5pra1: Prince

Cinco discos essenciais do gênio de Minneapolis para ouvir depois de mergulhar na sequência arrasadora e fundamental nos anos 1980

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Fotos: Michael Ochs Archives

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho – hoje, excepcionalmente, um segundo mergulho – na obra de um artista.

 

Para começar a ouvir Prince, é essencial conhecer a tríade suprema Purple Rain (1984), 1999 (1982) e Sign O’ the Times (1987). É o básico do básico. Esses discos estão para Prince como as sequências avassaladoras de álbuns que Stevie Wonder ou Jorge Ben Jor lançaram no início dos anos 1970. Para acompanhar, Dirty Mind (1980) e Around the World in a Day (1985) são excelentes opções.

Eis aí um ótimo top 5 para começar a desvendar as ambições, as habilidades e os talentos de Prince, um dos músicos mais célebres do século 20, morto precocemente aos 57 anos, em 21 de abril de 2016 – há exatos 6 anos. Mas e depois? Como continuar a mergulhar numa das discografias mais densas da música pop, com 39 álbuns de estúdio oficiais lançados em vida?

Nesse ponto não há consenso entre os fãs de Prince, um mestre em fundir rock, soul, blues, R&B, jazz e funk que, ao longo de quase 40 anos de carreira, tentou investigar todas as possibilidades de amálgama entre esses gêneros, acrescentando elementos de house, folk, disco e hip hop enquanto discutia sexo, política, religião, raça e, claro, destilava declarações de amor e muitas dores-de-cotovelo.

A ideia desta edição do 5pra1 é propor um desses caminhos possíveis, algo que ilumine a fase menos conhecida da discografia de Prince, desde o período em que a obra dele acabou ofuscada pela batalha feroz contra a Warner Bros. Records, nos anos 1990, até o retorno aos holofotes nos 2000 e os anos derradeiros antes de sua morte. Nada fácil, e é uma lista que talvez não se sustentasse se revisada mais algumas vezes.

Depois de uma década de êxitos entre 1979 e 1989, Prince estava em pé de guerra com a própria gravadora. Contratado pela Warner desde o lançamento de seu álbum de estreia, For You (1978), Prince queria, depois de enriquecer sua gravadora em milhões e milhões de dólares, poder decidir livremente quando e como produziria seus álbuns, além de controlar todo o processo e o modelo de lançamento de cada um.

A gravadora resistia. Não por não acreditar no talento do músico, mas por não conseguir lucrar como anteriormente. Prince estava cada vez mais ambicioso e seus projetos cada vez mais caros. Os álbuns, sempre criados em volta de grandes conceitos, viraram megaproduções com vídeo – muito antes da tendência recente dos “álbuns visuais” – e cenários exuberantes que tornavam as turnês cada vez menos rentáveis. Além de tudo, a companhia argumentava que o curto intervalo entre os lançamentos, dada a prolificidade de Prince, dificultava o trabalho da equipe de marketing da Warner.

A performance comercial pouco impressionante de Diamonds and Pearls (1991) e Love Symbol (1992) ajudou a azedar o caldo. Apesar de puxados por bons singles, os dois álbuns são repletos de composições medianas, muito aquém do que Prince havia mostrado anos antes, marcadas por tentativas destrambelhadas de se aproximar do hip-hop. Isso sem falar que, na mídia norte-americana, esses álbuns competiam com o auê em volta do Nirvana e toda aquela geração do rock, enquanto o mundo pop ainda se deleitava com a pompa de Madonna e Michael Jackson. Parecia simplesmente não haver espaço para um artista como Prince na lógica de mercado estabelecida após 1990.

A queda de braço pendeu de vez para o lado da gravadora em 1993, quando se descobriu que Prince havia encomendado a prensagem de The Undertaker, um álbum gravado ao vivo a partir de jam sessions e que incluía um cover de “Honky Tonky Women”, dos Rolling Stones, e uma regravação de “Bambi”, faixa lançada em seu álbum homônimo de 1979.

Ao descobrir que Prince já havia encomendado a prensagem dos CDs de The Undertaker pelas costas da gravadora, a Warner mudou de tom: abortou o lançamento (não antes que algumas cópias vazassem), declarou guerra ao artista. O imbróglio se arrastou por meses, e a primeira consequência dele é a primeira recomendação desta coluna.

 

Come (1994)

Come é um projeto desconjuntado que tinha tudo para dar errado. E deu: foi um álbum ignorado pela gravadora e tratado como descarte pelo próprio Prince, que pouco fez para divulgar o trabalho. Determinado a boicotar a gravadora, Prince decidiu mudar de nome (mais sobre isso em breve) e fez de Come uma espécie de despedida da persona e do nome que o consolidou.

O clima de luto se destaca logo na sombria capa do trabalho, que mostra o artista, numa foto em preto e branco, diante do portão de um cemitério. Sobre ele, em tons de cinza, lê-se: “Prince 1958 – 1993”. O álbum se transformava em lápide do pseudônimo artístico e nome de batismo do músico nascido e criado em Minneapolis.

Cansado dos embates, o artista não estava disposto a criar algo especial, inspirado, para se despedir da gravadora e optou por compilar faixas gravadas previamente para o espetáculo de dança Gram Slam Ulysses, idealizado por Prince e inspirado na Odisseia, de Homero.

Envolto por drama, sexo, morte e renascimento, Come faz acenos óbvios ao funk e ao R&B costumeiros, mas dialoga com o trip hop em faixas como “Space” e “Papa”, e incorpora techno (“Loose!”) e até ambient (na etérea e brilhante “Solo”, em que Prince brinca com a voz de um jeito que poucas vezes se viu, com ecos na vinheta de introdução de For You). Ao desistir de tentar ser cool, Prince voltou a ser cool.

Há tropeços, como “Orgasm”, apelativo encerramento em que Prince e Vanity – a principal vocalista de um dos projetos produzidos por ele, o Vanity 6 – passam quase dois minutos simulando um orgasmo teatral demais para ser levado a sério. Mas entre erros e acertos, Come é um projeto inspirado e surpreendentemente coeso. Talvez limitar a ambição megalomaníaca de Prince, especialmente em um momento tão caótico para ele, não tenha sido uma ideia tão ruim.

Destaques: “Come”, “Race”, “Letitgo”

 

The Gold Experience (1995)

Depois das trevas, o ouro. Quando Come chegou às prateleiras das lojas, Prince se ocupava com o maior número possível de lançamentos para se livrar, o quanto antes, do contrato com a Warner. Enquanto a gravadora se desdobrava para divulgar Come e The Black Album – disco gravado em 1987, arquivado dias antes de sair e ressuscitado em 1994 por Prince durante esse expurgo , o músico dava os toques finais no luxuoso The Gold Experience, lançado em setembro de 1995.

Era um lançamento importante para Prince, pois seria o primeiro álbum de inéditas sob o novo nome escolhido: o símbolo que adorna a capa de Love Symbol, uma espécie de cruz ankh reimaginada. Um ícone sem nome certo e impossível de ser escrito, o que obrigou a mídia impressa a descrevê-lo como “The Artist Formerly Known as Prince”, ou “o artista anteriormente conhecido como Prince”.

A Warner ficou numa sinuca. Como divulgar um artista sem nome? Como promover Prince enquanto, a cada aparição dele na mídia, ele escrevia “SLAVE” no próprio rosto? Mas, apoiada por um caro time de advogados, a empresa comprou a briga e seguiu em frente, chegando a enviar disquetes para as redações de jornais e revistas com uma fonte própria em que o símbolo passava a ser um caractere digitável.

Determinado a provar sua relevância artística em meio a tudo isso, Prince orquestrou um álbum vigoroso, com 12 faixas inéditas (e 6 dispensáveis vinhetas) que, para muitos fãs, são as melhores criações de Prince desde os aclamados discos dos anos 1980.

The Gold Experience é definitivamente mais empolgante do que Come, e mostra isso logo no eletrizante início com “P. Control” e a roqueira “Endorphinmachine”, a primeira de muitas performances espetaculares de Prince na guitarra ao longo do disco. Baixando a pressão, “Shhh” é uma deliciosa balada R&B com mais de 7 minutos e uma atuação louvável do virtuoso baterista Michael B.

Outros destaques são a breguinha-mas-fofa “The Most Beautiful Girl in the World”, último single de Prince a entrar no top 10 da Billboard, e a funk solar de “Shy”. Mas o melhor momento do disco é, sem dúvidas, “Eye Hate U”, faixa que poderia  perfeitamente integrar o repertório de Purple Rain ou Sign O’ The Times; um épico perfeito para grandes arenas que termina com um grande solo de guitarra e uma letra irresistivelmente clichê: “I hate you / Because I love you / But I can’t love you / Because I hate you”.

Destaques: “Eye Hate U”, “Endorphinmachine”, “Shhh”.

The Rainbow Children (2001)

Depois de The Gold Experience, Prince atravessou mares muito turbulentos, profissional e pessoalmente. Em 1996, ele conseguiu, enfim, encerrar o contrato com a Warner e se tornar um artista independente, mas no mesmo ano enfrentou a morte do primeiro e único filho, com uma semana de vida, vítima de uma rara disfunção genética. Já no ano 2000, depois de uma sequência de lançamentos confusos, voltou a assinar como Prince, mas também se divorciou pela primeira vez.

À medida que enfrentava tantas crises e mudanças, Prince foi se tornando cada vez mais religioso, e The Rainbow Children, seu 24º álbum, é fruto dessa reaproximação com a Igreja. Criado como Adventista do 7º Dia, Prince se juntou às Testemunhas de Jeová em 2001, influenciado pelo amigo Larry Graham, ex-baixista do Sly & the Family Stone que tocou com Prince no fim dos anos 1990.

O disco narra a história de um grupo de jovens determinados a reconstruir a nação onde vivem segundo as leis de Deus. Um lance meio Prince-Goes-Handmaid-Tales que é bem perturbador e problemático se levado a sério, mas compensado pela excepcional musicalidade do trabalho, com grande influência de jazz, estilo essencial na formação musical de Prince, mas pouco explorado ao longo da carreira dele.

TRC começa com a fenomenal faixa-título, uma pequena ópera-jazz que resume o espírito do projeto, e o R&B derretido de “Muse 2 the Pharaoh”. Mais adiante, o álbum segue empolgante com a levada latina de “Everywhere” – com um show de John Blackwell na bateria –, o funk pesado de “1+1+1=3″ e “Family Name” e o blues de “She Loves Me 4 Me”, que lembra Jeff Buckley. Por fim, há o groove intenso da espetacular “The Everlasting Now” e o rock “Last December”, com forte influência gospel.

O álbum está longe de ser um consenso entre os Princemaníacos, pois há quem ache o disco simplesmente… desinteressante. Mas vale a pena por provar a inquietude do artista, sempre disposto a desafiar a si mesmo e a seus fãs. O álbum também inspirou uma das grandes turnês dos 40 anos de carreira de Prince, eternizada no maravilhoso disco ao vivo One Nite Alone… Live! (2002).

Destaques: “The Everlasting Now”, “The Rainbow Children”, “Family Name”

 

Musicology (2004)

Em meados dos anos 2000, com a nostalgia oitentista despertada pela internet, o público parecia sentir saudades de um grande álbum de Prince. E depois de tanto brigar com a indústria, ele decidiu enfim entregar um trabalho com bom potencial comercial, algo que o apresentasse a uma nova geração de adoradores. O resultado foi Musicology, amado por muitos e desprezado por muitos outros.

Os fãs que acompanharam Prince durante todos os anos em que ele brigou com a Warner, acostumados a passar por périplos apara conseguir cópias raras de álbuns lançados com distribuição deficiente, viram em Musicology um movimento covarde. Foi como se Prince cedesse aos apelos que renegou por tanto tempo, uma crítica severa demais. Leve, divertido e bem produzido, o álbum mostra um artista a fim de celebrar quase 30 anos de carreira fazendo o que sempre foi uma de suas especialidades: arquitetar belíssimas faixas pop.

O carro-chefe do álbum foi a faixa-título, primeiro single e primeira do tracklist, com uma das mais nítidas odes a James Brown das muitas que Prince fez ao longo da vida. Em alguns momentos, Musicology soa bem nostálgico, mas de um jeito bom. Dois exemplos são as ótimas “Life ‘O’ the Party” e “If Eye Was the Man in Ur Life”, com timbres e arranjos que reverberam a obra de Prince nos anos 1980; e “Call My Name”, vencedora do Grammy de Melhor Performance Vocal Masculina de R&B, é simplesmente uma das faixas românticas mais bem-arranjadas e bem-interpretadas de todo o catálogo dele.

Há quem diga que 3121 (2006) ou Planet Earth (2007) sejam escolhas melhores dessa fase de Prince, mas Musicology traz toda a essência de um momento em que Prince vislumbrava o próprio futuro enquanto se inspirava no próprio passado. Altamente recomendado.

Destaques: Call My Name”, “If Eye Was the Man in Ur Life”, “What Do U Want Me 2 Do?”

 

HITnRUN: Phase Two (2015)

O último álbum de estúdio de Prince não foi feito para ser o último. Sequência ao irregular HITnRUN: Phase One (2014), o disco foi o segundo do que teria sido uma série de lançamentos simultâneos à turnê HITnRUN, em que Prince era acompanhado pelo trio feminino 3rdEyeGirl.

Phase Two é composto por músicas gravadas em períodos diferentes, algumas datadas de dois ou três anos antes. Mas, ironicamente, revelou-se o melhor trabalho de Prince em praticamente uma década. O segredo está na maneira como o disco foi arranjado: depois de tropeçar em arranjos eletrônicos pseudomodernos em Phase One, Prince retornou às influências de rock, funk e R&B em Phase Two, e estava muito empolgado por tocar com o 3rdEyeGirl, a ponto de soar confiante como não se via em muito tempo.

O disco começa devagar com as genéricas “Baltimore” e “Rock N’ Roll Love Affair”, mas pega embalo no suingue de “2 Y. 2 D.” e explode no excelente soul apaixonado de “Look at Me, Look at You”. Em “Stare”, Prince mostra estar totalmente confortável com a nostalgia em torno de si fazendo uma citação direta à clássica guitarra de “Kiss”, hit de 1986, e “Xtralovable” soa como Bruno Mars gostaria de ter soado na overdose retrô de 24K Magic (2016).

A segunda metade do álbum oscila entre faixas mais inspiradas – como o funk-jazz “Black Muse” e a breguinha & emocionante “Revelation”, com sax à la Kenny G e um lindo solo de guitarra – e faixas mais tolas, como “Screwdriver” ou “Groovy Potential”. Não é uma despedida à altura do que foi Prince para a música popular, mas é prova contundente de que ele ainda tinha muito, muito mesmo, a oferecer quando se foi.

Destaques: “Look at Me, Look at U”, “Revelation”, “Black Muse”.

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ARTISTA: Prince