5pra1: Joyce Moreno

Dos sucessos oitentistas às pérolas redescobertas, um passeio pela obra da virtuosa, pop e experimental artista carioca

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Fotos: Divulgação

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Joyce Moreno tem 75 anos de vida e cerca de 60 anos de carreira, mas parece um nome desconhecido para muitos brasileiros. Joyce (que só passa a assinar Moreno bem mais tarde em sua carreira) é cantora, compositora e instrumentista de mão cheia e seu nome é sucesso entre públicos diversos nos Estados Unidos, no Japão e na Europa. Inclusive, muitos artistas gringos já se revelaram fãs dela, de Fatboy Slim a Frank Ocean – aliás, o nome mais recente que passou pelo Brasil e citou Joyce como influência foi Florence Shaw, vocalista da banda inglesa Dry Cleaning. De todo modo, as canções de Joyce já foram gravadas e regravadas por nomes gigantes como Maria Bethânia, Elis Regina, Milton Nascimento, Annie Lennox, Omara Portuondo e muitos outros.

Um exemplo prático e curioso de onde a música de Joyce já foi parar está na trilha de Legalmente Loira (Robert Luketic, 2001). “Magic”, do Black Eyed Peas, usa em seus versos o refrão de “Every Little Thing She Does Is Magic”, do Police, porém a base sampleada na faixa é “Aldeia de Ogum”, lançada por Joyce em seu icônico disco Feminina, de 1980. “Aldeia de Ogum” se tornou hit entre DJs do Reino Unido, impulsionando mais uma vez a carreira de Joyce no exterior – e dizemos aqui mais uma vez porque ela já teve histórias amplas no exterior também nos anos 1970 e 1980. Essa paixão dos DJs por Joyce está marcada na compilação de Fatboy Slim chamada Fatboy Slim Presents Bem Brasil, na qual Joyce surge remixada por Daniel McLewin.

Mas é importante voltar no tempo aqui, pois antes de ser sucesso nas pistas de dança, Joyce é uma figura que musicalmente nasce atrelada à bossa nova, como pode ser conferido em seu disco de estreia Joyce, de 1968. Já nos anos 1970, Vinícius de Moraes fazia um show chamado Poeta, Moça e Violão, ao lado de Toquinho e de Clara Nunes, que virou disco triplo posteriormente. Sem Clara, a dupla era acompanhada internacionalmente pelo Quarteto em Cy. Porém, chegou um momento que o poeta estava sozinho, sem moça e sem violão e aí veio a parceria com Joyce: um combinado até mais barato, já que a artista era 2 em 1 – já vinha a moça e o violão. Eles fizeram uma longa temporada em Punta Del Este, mas a parceria deu tão certo que Joyce acabou viajando o mundo ao lado de Vinícius. É nessa fase que Joyce grava uma série de discos na Europa e nos Estados Unidos. (Inclusive, álbuns que ficaram perdidos no tempo e que iremos falar mais abaixo).

Em 1985, Joyce é convidada a participar do Festival da Juventude, em Moscou, e do Yamaha Festival, no Japão, e é a partir daí que se estabelece uma forte correlação de seu trabalho com a Ásia. O Japão passa a ser um mercado fundamental para o trabalho da artista carioca, tanto que há uma série de discos seus lançados apenas por lá e outros que saem anos antes no Japão e apenas depois chegam ao mercado ocidental. Curiosidade aleatória que prova seu impacto por lá: Joyce tem três músicas na trilha do anime Wolf’s Rain (2003), do mesmo estúdio que lançou Cowboy Bebop (1998). E no caso são faixas originais que ela compôs junto com Yoko Kanno, a compositora das trilhas tanto de Wolf’s Rain quanto de Cowboy Bebop; essas canções estão disponíveis em streaming no Brasil na trilha oficial do anime.

Hoje em dia, o trabalho de Joyce é lançado internacionalmente pela Far Out Recordings, gravadora inglesa especializada em música brasileira e que ajudou de forma fundamental no resgate e no lançamento de obras importantes de Joyce. Atualmente, temos acesso no Brasil a trabalhos basilares da obra da artista e podemos enfim mergulhar na amplitude que é sua música e sua poesia. Joyce é uma instrumentista fantástica, de formação jazzística, que transita entre a música popular e o experimentalismo, capaz de navegar entre os versos pop e as intrincadas criações harmônicas – por isso mesmo seu nome precisa ser ecoado enquanto artista pioneira no Brasil e figura imprescindível da nossa música.

Nesse 5pra1, fizemos um mix de discos, portanto há tanto trabalhos mais populares no Brasil quanto discos recentemente descobertos – “Passarinho Urbano” (1976) é disco essencial, mas fica de fora da nossa lista, pois já foi relançado recentemente em vinil aqui no Brasil e este autor que vos escreve já fez outro amplo texto sobre ele. Esperamos que você também fique tão encantado por sua obra quanto nós somos.

 

Feminina (1980)

“Feminina”, a faixa-título desse disco, já estava em alta na tela da TV em versão do Quarteto em Cy em Malu Mulher (1979-1980), antológica série criada e dirigida por Daniel Filho e estrelada por Regina Duarte. Mas o boom em torno de Joyce veio no Festival MPB 80, quando ela cantou “Clareana”, canção composta para as filhas Clara e Ana e que viraria hit nacional, com direito a clipe no Fantástico.

Mas Feminina vai muito além desses dois sucessos e é uma prova da versatilidade de Joyce, com momentos mais pop, como em “Banana”, toques jazzísticos, como no futuro hit “Aldeia de Ogum”, e seu lado romântico na deliciosa “Da Cor brasileira”, criada em parceria com Ana Terra e que se tornaria sucesso nacional na voz de Maria Bethânia. É muito interessante também seu olhar sobre o seu próprio ofício de compositora, em canções como “Essa Mulher” (parceria com Ana Terra) e “Compor”. Feminina é como um disco cartão de visitas, é a apresentação perfeita para se entender as múltiplas facetas de Joyce.

Destaques: “Feminina”, “Clareana” e “Aldeia de Ogum”

 

Saudade do Futuro (1985)

Esse álbum abre com “Velhos no Ano 2000”, uma versão em português da canção “When I’m Sixty-Four”, dos Beatles, mas para além da letra deliciosa de Joyce, se destaca a sua voz, quase em falsete – é uma abertura e tanto. Enquanto muita gente se jogava nos exageros sonoros dos anos 1980, Joyce se reúne com arranjos e regências do maestro Gilson Peranzzetta e faz um disco que, além de atestar sua genialidade enquanto compositora, mostra sua virtuose vocal, com usos muito interessantes de sua extensão, em ousadas e divertidas escolhas no canto. “Sonora Garoa” é um excelente exemplo disso ao se misturar com “Três Apitos”, de Noel Rosa, enquanto traz sons do rádio até se acabar em assobios; “Tema para Jobim” é homenagem ao mestre dividida com Milton Nascimento. O encontro das duas vozes beira o sublime.

Destacam-se ainda a beleza de “Fã da Bahia”, com sua harmoniosa união do jazz aos ritmos de Caymmi, e a terna “Minha gata Rita Lee”, com os versos “Magrinha, magrinha, arrepiada, com pelos vermelhos, olhos de fome / Eu não podia mesmo te dar outro nome, Rita Lee”. Saudade do Futuro é disco que envelheceu bem demais aos ditames do tempo e segue cool e moderno como nunca.

Destaques: “Velhos no Ano 2000”, “Tema para Jobim” e “Sonora Garoa”

 

Visions of Dawn (2009)

Visions of Dawn é da fase em que Joyce desbravava o mundo nos anos 1970. Gravado em Paris, em 1976, o álbum tinha ficado perdido em algum espaço-tempo até ser lançado pela Far Out Recordings em 2009. As composições aqui ficam a cargo de Joyce, inclusive algumas canções que depois apareceriam lá no Feminina – “Clareana” aparece em gravação distinta nesse aqui. Além das letras e da voz delicada de Joyce, esse álbum tem duas parcerias de luxo: a percussão de Naná Vasconcelos e a produção e os arranjos de Mauricio Maestro. Classificado em tags como acid folk ou psych-folk, o disco é um encontro único de três mestres geniais: a voz de Joyce em encontro com a de Maestro, bem como todas as bases percussivas de Naná criam uma experiência deslumbrante.

Mesmo com as faixas já conhecidas do repertório, a sensação aqui é de novidade, do frescor que há nessa liberdade experimental dos três. E é curioso como o disco é uma crescente e é no final que temos surpresas absurdas, como a psicodelia de “Jardim dos Deuses” e o encerramento apoteótico com “Chegada”. Fun fact: no lançamento do disco Blonde, Frank Ocean lançou uma revista chamada Boys Don’t Cry e nela tinha uma lista de suas músicas preferidas no mundo e lá está “Jardim dos Deuses”, desse disco aqui.

Destaques: “Metralhadeira”, “Tudo Bonito” e “Jardim dos Deuses”

 

Palavra e Som (2017)

A discografia de Joyce é muito ampla e há títulos interessantes e distintos em diferentes fases de sua carreira e talvez por isso seja interessante colocar aqui um disco mais recente, produzido já em sua maturidade e que prova a atemporalidade de suas canções. Palavra e Som foi produzido por Joyce e Kazuo Yoshida e tem arte de capa do japonês Shinichi Sugaya. Além disso, foi lançado primeiro no Japão, em 2016, e só chegou ao mercado brasileiro em 2017, pela Biscoito Fino. Esse é disco de compositora, calcado em grande parte na voz e violão – e das 13 canção, 10 são assinadas por Joyce e as outras são parcerias com Paulo César Pinheiro, João Cavalcanti e Torquato Neto.

Destaca-se aqui seu encontro com Dori Caymmi em “Dia Lindo”, seu olhar sobre as relações tóxicas em “O amor é o lobo do amor” e os diálogos entre o samba e o jazz em “Mingus, Miles & Coltrane”. Compositora que não para de escrever, Joyce mais uma vez se dedica a uma canção sobre o seu ofício no delicioso encerramento do disco, a faixa-título “Palavra e Som”. Um trabalho que reforça a atualidade de Joyce e mostra, de novo, uma vez seu talento e refinamento.  

Destaques: “Palavra e Som”, “O Amor é o Lobo do Amor” e “No Mistério do Samba”

 

Natureza (2022)

Em meio a turnês internacionais ao lado de Vinicius de Moraes nos anos 1970, Joyce passou um ano em Nova York em 1977. Por lá, gravou um disco ao lado do maestro alemão Claus Ogerman – conhecido por aqui pelo seu amplo trabalho ao lado de Tom Jobim. O disco inclui a presença de Mauricio Maestro em voz, violão e vocais; além de um time de peso que junta os brasileiros João Palma, Naná Vasconcelos e Tutty Moreno aos norte-americanos Buster Williams, Joe Farrell, Michael Brecker, Mike Mainieri e Warren Bernhardt. Diz a história que Ogerman queria que Joyce fizesse algumas versões das faixas em inglês, para uma inserção maior no mercado norte-americano, ao que Joyce se mostrou relutante. Por questões jurídicas e outros pormenores entre os envolvidos, o disco foi arquivado e acabou se perdendo no tempo, sendo reencontrado apenas após a morte de Ogerman.

O disco chegou enfim ao público em 2022, via Far Out Recordings. E novamente gravações de clássicos já conhecidos, mas aqui em versões ainda mais diferentes, como é o caso de “Feminina”, que abre o disco em versão jazzística de 11 minutos e 25 segundos! De caráter samba-jazz, o trabalho é um exemplo interessantíssimo da potência de Joyce, que é a estrela-guia desse disco, não deixando em nenhum momento se engolir ou apagar pela constelação que estava em seu entorno.

Destaques: “Feminina”, “Mistérios” e “Ciclo da Vida”

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ARTISTA: Joyce Moreno

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