A batida envolvente de Nídia

A DJ e produtora portuguesa fala sobre as inspirações sonoras e históricas para “95 MINDJERES”, seu mais recente álbum, lançado pelo selo Príncipe Discos

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Fotos: Marta Pina

A batida, o kuduro e o tarraxo são atualmente alguns dos gêneros mais populares entre a juventude portuguesa – todos eles estilos musicais de matriz africana e em sua maioria produzidos e desfrutados por imigrantes ou filhos da diáspora. Nídia é uma jovem veterana quando o assunto é batida: aos 14 anos já produzia e hoje, aos 26, acumula passagens por Europa, Estados Unidos, América Latina, além de alguns países do continente africano. Inclusive, foi uma passagem pelo Brasil, em 2017, que provavelmente a levou, no mesmo ano, a remixar a faixa “Pra Fuder”, no disco End Of The World Remixes (2017), de ninguém mais, ninguém menos do que Elza Soares. Atualmente, Nídia divulga 95 MINDJERES, seu mais recente disco, lançado em outubro, pelo selo Príncipe Discos.

Criada no Vale da Amoreira, em Lisboa, Nídia Matilde dos Vaz Borges é filha de pai guineense e mão cabo-verdiana e descreve uma infância permeada por muita música – batizados, aniversários e casamentos nos quais a trilha sonora ecoava produções de Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. “Me lembro muito de festas de família, porque eram as únicas festas que tínhamos direitos de ir, né? Éramos crianças”, recorda. Há, inclusive, outro músico em sua família, seu tio Rui Sangara. Mas Nídia não se enxerga exatamente como artista. “Não tenho essa coisa de dizer que eu sou artista. Sou a Nídia e faço o que faço. Primeiro foi por uma brincadeira, depois passou a ser um passatempo, depois passou a ser uma paixão”.

Entre Portugal e França, para onde se mudou com a família aos 14 anos de idade, Nídia começou a fazer música. O que era um hobby de adolescente no computador dentro do quarto – portando, segundo ela, “aqueles fones que calejavam os ouvidos” – se tornou paixão e projetos, como o Kaninas Squad e o Estúdio da Mana. O primeiro foi, na realidade, um grupo de canto e dança, com foco menor na parte técnica/tecnológica da produção de batidas. Mas com o tempo isso foi mudando.

“Não tenho essa coisa de dizer que eu sou artista. Sou a Nídia e faço o que faço. Primeiro foi por uma brincadeira, depois passou a ser um passatempo, depois passou a ser uma paixão”

Seu primeiro trabalho, o álbum Danger, veio em 2015 – ainda sob o nome Nídia Minaj –, mas foi com Nídia é Má, Nídia é Fudida (2017) que ela consolidou sua forma de produzir e espalhou sua arte pelo mundo. O projeto que colocou Nídia no mapa traz “Mulher Profissional”, faixa que carrega um gostinho de Brasil. “Sim, sim, sim. Tem coisas do Brasil. Eu faço funk também, tenho vários no meu PC”, ela conta. Na sequência, antes do mais recente trabalho, veio Não Fales Nela Que a Mentes, de 2020, outro disco que fez barulho por aí.

As referências de Nídia vão do kuduro – gênero angolano popularizado em vários países lusófonos – à batida: gênero afrodiaspórico que circula pelas periferias de Lisboa, espalhado também por nomes como DJ Marfox, DJ Nigga Fox e Tia Maria Produções. No caldeirão de Nídia ainda se misturam referências ao tarraxo, ritmo que dialoga com o reggaeton e o trap. O que todos esses gêneros têm em comum? Bom, além da clara origem de matriz africana, eles frequentemente envolvem vocais em português e composições sincopadas polirrítmicas. Aqui, a ordem frequente da música eletrônica 4/4 dá lugar a acúmulos de percussões, pratos e muito, muito gingado. É possível notar profundas semelhanças entre esses gêneros e o funk, o samba, o pagode e o pagodão, além de uma série de outros ritmos brasileiros e até latino-americanos.

“O funk é discriminado como o kuduro. Mas hoje em dia estão quebrando muitas barreiras. O pagode, quando eu penso na percussão e tudo mais, aquilo tem muito a ver com a África, os batuques. É a relação entre o Brasil e a África Lusófona”

Nídia reconhece essas muitas similaridades entre os gêneros brasileiros e os sons da África Lusófona, como o kuduro e os pancadões cariocas, além do pagode, citado por ela. Seja em termos performativos, sonoros, sociais ou políticos, os estilos se aproximam devido à óbvia fundação e enraizamento na cultura africana, mas também pelo preconceito e discriminação – em nações notadamente xenofóbicas e racistas. “O funk é discriminado como o kuduro. Mas hoje em dia estão quebrando muitas barreiras. O pagode, quando eu penso na percussão e tudo mais, aquilo tem muito a ver com a África, os batuques. É a relação entre o Brasil e a África Lusófona”.

Ao ser perguntada sobre artistas com os quais gostaria de trabalhar, Nídia cita Nicki Minaj, o veterano produtor sul-africano Black Coffe e a brasileira IZA. “Gosto muito da IZA, esquece, aquele mulherão é fogo. Também gosto muito da Ludmilla”. (Inclusive, demos boas risadas ao reparar que, tal qual Nídia, Ludmilla também homenageou, no início de sua carreira, uma cantora estadunidense com o vulgo MC Beyoncé). E Nídia diz estar animada para retornar ao Brasil em breve: “Se me convidarem, eu vou. Logo. Metam-me no avião que eu vou, quem me dera. Eu, hein?”

“Gosto muito da IZA, esquece, aquele mulherão é fogo. Também gosto muito da Ludmilla”

Ainda que para muitos ouvidos o som da mulher mais fudida de Lisboa soe experimental ou “subversivo”, Nídia conta que já ouviu de muitas pessoas que sua produção é o “lado pop” da Príncipe. No entanto, ela mesma não gosta de categorizar o que produz – “nem com mil palavras conseguiria descrever o meu som”.

95 MINDJERES

O arquipélago de Cabo Verde e o território continental da Guiné-Bissau são dois países africanos que, apesar de separados pelo mar, se conectam de algumas formas: primeiro, por conta da colonização portuguesa, o que faz com que eles tenham em comum a imposição colonial de uma mesma cultura. Porém, há um segundo fato que une as duas nações: ambas batalharam lado a lado contra Portugal por suas independências. Essa irmandade começa em 1956, quando foi criado o PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Dentre as figuras que participaram da construção desse movimento revolucionário, que trouxe liberdade e autonomia ao que viriam a ser dois Estados, são frequentemente citados Amílcar Cabral e Aristides Pereira.

No entanto, as mulheres que integraram esse movimento, construíram a guerrilha e nutriram uma revolução popular são por vezes deixadas de lado pela história. Em português guineense, a expressão mindjer quer dizer “mulher”. O título do mais recente disco de Nídia faz referência a um grupo de 95 mulheres que lutou pela independência de Guiné-Bissau. “Elas criaram esse exército para lutar contra os colonizadores e lutaram pela independência de Guiné”.

Entre essas mulheres, os nomes Titina Silá e Teodora Inácia Gomes apareceram. Silá realizou um estágio político na União Soviética nos anos 1960 e chegou a treinar o batalhão de mulheres da guerrilha que libertou a Guiné-Bissau. Em 2003, declarou, em homenagem ao dia de sua morte e à luta das demais mulheres que compunham seu batalhão, o Dia Nacional da Mulher Guineense, comemorado no dia 30 de janeiro. A comandante foi assassinada em 1973 numa emboscada de soldados portugueses que a afogaram no rio Farim, quando ela se dirigia ao funeral de Amílcar Cabral. Já Gomes veio de berço vermelho, dado que seu pai e sua mãe eram ambos comunistas e participaram dos primeiros anos da organização armada que levou à independência nacional. Teodora entra para o partido em 1962 e rapidamente se torna o braço direito de Amílcar, indo com Silá para a URSS realizar treinamentos e chegando a ser deputada pelo PAIGC após a independência da Guiné-Bissau. Essas histórias e mulheres estão representadas no título do novo disco de Nídia. “Faz parte das minhas raízes, Cabo Verde e Guiné; Guiné e Cabo Verde. Eu não queria meter o nome de um partido, PAIGC. Aí escolhi, optei por 95 MINDJERES. E eu também sou mulher – juntei o útil ao agradável”, define. Filha de imigrantes africanos e influenciada por histórias e vivências da diáspora e da luta anticolonial, Nídia também é capaz de colocar essas origens em dialogo com a experiência crescendo na Europa, vendo essa mescla como algo positivo. “Eu nasci aqui, me sinto muito nativa”.

O contexto e as inspirações adicionam camadas de profundidade a uma sonoridade que, por si só, já é interessante em 95 MINDJERES. Ouvimos sintetizadores etéreos e hipnotizantes, que alimentam batidas quebradas e fazem dessa mais uma obra única da “mulher profissional”. Todas as músicas são instrumentais, a não ser pelos samples que dizem “Estúdio da Mana” no começo de algumas produções. Entre as faixas que batem mais forte e fazem o bumbum mexer, está “É COMO?”, que dá início ao disco com os dois pés na porta e nos introduz ao mundo de Nídia; “To La”, com guitarras e sintetizadores bem tropicais, nos transporta para uma festa noturna com os pés na areia de uma praia paradisíaca; “cp” vem embalada por percussões diversas e um “tum ta tutum ta ta” irresistível; a faixa-título chega com suaves flautas e sintetizadores, mas nos surpreende com uma batida forte e envolvente; e “abcd” trilha um caminho mais introspectivo de forma inesperada e cativante.

Pelos discos e pela conversa, é fato que Nídia ainda tem um caminho longo e prolífico pela frente – principalmente porque é evidente que suas referências vão muito além do guarda-chuva da dance music. Ela se aventura por experimentações melódicas e rítmicas que, simultaneamente, abraçam a história e a contemporaneidade, o passado e o futuro, tradições e inovações, das raízes de uma enorme árvore a seus frutos já amadurecidos.

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ARTISTA: Nídia
MARCADORES: Príncipe Discos

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