5pra1: Steely Dan

O perfeccionismo, a devoção ao estúdio e o talento de uma dupla que foi como uma antítese ao Rock dos anos 1970 – sem, entretanto, rejeitar o Rock

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Fotos: Chris Walter

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Uma das duplas mais geniais da música nasceu pela, digamos, estranheza de ambos. Não era à toa que a revista Rolling Stone os chamava de “os anti-heróis musicais perfeitos dos anos 1970”. Donald Fagen e Walter Becker eram dois jovens nova-iorquinos que não se encaixavam na maioria da mocidade da época – especialmente a “roqueira”. Eram vidrados em Jazz, apaixonados por literatura (especialmente a beat) e, além de tudo, manifestavam personas que se aproximavam bem mais de um espírito nerd do que dos excessos e extravagâncias do ascendente Rock clássico.

O Steely Dan nasceu em 1971 e teve seu nome inspirado no livro Almoço Nu, de William S. Burroughs, no qual existe a menção a Steely Dan, uma espécie de vibrador revolucionário movido a vapor. Para além do aspecto sardônico, musicalmente, o grupo tinha como figuras centrais a já citada dupla e foi sempre rodeada pelos melhores instrumentistas de estúdio disponíveis na época. O Steely Dan, é importante lembrar, sempre foi devoto do estúdio. Ao longo dos anos, dezenas de nomes – como Michael McDonald, Bernard Purdie, Chuck Rainey, Larry Carlton, Wayne Shorter e até Mark Knopfler – passaram pelas gravações do grupo. Um deleite (ou uma maldição?) para qualquer músico, já que a dupla ficou muito conhecida por extrair o máximo possível dentro do estúdio. Sessões intermináveis, portanto, entravam sempre no pacote.

Fagen e Becker eram perfeccionistas ao extremo não apenas na hora de compor, mas principalmente durante as gravações e a mixagem de seus discos, sempre destacando todos os instrumentos com muita clareza e nitidez, criando um som quente e próximo. O grupo segue como uma referência para diversos profissionais do mundo da música: engenheiros de som, produtores, músicos (por exemplo, Ed Motta, que sempre faz questão de dizer que Aja é o melhor disco de todos os tempos) e audiófilos que querem extrair os melhores sons de seus equipamentos. É sempre recomendado soltar um disco do Steely Dan para testar caixas de som.

Jazz, Rock, Soul, Blues, Funk, Folk entram no caldeirão democrático do Steely Dan. Nas palavras do próprio Walter Becker, “nós tocamos Rock n Roll, mas com swing. Buscamos aquele fluxo contínuo, aquela leveza e aquela pressa do Jazz”. Enquanto o som é uma mistura efervescente, as letras são crônicas cheias de humor ácido e ironia, trazendo personagens fracassados, desiludidos e obsessivos. A união azeitada entre forma e conteúdo é o que sustenta essa estética tão original do Steely Dan.

O grupo se dissolveu em 1981, mas retornou em 1993 e segue na ativa até hoje. Apesar da morte de Walter Becker em 2017, Donald Fagen mantém a empreitada viva, dando continuidade aos shows, sempre com a presença de músicos talentosíssimos no palco. Aqui, indicamos 5 discos fundamentais para mergulhar no exuberante universo do Steely Dan.

Can’t Buy A Thrill (1972)

O primeiro disco do Steely Dan tem seu nome inspirado nos primeiros versos de “It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry”, presente no clássico Highway 61 Revisited 1965, de Bob Dylan. É uma estreia impactante, um cartão de visita da mistura característica do Steely Dan, ainda que, se comparado a seus sucessores, Can’t Buy A Thrill seja mais calcado no Soft Rock. O álbum é o único da discografia que conta com dois vocalistas – Fagen, à época ainda com certo receio das apresentações ao vivo, convida David Palmer. Aqui, ainda temos a chamada formação clássica do grupo, que dura até o terceiro disco.

Palmer, aliás, é o responsável pelas vozes no single “Do It Again”, um Rock suingado repleto de influências latinas e a grande canção do disco. “Reelin In The Years”, mais um hit do repertório, traz Elliott Randall brilhando na guitarra e cria uma atmosfera envolvente, jovial e nostálgica. O Jazz se sobressai principalmente no espetacular piano de “Fire In The Hole”, mas permeia discretamente cada harmonia intrincada e andamento sincopado de Can’t Buy A Thrill. Já temos também o senso de humor da dupla, como na algo beatleniana “Only a Fool Would Say That”, uma alfinetada no American Dream.

O álbum vendeu bem na época, muito impulsionado por “Do It Again” e por “Reelin In The Years”, e ocupa a posição de número 238 na lista de 500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos da revista Rolling Stone.

Destaques: “Do It Again”, “Only A Fool Would Say That” e “Fire In The Hole”

Pretzel Logic (1974)

Após o lançamento de Countdown To Ecstasy (1973), disco que passou mais despercebido do que o projeto de estreia – muito pelo fato de não emplacar singles de sucesso –, o Steely Dan apresenta Pretzel Logic, de músicas mais radiofônicas e com mel Pop, como “Rikki Don’t Lose That Number”. Com citação na intro de “Song To My Father, do jazzista Horace Silver, a faixa é a mais bem-sucedida da banda no Hot 100, chegando ao 4º lugar.

Na época, o grupo já havia ganhado fama pelo minucioso trabalho de estúdio e notamos bem esse zelo em faixas como “Night By Night” e “Parker’s Band” – homenagem ao lendário saxofonista Charlie Parker, inclusive com muitas frases ao estilo Bebop. Outro grande nome do jazz homenageado no álbum é Duke Ellington em “East St. Louis Toodle-oo” (composição de Ellington e James “Bubber” Miley) e suas inspirações no Ragtime, especialmente por meio da guitarra que emula um trombone com som mais abafado.

Pretzel Logic é também o último a contar com a formação clássica, com Denny Dias e Jeff “Skunk” Baxter nas guitarras e Jim Hodder, que, apesar de tocar bateria nos álbuns anteriores, colabora apenas com backing vocals. Após o terceiro disco, a banda intensificou ainda mais sua devoção ao estúdio, evitando ao máximo shows e turnês. O momento também marca a aparição de músicos de estúdios que se tornariam figurinhas carimbadas das sessões do Steely Dan, como Jeff Porcaro (baterista famoso por tocar no Toto) e Chuck Rainey, baixista.

Destaques: “Rikki Don’t Lose That Number”, “Night By Night” e “Parker’s Band”

The Royal Scam (1976)

No quarto álbum da banda, Katy Lied, de 1975, muitos sentiram falta das guitarras de Jeff “Skunk” Baxter, que foi tocar com o Doobie Brothers. Mas em The Royal Scam, o grupo aparentemente acatou essas críticas e montou um time formado por Denny Dias, Elliott Randall, Dean Parks e principalmente Larry Carlton, além do próprio Walter Becker. O s multitalentos nas seis cordas redundou no disco mais “guitarrístico” de toda carreira da banda. Basta ouvir os solos da faixa de abertura, “Kid Charlemagne” (canção brilhantemente sampleada por Kanye West em “Champion”). Um dos destaques do repertório, a faixa conta a curiosa história de Augustus Owsley Stanley, engenheiro de som que trabalhava com o Grateful Dead, conhecido na região de São Francisco por fazer e vender o seu próprio LSD.

Aqui, o Steely Dan segue a parceria com o produtor Gary Katz, presente desde o primeiro disco, criando músicas ainda mais polidas, bem gravadas e executadas, num nível próximo da perfeição. Por terem parado com os shows e turnês, a dedicação e a energia foram depositadas inteiramente no estúdio. E como de costume, temos camadas sobrepostas com perfeição e texturas e nuances de diversos instrumentos se sobressaindo e se contrastando em harmonia.

A capa de The Royal Scam foi idealizada, na verdade, para um disco nunca lançado de Van Morrison, o Mechanical Bliss, mas acabou sendo reaproveitada pelo Steely Dan em um projeto (gráfico e musical) que aborda as angústias de imigrantes latinos que chegavam a Big Apple buscando uma vida melhor. Há também espaço para o humor steelydaniano, como em “The Fez”, espécie de pastiche (magistralmente executado) da cena Disco reinante.

Destaques: “Kid Charlemagne”, “The Caves Of Altamira”, “The Fez”

Aja (1977)

Todo o ímpeto criativo de Donald Fagen e Walter Becker, desenvolvido desde o primeiro disco, culmina em Aja e, no dia 23 de setembro de 1977, a linguagem definitiva da dupla chegava às lojas. O sexto álbum de estúdio do grupo traz em seu nome um jeito diferente de se dizer “Ásia” em inglês, forma encontrada por Donald Fagen para reverenciar a cultura oriental, especialmente a japonesa. Aqui, na modesta opinião de quem escreve, a dupla e os músicos atingiram a perfeição que tanto almejavam. Foi como se The Royal Scam tivesse servido de aperitivo para Aja, o prato principal.

O álbum conta com mais de 40 músicos de estúdio envolvidos nas composições, incluindo o baterista Bernard Purdie e sua levada única (o “Purdie Shuffle”), ninguém menos do que Wayne Shorter no saxofone, além de muitos outros nomes de primeira. Aja traz ainda mais influências jazzistas como na épica faixa-título e em “Deacon Blues”, e abre espaço para grooves funkeados, casos de “Josie” e “Black Cow”, e muito bem-sucedidas aventuras pelas pistas e BPMs acelerados, na deliciosa “Peg”. Um clássico e uma amostra perfeita da união entre musicalidade complexa e facilidade Pop.

O resultado foi o disco mais vendido do grupo até hoje – com mais de 2 milhões de cópias comercializadas só nos Estados Unidos –, venceu o Grammy de Melhor Engenharia de Som de Álbum Não-Clássico e hoje ocupa a ocupa a 63ª posição na lista de 500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos da revista Rolling Stone. Aja é imperdível!

Destaques: “Aja”, “Deacon Blues” e “Josie” (todas)

Two Against Nature (2000)

Depois de Aja, o Steely lança o também ótimo Gaucho (1980), ainda que repleto de problemas em sua produção, desde faixas que foram perdidas a um atropelamento que deixou Becker no hospital por meses, além de uma overdose sofrida por sua namorada – o que resultou num processo da família da moça contra ele, com a alegação de que ele havia introduzido as drogas na vida dela. O Steely Dan, então, chega ao fim em junho de 1981. Durante esse hiato, Fagen ainda grava seu primeiro álbum solo, o excelente The Nightfly, de 1982, e Becker produziu Kamakiriad, segundo disco carreira de seu comparsa, em 1993, época em que eles se reaproximam.

De forma resumida, depois de muitos shows durante os anos 1990, registrados no álbum Live In America (1995), a dupla volta com tudo ao estúdio em 1997 para começa a preparar o maravilhoso Two Against Nature, lançado três anos depois. A produção do álbum segue a linha de excelência de Gaucho e dos anos 1970, mas é incrementada pelas maravilhas do computador e das produções digitais, o que dá lugar a certas experimentações, como “Janie Runaway”.

O disco vendeu mais de 1 milhão de cópias e arrebatou quatro gramofones no Grammy, incluindo Álbum do Ano – tirando o prêmio de discos como Kid A (Radiohead) e The Marshall Mathers LP (Eminem), ocasião que ficou conhecida como “A Vingança Dos Boomers”. O disco pode não ter o mesmo impacto de Aja, mas representa um retorno grandioso da banda, que ainda lançou Everything Must Go, em 2003 e seguiu em turnê até a morte de Walter Becker em 2017. Agora, o Steely Dan se apresenta sob o comando Donald Fagen, que, claro, continua contando com os músicos de estúdio mais talentosos disponíveis.

Destaques: “Gaslighting Abbie”, “Cousin Dupree”, “Jack Of Speed”

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ARTISTA: Steely Dan

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