheres embrutecidos pelo álcool, que segue desregrado no transcorrer da vida noturna.

Ao enveredar pela rebeldia e a organicidade dos registros, que por sua vez os distanciam do modelo de apresentações patenteado pela MTV anos mais tarde, Café Tacvba, o disco, institui as bases de um som marcado pela ironia e as divagações, que se agarram a um eu lírico fortemente narrativo. Ao versar sobre temas como nostalgia, deuses da cultura mesoamericana e senhoras fantasmas, a obra cumpre a função de apresentá-los como caminhantes noturnos que, predestinados, não teriam dificuldade para encontrar o trajeto de seu próximo trabalho.

Destaques: “Noche Oscura”, “La Chica Banda”, “Las Batallas”

Re (1994)

Ao celebrar 20 anos de carreira, a vocalista do grupo Aterciopelados, Andrea Echeverri, haveria de recordar a obsessão que teve pelo disco Re (1994). “De alguma maneira, aquilo que ouvíamos de Café Tacvba se aproximava do que ainda hoje tentamos fazer com nossa própria sonoridade”, contou, referindo-se à mistura de ritmos tradicionais andinos e rock n roll. Essa tônica, um ano mais tarde, os ajudaria a construir a rota de El Dorado (1995), projeto mais importante de sua trajetória.

O referido relato dá uma boa definição do caráter de influência exercido pelo segundo disco dos colegas mexicanos, uma mistura de folk, ska, punk rock e bossa nova muito cara à estranheza. Encarado por seus criadores como a consolidação da própria identidade, calcada nos encontros musicais que realizaram pela estrada afora, o projeto é sua empreitada mais irregular, mirabolante e múltipla. Por essa mesma razão, soa como a síntese de toda uma abundância adquirida ao transitar pelo México profundo.

Ao mergulhar na multiculturalidade local, a obra propõe o desvendar de um caligrama poético e espiralar que reflete, inclusive na capa, os ciclos da vida. A crueza de seu percurso é expressa logo na canção de abertura, “El Aparato”, entremeada por corais cheios de melancolia e que se casam de alguma forma com a fastidiosa dor de cotovelo de “La Ingrata”, um registro que, apesar de divertido, seria facilmente alvo de cancelamentos.

A tragicomédia logo dá espaço à atitude despreocupada de “El Fin de la Infancia”, um recorte que ganha fôlego uma vez que se adiciona o bolero “Madrugal”. A letra, um tanto clássica, descreve um passeio elegante pela Cidade de México antes de desembocar em um desfecho escatológico.

Em seu caminho, Re ainda entrelaça modernidade e sincretismo pré-hispânico a questões ecocríticas. Um bom exemplo é “Trópico de Cáncer”, faixa que expõe por meio do personagem Salvador a tensão existente no interior do país, mais precisamente em San Juan Ixhuatepec, onde, em 1984, explosões em um centro de armazenamento e distribuição de petróleo deixaram centenas de mortos.

Destaques: “El Aparato”, “El Ciclón”, “Trópico de Cáncer”

Avalancha de Éxitos (1996)

Embora vista com certo demérito, a função exclusiva de intérprete permitiu a diversos artistas mexicanos o feito de incorporar e ressignificar repertórios inteiros. Os clássicos de outros podem ser seus próprios clássicos, como fez a capitalina-veracruzana Natalia Lafourcade. Colaboradora de Meme nos anos 2000, ela hoje circula como embaixadora da música tradicional local e lança luz a um trabalho iniciado três décadas antes com Avalancha de Éxitos (1996).

O terceiro disco da Café Tacvba propõe ao público, outra vez, uma direção completamente oposta às expectativas. Isto porque, em meio a ensaios que tinham como objetivo desenvolver seu processo criativo, o grupo pôs-se a estudar e a desconstruir clássicos da música popular hispano-americana, que mais tarde, nas rádios e aparelhos de som, surtiram dois efeitos principais: o de alçar ao estrelato nomes ainda desconhecidos e o de homenagear, à moda Tacvba, veteranos como Juan Luís Guerra, Botellita de Jerez e Jaime López.

Nesta metamorfose pouco planejada, o quarteto deixou-se guiar pelo eletrônico e moderou os vocais estridentes de Albarrán, a fim de direcionar seus interesses para possíveis conexões com o rap e o caló mexicano – este último uma espécie de dialeto utilizado pela juventude delinquente e escolhido para conduzir, entre códigos, a trama de “Chilanga Banda”. O interesse em torno do que viria a ser esta nova narrativa também levou ao seu estúdio, na cidade industrial de Naucalpan, um curioso David Byrne. O artista norte-americano, redescobridor de nomes como Susana Baca e Tom Zé, participou da releitura de “No Controles”, canção de Nacho Cano e, certamente, a mais agressiva entre as oito selecionadas para a seleção final.

São destaques ainda “Perfídia”, um instrumental conduzido apenas por riffs e sintetizadores, e “Ojalá Que Llueva Café”, merengue agora vertido em um son huasteco a partir do emprego de jaranas e violinos. Não haveria nada mais mexicano do que celebrar um dos alimentos de maior importância histórica e econômica local.

Destaques: “Chilanga Banda”, “No Me Comprendes” e “Ojalá Que Llueva Café”

Cuatro Caminos (2003)

Há pouco mais de 20 anos, após concordar em retirar-se dos holofotes a fim de viver um primeiro período sabático, o Café Tacvba soltava Cuatro Caminos, outra produção do guru Gustavo Santaolalla, mas que à época compartilhava as funções com outros dois colaboradores: Dave Fridmann e Andrew Weiss. Imersa em simbologias, a banda encontrou no número quatro um jeito de agregar significados –sobretudo, o de uma renovação de votos com sua profissão.

Embora “Eo” conserve a essência de trava-línguas que os consagraram, para este que é seu trabalho mais radiofônico foi requerido à produção dar braçadas por entre o mar de pop rock que invadiu as paradas musicais no início da década de 2000 – uma decisão que, pela primeira vez, os levaria a incorporar a bateria entre os instrumentos, um detalhe digno de surpresa. Assim surgiram canções como “Eres”, balada que, após ter sido gravada por Albarrán, acabou sendo refeita, a pedido de Santaolalla, com a finalidade de explorar a suavidade dos vocais de Meme.

Filosófico, mas não tão existencialista quanto seu sucessor, Sino (2007), o material, é verdade, se apresenta nas entrelinhas como produto de necessidades contratuais, bem como da manutenção do status adquirido de rockstars, agora sobreviventes à chegada do novo milênio. Entretanto, o amor à arte e o apreço às transformações fizeram com que os artistas se mantivessem coerentes, posicionando-se como narradores de seu tempo. É o caso de “Cero y Uno”, canção em que se dedicam a investigar as formas de consumo e conexão dos fãs, àquela altura seduzidos pela rapidez e a sensação de proximidade projetada pela chegada da internet.

O inevitável desejo pelo que é trivial e a idealização incontestável do que seria o contentamento pleno aparecem com o propósito de revelar certa vulnerabilidade. É o que faz “Mediodía”, canção deliciosamente arrastada e que se conecta a “Hoy Es”, aceno à leitura quase espiritualizada que se faz aqui do labor musical. Mais uma vez, mesmo que a inspiração talvez se esbarre em ruídos, a Café Tacvba soube se guiar.

Destaques: “Cero y Uno”, “Eres”, “Mediodía”

 

Este Objeto Antes Llamado Disco (2012)

Com a chegada dos anos 2010, seria inevitável que bandas de rock mais tradicionais quisessem flertar com o eletrônico, e essa intenção se deu de um jeito bastante audacioso, permitindo que distorções e beats se enlaçassem sem dificuldade às guitarras elétricas. Café Tacvba não apenas se propôs tal exercício ao fazer Este Objeto Antes Llamado Disco (2012), como também quis realizá-lo diante dos fãs em quatro sessões públicas.

Gravado entre Santiago de Chile, Buenos Aires, Los Angeles e a Cidade de México, o projeto funciona como alternativa para a liberdade que se pode encontrar em estúdio. “É necessário brincar com os elementos se você quiser chegar a um resultado diferente. Já fizemos isso em diversas ocasiões, mas nunca antes diante do público, sem inibições”, argumentou Rubén Albarrán em um curta-documentário, lançado posteriormente.

As ideias, eventualmente, contraditórias de seus integrantes fizeram com que a banda criasse uma espécie de intimidade ampliada. Observados com minúcia, seus encontros, que se deram dentro de uma caixa de isolamento acústico, funcionaram como choques de imaginação e os levaram a um resultado homogêneo, com aspirações futuristas. Um exemplo está em “Andamios”, composição que aborda a busca pelo real em meio às miragens lisérgicas da metrópole.

São outros destaques desta safra canções de amor como “Olita del Altamar”, que conta com uma base de forte influência andina e o apego por metáforas que transformam elementos como o vai e vem das ondas em um sinônimo de expectativa. A balada “Apróvechate”, por sua vez, é mais uma ocasião em que Rubén Albarrán cede o microfone a Emmanuel “Meme” del Real, que também assina seis das dez composições originais. Ao narrar a construção de um romance pautado em valores básicos como confiança e reciprocidade, o grupo dá ênfase à beleza existente na fragilidade, algo que nem todos são capazes de acessar. É preciso lançar luz ainda a momentos perfeitos para uma pista de dança indie, como “Yo Busco”, música que se firma em questionamentos e contradições e não poderia ser mais sintética do que sempre buscou comunicar esta discografia.

Destaques: “Andamios”, “Olita del Altamar”, “Aprovéchate”

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ARTISTA: Café Tacvba