Anime & Jazz: o improviso a serviço da fantasia

10 exemplos de como os dois se cruzam, se combinam e se entendem

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Fotos: Reprodução

O jazz é uma contradição – é complexo, mas é sedutor; é aberto ao groove, mas adepto de repetições. É experimental e preciso, é livre e, ao mesmo tempo, exigente. Tudo isso ecoa uma característica primordial do jazz: ele é camaleônico – e de difícil definição. Entre subgêneros e ramificações, o jazz conta diferentes histórias simultaneamente. Mas, além disso, ele conta essas histórias em um tempo próprio e verdadeiramente único. A forma tão exclusiva de criar narrativa se torna preciosa para dar impulso a outras histórias – e uma junção prolífica é a entre o jazz e a animação japonesa.

Por vezes, o anime é diretamente relacionado ao pop japonês maximalista, com sequências de aberturas frenéticas e de muita ação. Ou, também, é associado a canções mais pautadas pelo folk, especificamente em séries de romances denominadas Shoujo – voltados a um público cis-feminino, com referências a ritos de passagem da adolescência. Entretanto, o jazz é um dos gêneros mais versáteis para narrativas dos animes. Ele ganha sentidos distintos, aparece de diferentes formas e, por conta de suas polissemias, as narrativas são sempre beneficiadas.

Para ilustrar a rica interação entre jazz e anime, separamos 10 exemplos que demonstram a variedade de sentidos e texturas que surge no encontro entre as duas linguagens.

*Agradecimento especial ao Matheus Santa Cruz (@mttscz )

 

Lupin The Third – ルパン三世

Lançado no início da década de 1970, o anime Lupin The Third traz uma aventura emocionante de ladrões experientes e tesouros valiosos. É daqueles animes que te prendem na cadeira, tamanha a ansiedade em ver a trama se desenrolar. Com a disco e o funk ditando boa parte da estética pop da década, é curioso ver como o jazz também toma um pouco desses recursos e é introduzido a partir de seu funcionamento único. A abertura de Lupin The Third é um ótimo exemplo de como ambas as referências se juntam perfeitamente, também bebendo de referências como as trilhas séries de espiões norte-americanas do mesmo período. O arranjo e a composição foram refeitos em 2002 pelo músico Yuji Ohno e o conjunto Explosion Band – o que já dá uma ideia da sensação frenética e animada que se perpetua durante a série.

Kids on The Slope

Este anime não apenas coloca o jazz como norte da trilha sonora, como faz do gênero o protagonista principal da narrativa. O anime acompanha a história de três estudantes do ensino médio que encontram no jazz um universo rico a ser explorado e que se torna a base da amizade entre os 3. Para isso, o anime contou com a produção musical de Yoko Kanno, uma figura chave nas trilhas sonoras de animes – principalmente, naqueles em que a trilha é parte essencial da apreciação. Com Takashi Matsunaga nos pianos e Shun Ishikawa na bateria, as faixas perpassam por diferentes momentos do jazz, do cool ao bebop. A paleta de subgêneros embala diferentes naturezas e impasses da amizade na adolescência. Toda a confusão e intensidade é abrigada com maestria pelos movimentos súbitos e ágeis do gênero. A faixa selecionada traz uma interpretação de dois temas famosos do jazz ocidental: “My Favourite Things” e “Someday My Prince Will Come”, cujas versões mais famosas foram interpretadas, respectivamente, por John Coltrane e Bill Evans.

Gundam: Thunderbolt

Robôs gigantes são parte fundamental da cultura japonesa de anime. Entre tantos títulos, Gundam talvez seja, nesse sentido, um dos mais emblemáticos – pau a pau com o delírio filosófico de Neon Genesis Evangelion. Especificamente em Gundam: Thunderbolt, uma das subdivisões da série, encontramos uma das mais ambiciosas junções da animação japonesa moderna: robôs e jazz. É curioso como estes dois elementos se colocam juntos, principalmente partindo do ponto que cada uma das partes é oposta em relação à outra no que diz respeito à movimentação – os robôs, peças mecânicas e controladas, e o jazz, uma linguagem do livre improviso e de poucas restrições. É um jogo de símbolos que, por sua vez, constrói cenas extremamente agitadas e frenéticas de batalhas, ao som do virtuoso piano de Naruyoshi Kikuchi.

Baccano!

Ambientada durante a época das proibições e da lei seca nos Estados Unidos, este anime realiza uma viagem mais longínqua ao jazz – antes de Miles Davis e John Coltrane. As referências aqui dizem respeito à fase germinal do gênero, em Nova Orleans com as bandas de fanfarra da década de 1920 e 1930. Apesar de ser um formato menos experimental e virtuoso quando comparado a outras faixas dessa lista, o jazz aqui também serve à narrativa do anime, principalmente na forma como são abordados diferentes pontos de vista sobre uma mesma história. A trilha foi produzida por Makoto Yoshimori.

Kekkai Sensen & Beyond

Voltando para uma abordagem mais contemporânea, a trilha sonora de Kekkai Sensen & Beyond se passa em Nova York, após uma fissura ser aberta e conectar a grande metrópole a uma dimensão abissal onde transitam criaturas sinistras. Apostando mais em um fusion comportado, as músicas do anime unem aquele sentimento cool do jazz, porém revisitado sob um viés mais pautado no groove. A música selecionada tem participação do trompetista Takuya Kuroda, um exímio músico que sabe improvisar, mas envolver suavemente.

TRIGUN

A proposta musical que perpassa TRIGUN é referenciar diferentes momento da história do jazz. Em uma espécie de cenário pós-apocalíptico à la Mad Max, o anime aborda a contradição em volta de Vash, um dos pistoleiros mais procurados do mundo, mas, que tem uma postura muito pacífica e não-agressiva. Esse paradoxo da personalidade criminosa vs. pacifista, combina perfeitamente com o jogo de estéticas sonoras. Nesta faixa, percebemos que há um toque de cool jazz nos pianos, mas a abordagem rítmica é mais contemporânea, pontuando uma cadência frenética, confusa e, especialmente, irresistível.

NUJABES e Samurai Champloo

Apesar de ser algo associado às novas gerações, o Lo-Fi hip hop tem suas origens há quase 20 anos. Um dos personagens centrais nessa mistura de jazz e hip hop de baixa fidelidade é o DJ e produtor japonês Nujabes. Há vários registros pelo YouTube de beats obscuros do produtor, porém, para essa lista, convém destacar umas trilhas sonoras mais icônicas para contemplar a história do jazz na cultura de samples. O famoso Samurai Champloo é um dos primeiros animes que transpõem a figura clássica do samurai para um contexto menos usual. Aqui, as lutas de katanas e as questões da honra do guerreiro são interpostas por beats concisos e minimalistas de hip hop – e o jazz mostra novamente como seu funcionamento único acaba servindo a narrativas menos usuais. Fazendo com que seja perfeitamente normal ver um samurai lutando com uma trilha sonora contemporânea.

Michiko to Hatchin

O anime Michiko to Hatchin é mais uma demonstração de que há espaço de sobra para que sonoridades brasileiras se interpolem com o jazz. Munido de uma trilha sonora agitada e marcante, o anime conta a história de um país fictício que bebe do imaginário cultural carnavalesco de Rio de Janeiro, Recife e Olinda. Durante cenas de perseguição aceleradas, o jazz abre espaço para que percussões fortes do samba brasileiro entrem em cena, transformando as sequências de ação em um grande compilado de sonoridades – um caos inteligível. Para que esse diálogo pudesse ocorrer, o produtor da trilha, Shinichiro Watanabe, colaborou juntamente com Alexandre Kassin, grande produtor e compositor brasileiro. A intenção foi trabalhar o samba de forma menos estereotipada e mais natural.

Persona 5

Apesar de ter uma versão animada, Persona é uma consagrada série de jogos eletrônicos produzida pelo estúdio Atlus. Todos os jogos da série têm premissa semelhante, porém o universo criado para cada jogo é o que atrai tantos fãs. Basicamente, estudantes do ensino médio descobrem que existe uma dimensão secreta repleta de criaturas medonhas e que o que é feito nessa dimensão afeta diretamente a rotina deles durante a escola. Em um misto de RPG de turnos e simulador de vida, Persona é um jogo bastante ambicioso e especificamente o quinto volume da série traz uma ampliação dos universos trazidos até aqui. Para a trilha sonora, o diretor musical Shoji Meguro utilizou o jazz como base para se fundir a gêneros como o funk, a bossa e o R&B. E esse jazz metamorfo é que seria capaz de abrigar e domar as loucuras interdimensionais de Persona.

Cowboy Bebop

Para encerrar a lista, não poderíamos deixar de falar de um dos animes mais jazzeados de todos. A trama de Cowboy Bebop acompanha caçadores de recompensa realizando diferentes missões pela comunidade galáctica e, a cada episódio, uma nova aventura se inicia e termina. Cada episódio tem em seu título alguma referência de movimentos do jazz – o criador, inclusive, diz que três personagens anônimos do desenho, na verdade se chamam, respectivamente, Antônio, Carlos e Jobim. A trilha sonora foi reproduzida pelo grupo Seatbelts e traz diferentes abordagens do jazz – do mais rápido e insano, até o mais pacífico e suave (beirando a ambient music). Cowboy Bebop é um dos grandes clássicos do anime da década de 1990 e, certamente, a trilha sonora tem papel fundamental nisso. Não só por musicar uma narrativa no espaço sideral, mas pela forma como a trilha não procura apenas sonorizar “banalmente”. Em momentos mais psicológicos, o jazz brilha para compreender diferentes sentimentos. Como representante da trilha, o tema de abertura é um ótimo primeiro passo para desvendar essa icônica produção da animação japonesa.

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Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique