A nova cena eletrônica gaúcha

Das festas de rua à disseminação de selos e coletivos, a música eletrônica de Porto Alegre constrói uma paisagem diversificada e efervescente

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Fotos: Ivi Maiga Bugrimenko

As festas de rua

Em 2016, o coletivo de festas de rua Arruaça, de Porto Alegre, conseguiu autorização da prefeitura para realizar uma festa aberta na Praça da Alfândega, no centro histórico da cidade. O evento reuniu cerca de 6 mil pessoas e consagrou um movimento de festas de rua que vinha se desenvolvendo há alguns anos e catalisou o surgimento de uma nova e plural cena de música eletrônica local, que vem ganhando força com artistas que bebem das mais diversas referências — do Funk ao Breakbeat, passando por Jungle e Ambient — e se articulam em selos e coletivos como o Turmalina, Coletivo T e o Zona EXP.

Fundada em 2014, a Arruaça foi uma das festas que disseminou a cultura de pista eletrônica nas ruas de Porto Alegre. Embora exista uma cena de festas de rua na cidade, o eletrônico foi entrando nos sets de maneira gradual. “Eu lembro de um período entre 2014, 2015 aqui em Porto Alegre que as pessoas gostavam muito de tocar MPB”, lembra o DJ e produtor Felix. “E aí teve uma transição que começou a ir para uma espécie de Dub, uma galera já começou a deixar mais psicodélico e mais repetitivo, tipo um beat de dub remix de uma música da Vanessa da Mata. Já não era só MPB, tinha uns mashups. E depois começou a aparecer uma galera tocando House, como os DJs GB e Ana Posada, da Arruaça”.

Para o produtor e DJ Tabu, co-fundador do selo Zona EXP e ex-integrante do coletivo Arruaça, a passagem para a música eletrônica foi uma espécie de resposta às festas fechadas que se apropriavam das ideias de outras festas. “Começou a surgir umas festas fechadas de uma galera estudante de publicidade que eram copiadaças. A gente fazia uma com matemática, e a galera ia lá e fazia uma festa com a temática muito parecida, cobrando ingresso e fazendo toda uma divulgação”, conta. “Nós começamos a ficar meio putos e daí surgiu uma necessidade da gente mudar. Tentar fazer algo que não fosse tão fácil da galera fazer igual. Quando começou a migração geral para música eletrônica acho que foi isso aí, foi uma resposta para uma cena de festas fechadas que começaram a copiar descaradamente a nossa estética, o nosso estilo”, analisa.

Felix, Pianki e Tabu

As festas de rua foram uma espécie de incubadora de talentos ou um laboratório de sons para DJs e produtores que anos depois passaram a aperfeiçoar as técnicas de mixagem e lançar suas próprias tracks. “Primeiro eu fui como público, porque conhecia a galera que estava fazendo as festas. E às vezes eu tocava. Toquei em algumas das primeiras festas, bem no início. A gente botava um geradorzinho, um P.A. de nada assim e o laptop. Não tinha nem CDJ, era direto no Virtual DJ mesmo”, conta o DJ Felix, que já tem dois EPs e dois álbuns lançados. O mais recente é Funkthereal, que saiu pelo selo ucraniano Kiew Centraal e combina elementos de Electro, Breakbeat e pontos de Funk Carioca.

“Posso dizer que sou cria desses rolês de rua. Muito pelo trampo pesado que os coletivos Arruaça e Plano fazem por aqui, trabalho que reconheço como de qualidade”, diz o DJ e produtor Marcelulose, que hoje coordena o selo Raio X. “Nessas festas eu vi novos projetos musicais surgirem e também a própria inspiração para muitos, além de ser uma pista de dança com senso de coletividade maior e também muito mais plural”. Suelen, DJ e co-fundadora do coletivo negro Turmalina, também ressalta a importância da Arruaça. “Foi um canalizador de muita coisa que aconteceu na cena de Porto Alegre. Foi um coletivo que mostrou a potência de festa de rua e foi uma das primeiras que eu frequentei, junto com a festa Base”, conta.

Entre 2013 e 2016, a DJ e produtora Nara Vaez ajudou a organizar festas como a Cerne e o Ritual da Bruxa Moderna. Ela relembra esse movimento dos eventos nos espaços públicos: “A maior experiência que vivi aqui em Porto Alegre foi essa onda de festas de rua, que a gente apelidava carinhosamente de ‘geramor’, porque sempre passava um chapéu pra galera contribuir com o aluguel do gerador. Até 2016 era um lance muito corriqueiro, toda semana algum ponto da cidade com uma ravezinha urbana, depois foi baixando por restrições da prefeitura e uma cena que se fragmentou um pouco também. Mas eu diria que de 2013 a 2016 foram os anos de ouro aqui em Porto Alegre nesse sentido, foi quando conheci a maior parte dos meus amigos e era muito inspirador estar aqui. As festas eram tão legais que tinha até intervenções teatrais, projeção e os caralho, tudo feito no amor mesmo, sem nenhum retorno financeiro”. Ela conta que esse ambiente foi um estímulo criativo para lançar os seus trabalhos. “Só fui soltar umas primeiras músicas no Soundcloud em 2018, e meu primeiro EP saiu dois meses antes do lockdown, então nem tive a oportunidade de performar ele aqui”.

Nara Vaez

Criando um estilo próprio

Conforme a música eletrônica ganhava terreno, foram sendo formados novos coletivos, com suas próprias causas e identidades artísticas. “A gente se deparou com um elitismo na música eletrônica, com uma estética que a gente não gostava, que apelava para um ‘ser chique’. Uma parada polida. Então peitamos isso e buscamos um outro estilo”, diz Tabu.

Inspirando-se em gêneros e artistas que combinavam o groove com uma sonoridade suja (como o Underground Resistance e o Juke), Tabu, DJ ERAM e Ernesto Scheffer criaram o selo Zona EXP, que desde 2018 vem lançando álbuns com propostas experimentais em torno de BPMs acelerados e sonoridades distorcidas, como Quase, álbum de estreia de Pianki, e Colapso Nervoso, do Dj Mtn9090. Em 2020, eles soltaram a compilação Zona de Isolamento, um verdadeiro cartão de visitas da sonoridade frenética e áspera da label.

Os artistas ligados à Zona EXP aparecem também no selo Raio X. Criado pelo DJ Mtn9090 e tocado em parceria com os produtores Marcelulose e Baroque Angel. No início, os álbuns eram lançados com pseudônimos — Nara Vaez, por exemplo, adotou o nome Sara no EP 199. “O Raio X surgiu muito de uma necessidade de espaço para expor e compartilhar, tanto composição de músicas como visuais. Em si ela não funciona como selo e pende mais para uma biblioteca, mas aos poucos isso vai mudando também, mas com o objetivo final de gerar espaço para artistas independentes”, explica Marcelulose, ressaltando que todas as faixas de todos os discos do Raio X estão disponíveis para download gratuito, facilitando a distribuição de tracks em alta qualidade para os DJs.

“A gente se deparou com um elitismo na música eletrônica, com uma estética que a gente não gostava, que apelava para um ‘ser chique’. Uma parada polida. Então peitamos isso e buscamos um outro estilo” – Tabu

Turmalina e os negros do Sul

Nesse mesmo cenário, DJs e produtores negros da cidade passaram a se articular contra o apagamento que sofriam na cena de música eletrônica e na cultura da local. O coletivo Turmalina, criado em 2017, nasceu de um aquilombamento para combater a exclusão dos negros como também de busca por liberdade artística.

“A gente estava sempre nos mesmos lugares, nos mesmos rolês, mas cada um com seu grupo de amigos brancos”, lembra Saskia, co-fundadora do Turmalina e autora de um dos trabalhos solo mais fortes e representativos da nova cena gaúcha, o álbum Pq (2019). Foi na Casa Frasca — uma casa aberta a apresentações underground, com programação semanal — que a DJ Suelen Mesmo (que trabalhou na casa) e os produtores Felix e Pianki, além de Saskia (que discotecou pela primeira vez na Frasca). “A gente percebeu que seria melhor a gente se juntar, porque passaram alguns anos de cena que a gente estava sempre nas festas mas a gente nunca era chamado para tocar. Isso era comum. Então a gente resolveu se unir, criar o coletivo Turmalina para criar nossa própria festa”, explica Suelen.

Saskia (Foto: Julia Kayser)

“Tu não vê negros no Sul porque eles tão mandando Porto Alegre se fuder. Na minha opinião, os pretos mandaram os gaúchos tomar no cu e se ausentaram do avanço rio-grandense. Acho que o negro quis se separar da história rio-grandense. Ao mesmo tempo, é o terceiro estado com mais terreiro e o quarto estado com mais escolas de samba do Brasil” – Saskia

“Quando eu assisti aquele documentário Pump up the volume: A history of House music foi que eu entendi o processo de higienização e de apropriação que a música eletrônica foi sofrendo ao longo dos anos”, conta Mari Gonçalves, DK que faz parte do Turmalina e da Arruaça. “Vi o filme e fiquei pensando na falta de representatividade. A gente ia para os rolês e não se via”.

“Eu já ouvi várias vezes de DJs renomados que eles criam as festas para poder tocar nelas. E acho que a nossa necessidade de criar a Turmalina criou esse espaço de liberdade”, destaca Saskia. “Eu não me lembro de termos um acordo sobre o que a gente ia tocar. Foi um processo natural e de liberdade para a gente tocar o que quisesse. Na primeira Turmalina praticamente não teve eletrônica. Teve Rihanna, tocou Racionais, teve Funk, Tecnobrega, Trap”.

O movimento do Turmalina — que foi selecionado do edital Natura Musical 2020 com um projeto de formação e oficinas para DJs negros — pela afirmação da identidade negra no Rio Grande do Sul faz parte de uma resistência ao histórico extermínio da população negra no estado. Na conversa com Saskia e Suelen, elas relembram o fato histórico do Massacre dos Porongos, ocorrido durante a Revolução Farroupilha de 1835, que declarou a independência da então República Rio-Grandense. Na ocasião, o grupo de Lanceiros Negros que guerrearam com a promessa de liberidade no final do conflito foram traídos pelos revoltosos, uma vez que a maioria dos farroupilhas não era abolicionista. Os farrapos não sabiam o que fazer com aqueles homens que seriam devolvidos aos seus antigos senhores. A solução encontrada foi um ataque surpresa, ao amanhecer, contra os combatentes negros que estavam sem munição. No dia 14 de novembro de 1844, mais de 100 negros foram assassinados e os que sobreviveram foram enviados à corte brasileira.

“A data desse massacre fatídico é feriado aqui no Rio Grande do Sul. E a galera comemora”, contextualiza Suelen. “E isso também é colocado dentro do nosso hino regional, com um verso: ‘Povo que não tem virtude acaba por ser escravo’. E isso é ensinado! Tem um acampamento que é gigantesco, onde os gaúchos vão fazer churrasco, ficam semanas, um mês inteiro nesse acampamento comemorando a data em que centenas de pessoas negras foram mortas”, conta. Saskia complementa: “Tu não vê negros no Sul porque eles tão mandando Porto Alegre se fuder. Na minha opinião, os pretos mandaram os gaúchos tomar no cu e se ausentaram do avanço rio-grandense. Acho que o negro quis se separar da história rio-grandense. Ao mesmo tempo, é o terceiro estado com mais terreiro e o quarto estado com mais escolas de samba do Brasil”, analisa.

Para Saskia, o coletivo teve um efeito transformador no seu conhecimento musical — e na vida. “As minhas referências estavam bem embranquecidas até eu conhecer e andar com a Turmalina”, conta ela. “Me lembro inclusive que a primeira festa da Turmalina me marcou muito quando a Suelen tocou ‘Da Ponte Pra Cá’, dos Racionais. Era uma coisa que eu sabia o que era, sabia que vinha da rua, mas eu nunca tinha tido acesso realmente. Eu tentava ouvir Racionais em casa e a minha mãe — que era punk — achava que era muito pesado. E ali eu entendi o que era essa ponte, ali caiu a ficha do que estava sendo dito pelo Mano Brown, sabe? Eu me lembro que eu chorei naquela pista. Às cinco horas da manhã e um monte preto na minha casa, todo mundo cantando “Não adianta querer, tem que ser, tem que pá/ O mundo é diferente da ponte pra cá”…. Aquilo mudou a minha vida e eu entendi que a Turmalina era necessária para mim e acho que ela é necessária para outras pessoas”, completa.

Suelen Mesmo

O Coletivo T

Assim como o Turmalina aquilombou artistas negros, o Coletivo T reúne DJs, performers e produtores TLGBQIA+.Criado em 2018 pelos DJs Baroque Angel (Bruno Louzada) e PV5000 (Pétrus Vargas), o grupo vem desdobrando suas ações, tendo lançado o T REC., selo que tem pretende incentivar a produção de artistas dissidentes. “O coletivo foi formado com o intuito de fomentar a cena da música eletrônica underground de Porto Alegre, a qual falhava muito na representatividade queer na época. Por causa dessa demanda não atendida nós criamos a T, inicialmente como a primeira festa de música eletrônica produzida inteiramente por pessoas TLGBQIA+ de Porto Alegre, nos consolidando posteriormente como coletivo em 2019, com a entrada da nossa terceira integrante, Isabella Pereira aka Bella”, explica o DJ Baroque Angel.

Ele fala também sobre a importância da festa e do coletivo como um espaço de pertencimento. “Desde as primeiras edições da T, quando começamos a conquistar um público fixo, eu pude perceber que a relação que o público da T tinha com a festa era muito diferente do vínculo que eu tinha com outras festas que eu mesmo frequentava em Porto Alegre”, pontua. “O impacto que a T teve na minha vida foi enorme simplesmente por me proporcionar uma plataforma para que eu virasse o foco e a atenção a outros artistas TLGBQIA+ emergentes, mas sinto que o impacto de verdade foi na percepção de outras pessoas da comunidade em relação à cena, e no espaço em si que acabou se construindo. Sinto que fomos bem-sucedidos na nossa prioridade número um, que sempre foi criar um espaço seguro onde pessoas TLGBQIA+ fossem ouvidas e respeitadas”.

Mais recentemente o DJ Nog4yra entrou no time e, no início de 2021, o coletivo deu início à T REC., uma subdivisão como gravadora independente. Em seu primeiro lançamento, eles reuniram 20 artistas TLGBQIA+ latinoamericanxs na coletânea VITAMINA T, que apresenta um olhar ampliado sobre o universo musical da comunidade. Além disso, o Coletivo T também lançou Tramóia, um álbum realizado com apoio da cerveja Beck’s que reúne faixas dos quatro artistas do coletivo. “Esse projeto conta a história sonora da nossa trajetória na arte, tendo momentos discrepantes e nervosos, com synths ácidos e kicks divergentes, e criando uma ambiência para deixar o ouvinte envolvido na nossa trama, no nosso plano”, detalha.

Mas a nova cena eletrônica de Porto Alegre não se limita à música de pista. A produtora Viridiana explora uma paleta de sons mais introspectivos e etéreos. Em vez das festas de rua, a sua escola as práticas de música experimental e métodos da improvisação, com as quais tomou contato quando tocava com o Medula — grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul coordenado pelos professores e compositores Isabel Nogueira e Luciano Zanatta.

Viridiana começou a se envolver com música tocando um violão e fez faculdade de música. A experimentação eletrônica confluiu com uma pesquisa sobre gênero e sexualidade, além da sua própria experiência enquanto trans não-binária. “Eu me tornar compositora e produtora surgiu muito nessa intersecção de produção no computador com esse pano de fundo de pensar em como a minha transexualidade, a minha travestilidade fazia sentido — ou não — dentro desse espaço”, conta ela, que prepara o lançamento de seu primeiro álbum para este ano, com apoio do edital Natura Musical.

“Tendo esse olhar virado para o computador, comecei a enxergar os sons quase como uma massinha de modelar. Gravei a voz, mas quando ela está ali dentro é um jogo livre. E para mim isso foi um processo muito importante até porque começou a retroalimentar para minha transição de gênero também. A voz, por exemplo, é um marcador de gênero muito forte. Quando eu fui aprendendo altas coisas de autotune, umas coisas de distorção de formante, de glitch, isso virou muito libertador" – Viridiana (Foto: Ana Beatriz Vieira)

Na faixa-título do EP Androgênia (2017), a produtora canta sobre essa dissidência de gênero: Esses olhos, esses pelos, essa voz, não é minha”. Para Viridiana, a tecnologia e as possibilidades da produção eletrônica e digital serviram de recurso para expressar uma poética queer. “À medida que eu fui aprendendo as coisas e tendo esse olhar virado para o computador, eu comecei a enxergar os sons quase como uma massinha de modelar. Eu gravei a voz, mas quando ela está ali dentro é um jogo livre. E para mim isso foi um processo muito importante até porque começou a retroalimentar para minha transição de gênero também”, explica. “A voz, por exemplo, é um marcador de gênero muito forte. Quando eu fui aprendendo altas coisas de autotune, umas coisas de distorção de formante, de glitch, isso virou muito libertador”.

Das festas de rua à disseminação de selos e coletivos, a música eletrônica de Porto Alegre vem construindo uma cena diversificada, que, mesmo com a pandemia, continuou produzindo e se conectando a outros artistas e coletivos do país.

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