A encruzilhada poética de Josyara em “ÀdeusdarÁ”

Em seu segundo disco, a cantora, compositora e instrumentista baiana navega rumo ao novo, assume a produção musical de sua obra e apresenta vibrante fusão entre percussão e violão

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Fotos: Maria Mango

A entrevista com Josyara tem gosto de reencontro e afeto. Apesar de nunca termos nos encontrado pessoalmente, uma entrevista fez nossos caminhos se cruzarem num momento em que ambas éramos novatas. Iniciávamos carreiras e vibrávamos coragem e ansiedade. No já distante 2018, no embalo do papo com Josy, eu disse que se propor a reconstruir os lugares comuns da música nordestina era o desafio de sua música e de tantos outros artistas que fazem com que você atualize sua ideia sobre a tal música regional”. Os passos seguintes da cantora, compositora e multi-instrumentista comprovaram isso e muito mais: apesar da pecha sudestina de enclausurar o outro, ela é, inegavelmente, um dos nomes obrigatórias da música contemporânea brasileira.

Com tudo que conquistou já na estreia com o álbum Mansa Fúria (2018), ela poderia só repetir a receita de sucesso. Mas ela sabe bem que não é mais a mesma de quatro anos atrás, e, também pressionada pela fase de isolamento social pandêmico, abraçou novos interesses e desejos. Quis nadar até outras margens, testar novas rotas, ser aprendiz de novos jeitos de expressar suas composições. O aprendizado autodidata de sons percussivos é incorporado às faixas de ÀdeusdarÁ (Deck) por meio de pandeiro, xequerê, atabaques, djembes, agogô e synths, além do violão, instrumento símbolo de sua identidade artística, aqui multiplicado e recortado.

Com o Y que agora se transforma num tridente de Exú, Josyara revisita sua bagagem afetiva e cultural e passa uma verdadeira peneira. O que deve ir abre espaço para o que se deseja conquistar. Refinado e minucioso, o segundo álbum de estúdio da artista não chove no molhado. Há muita ousadia e segurança em nos oferecer um trabalho que não entrega tudo em apenas uma escuta; ouvindo duas, três, quatro, cinco vezes, mais elementos se revelam. Essa atmosfera cheia de camadas dá ainda mais volume à lírica brincante, sensível e afiada da caneta de Josyara. Apoiada nas simbologias de Ogum e Exú, ela subverte linguagens, confunde e desvia caminhos com ferramentas mais polidas do que nunca. Se dê à deusa, solte o play no disco e leia o papo que batemos sobre identidade, amadurecimento e se colocar ÀdeusdarÁ.

 

Em 2018, pude entrevistar você pela primeira vez. Mansa Fúria (2018) ainda estava no processo de produção e execução, e você estava começando a ser conhecida no circuito da música independente. De lá para cá, muita coisa mudou na minha vida, acredito que na sua também. Com que Josyara-artista eu tô conversando agora?

Olhe… Acho que neste momento, é com uma Josyara mais segura, mais consciente do que faz, mais presente no trabalho. Claro, sempre me deparando com indecisões, dúvidas e medos, tá tudo junto, né? Mas acho que [agora] tem uma coragem diferente; uma coragem mais consciente do que aquela coragem jovem, de sair de casa, sair do meu lugar confortável. Hoje ela já tem outro tipo de impulso, outro jeito de levar a minha vida e o meu trabalho. Acho que amadurecimento é a palavra. Amadureci.

E como você interpreta o termo “a deus dará” e que força poética você enxergou nele para nomear seu novo trabalho?

Tudo começou com a criação da música “ÀdeusdarÁ”, que fala muito sobre se despir das coisas que pesam, de um passado que paralisa, de uma saudade que só atrapalha. É uma música em que estou dando a deus as coisas que não preciso e não cabem mais; vou deixá-las ao acaso, a deus dará. Eu quero o novo, eu quero viver o aqui e agora, quero respeitar esse meu momento, que é um momento de um caminho novo. Basicamente é uma palavra que veio com canção, e que tem um duplo sentido cantando: adeus/a deus, “adeus, saudade”, “a deus dará, eu vou deixar”, como se eu tivesse cantando adeus, mas também colocando essas coisas mais soltas de mim, sem amarras.
No meu disco, eu vejo esse termo como um contexto de desapego daquilo que me machuca, de revisão das coisas que não me servem. E a diagramação na capa do disco, que tem o meu nome cruzando o título, tem muito a ver com a imagem de uma encruzilhada, de um tritão de Exú, pensando muito na energia desse arquétipo que me atravessa. E também no lugar de um barco que navega, tenho para mim essa imagem que flutua ao acaso, mas que tá ali, posto, navegando, fluindo.

Uau, é tudo bem minucioso, né? Você nos apresenta um grande refinamento estético com essa obra. A capa é bem poderosa, com essa filosofia da encruzilhada e subversão do título. Que outras mensagens você carrega no figurino, nas cores e na sua pose?

São coisinhas que vão acontecendo. Acho que o meu trabalho, até o momento, não começa a partir de um conceito. Tanto ele quanto a história que quero contar vão aparecendo à medida que vou fazendo. Quando a obra está pronta, muitas vezes eu até me surpreendo aonde eu cheguei, e vou trazendo significados pra mim, até pra me aprofundar e expandir o que fiz.

A cor azul é uma coisa que vem me pegando, acho que é um contraponto à Mansa Fúria, onde se trabalha muito ouro na capa e nos figurinos, meu cabelo estava loiro, tem muita referência ao dourado. Neste disco, quis trazer algo diferente da primeira imagem. Os cabelos negros, longos e trançados, a prata como armadura. As cores remetem aos orixás da guerra, como Ogum, através do azul marinho e do ferro. A coisa da trança são as amarras que fluem – são leves, estão voando. É possível se desamarrar mesmo nas entranhas de uma sociedade em que os nossos corpos carregam muitas coisas, coisas pré-dispostas pela História.

O disco começa com um posicionamento político muito forte, com questões e reflexões de existência, filosofia, caminhos, então, para isso, acho que me coloco como se eu estivesse indo pra guerra, mas com plenitude, por ter consciência de quem eu sou, das coisas que eu escolhi; mesmo que de olhos fechados, sem enxergar o caminho, mas confiante de que eu vou seguir, porque eu quero seguir. Onde eu vou chegar? Eu não sei. Fecho os olhos, cabelo ao vento, tô pronta pra guerra [risos]. [No rodapé da capa] tem a diagramação do “ada”, é como se fosse a abreviação de ÀdeusdarÁ, ao mesmo tempo que “ada” remete à espada de Ogum, à espada de Iansã, a essa armadura e à ferramenta de abrir os caminhos, de proteção.

Incrível! Josyara, pensando nos eixos temáticos das canções, o álbum parece estar entre o lamento e o festejo, não fazendo oposição, mas se conversando de forma orgânica. Mesmo assim, gostaria de tensionar: ÀdeusdarÁ é mais sobre morte, vida ou renascimento?

É um pouco de tudo, sabe? Por exemplo, em “ladoAlado”, a letra questiona: Quem vai suportar essa dor? Quem investe que essa dor ainda permaneça? Quem está com a gente, quem faz essas escolhas? Digo nela: “Sambando alegra, enfrento a guerra do abandono”, que é justamente um festejo que vai aparecer de forma mais direta em outras canções. Como “bilhetinho”, que é um chamado pra alguém que você deseja, ou “Essa Cobiça”, que você se debruça em um pedido de volta, mas não pra viver a coisa do passado, mas, sim, o novo. Há um diálogo entre as músicas, elas respondem umas às outras.

A gente teve mortes reais, carnais, com essa pandemia, esse desgoverno, mortes que poderiam ter sido evitadas, e demais absurdos e descasos que a gente viu aqui e também em outros lugares do mundo. Tem luto, enquanto a gente também precisa conseguir renascer, seguir a vida, celebrando as boas lembranças e as coisas boas que chegam. É um ciclo, sabe? O lamento que tira a raiva para poder ter força pra amar, viver, porque a vida é feita de prazer também.

“O disco começa com um posicionamento político muito forte, com questões e reflexões de existência, filosofia, caminhos. Acho que me coloco como se eu estivesse indo pra guerra, mas com plenitude, por ter consciência de quem eu sou, das coisas que eu escolhi; mesmo que olhos fechados, sem enxergar o caminho, mas confiante de que vou seguir, porque quero seguir”

Quando conversamos lá em 2018, você me falava sobre o processo de um disco seu, que nem integra sua discografia ‘oficial’, e já denunciava esse sufocamento criativo no estúdio quando se é uma mulher negra querendo conduzir sua obra. Dessa experiência pra cá, você conseguiu assumir essa postura de produtora musical e diretora artística em ÀdeusdarÁ. Como você organizou esse processo, gerenciando tantas frentes autorais? Se percebeu mais pragmática, caótica, sentiu sobrecarga… um pouco de tudo?

Ah, no começo foi aquela paixão! Você vê a possibilidade de criar a sua música de outra maneira. Eu fazia um beat ali e ficava “Pô, pegar um sample, que maravilha! Posso me gravar, posso me editar, gravar a minha voz e tocar no sintetizador”, essas coisas criativas e experimentais que eu adoro. Eu nunca tinha feito isso, então fui fundo. Teve uma dedicação não só experimental-autodidata, mas também pragmática, de me dedicar muitas horas, porque eu tinha que entender quando algo dava errado, fosse com o YouTube ou com um amigo. Enfim, precisei me concentrar muito.

De todo modo, como você falou, é realmente exaustivo você se dedicar a todos os detalhes de um arranjo, de uma sonoridade, porque às vezes você perde a referência. Você escuta tanto, tanto, tanto, que acaba não entendendo se aquilo tá bom, tá ruim, se tá te representando ou não. Chega um ponto que realmente tem que fazer o que a música “ÀdeusdarÁ” fala: deixar e pronto. Aquelas pessoas que trabalham com você, no caso Rafa Ramos [que assina direção artística] estava muito presente comigo, meu amigo Lucas Martins [produtor musical] no início da pré-produção, vão te ajudando no exercício do desapego, entendeu? Houve momentos em que me questionei, em que a autocrítica foi transbordante, que me chateei, que achei que não era capaz. Mas entendi que tinha que deixar como estava  e assumir alguns erros, porque o meu momento é agora.

Outra novidade neste disco é o protagonismo da percussão, em vez do violão. Que possibilidades percussivas fizeram seus olhos brilharem e como isso alterou a forma e o lugar do seu violão?

O desejo da percussão começou com esse atravessamento afetivo da música baiana, da música afro baiana. Na pandemia, sentindo muita saudade, ouvi muito Timbalada – sou muito fã, os primeiros discos são incríveis, fantásticos! Ouvi Margareth Menezes, que, com muita honra, participou de uma das faixas do álbum, e também muita Orkestra Rumpilezz. Já tenho essa relação com a percussão por ter morado muitos anos em Salvador e me relacionar diretamente com sua musicalidade; da rua, do Pelourinho, da música contemporânea, ÀttooxxÁ,  BaianaSystem. E a percussão é que linka tantas músicas diversas, e aí começou a inspiração.

Então, também me coloquei pensando o violão de forma diferente. Em Mansa Fúria vinha muito da [tradição] da canção, da voz e violão. Já em ÀdeusdarÁ, comecei a fazer as músicas a partir de beats e um trecho de violão que, depois, destrinchava. “CLARÃO”, por exemplo, tem quatro violões, uma brincadeira de desconstruir esse instrumento. Em outras eu faço um arpejo, testo as sonoridades de diferentes afinações, uso violão barítono, batuco em violões. Ele foi pensado de outros jeitos, com outras possibilidades. A percussão é o elemento principal, mas o violão também guia. Uma influência direta foi Alfagamabetizado (1996) de Carlinhos Brown.

Em Mansa Fúria você ainda era uma artista baiana recém-chegada em São Paulo. Agora, já se passaram ao menos uns oitos anos de você morando na “cidade louca”, como cantou. Pensando em território… eu, recentemente, saí da periferia da minha cidade para morar no centro, e isso mexeu em lugares da minha identidade. Como estar há tanto tempo em SP mexe com sua identidade nordestina/baiana? E como isso escorre pra sua identidade artística?

 Eu acho que identidade é memória. Não esqueço por onde passei, de onde eu venho; isso ninguém tira de mim. Eu posso ressignificar essas memórias e expandir pra outros cantos. No momento atual, trago essa memória afetiva do carnaval, da música soteropolitana, de recôncavo, da axé music. Acho que estar em São Paulo faz com que eu sempre me lembre de onde eu venho, porque essa é uma cidade que é diversa – pessoas de todos os lugares estão aqui –, mas é aqui onde sou lembrada constantemente que não sou daqui. Eu sou sempre a diferente, que fala com sotaque; “ah, mas seu sotaque é baiano? Não é pernambucano? Paraibano?”. Em uma cidade como São Paulo Tenho sempre que afirmar que sou baiana, que sou do sertão da Bahia. São várias situações, acho que tem o lugar do meu corpo nordestino, negro, em uma cidade como São Paulo, que tem uma geração inteira de filhos de nordestinos e nortistas, é também uma cidade cheia de xenofobias. Por eu trazer o samba de roda, vão querer me colocar no lugar de regional, por exemplo. Mas, entre memórias e encontros, eu não deixo de ser quem eu sou.

“A gente teve mortes reais, carnais, com essa pandemia, esse desgoverno, mortes que poderiam ter sido evitadas, e demais absurdos e descasos que a gente viu aqui e também em outros lugares do mundo. Tem luto, enquanto a gente também precisa conseguir renascer, seguir a vida, celebrando as boas lembranças e as coisas boas que chegam. É um ciclo, sabe? O lamento que tira a raiva para poder ter força pra amar, viver, porque a vida é feita de prazer também”

Você abre com “ladoAlado”, úniac faixa com parceria, e que carrega aquele desejo por amparo, um certo desalento, sobrecarga e muitas frases que tem como ponto final uma interrogação. Mas o fim do disco – que também pode ser o recomeço, quando ouvimos em loop – surge “canto à liberdade”, faixa corajosa, autônoma, em que as buscas estão mais orientadas. O quanto “canto à liberdade” se conecta a “ladoAlado”? Você conseguiu essa nutrição desejada e isso resulta na liberdade, ou a autonomia se constrói a partir da falta? 

 Ah, menina, achei massa você ter comentado isso, porque quando eu construí a ordem do disco, realmente pensei nesse ciclo. Ele muda a chave, ele vai para um carnaval, uma festa de largo, um romance – inclusive que o Mansa Fúria não tem. No meu cunho pessoal, eu espero que essas questões e dúvidas que você comenta permaneçam, porque vai significar que eu estou viva; entender quem está ao lado… Eu vivo ainda me perguntando isso, sabe? É necessário perguntar se está bom pra gente, o que é que a gente quer… Se algo tem que ser deixado de lado para seguir lado a lado com outra coisa que eu almejo. Acho que o disco me afirmou isso, que as perguntas se ressignificam o tempo todo e que as respostas virão, à medida que a gente vai se aproximando dessa liberdade.

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ARTISTA: Josyara

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