Autêntico e acelerado: Puterrier ê ê

Um perfil do MC carioca – entre músicas colombianas, vivências no baile funk, as poesias do avô e a estética “Atabagrime”

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Fotos: Divulgação

Na casa em que Puterrier cresceu, na comunidade Bandeira Dois, zona norte do Rio de Janeiro, sua mãe ouvia muito pagode, especialmente Alexandre Pires, enquanto seu avô era um grande fã de rock, apaixonado por Beatles. A primeira inclinação para a escrita, o apreço e o fascínio pela palavra, inclusive, vieram do avô, que escrevia poesias. Hoje, o que salta aos ouvidos dos produtores que o cercam, além do conteúdo, é justamente sua forma de soltar letras, fonemas, sílabas e palavras. Atabagrime (2022) não deixa esconder. “Atualmente, a indústria está sugando muito essa ideia do freestyle, do fazer na hora, escrever na hora, mas o Puterrier nunca desapegou”, conta Biggie Diehl, produtor musical que assina as faixas “Muita Coisa”, com participação do rapper mineiro FBC, e “Putaria 2000”, que hitou no TikTok e hoje coleciona sete milhões streamings no Spotify. “Puterrier escreve, gosta da letra e fica com ela por meses até escolher um beat. Quando a gente caiu para o estúdio foi bem mais tranquilo porque ele já sabia como eram todas as letras e já tinha uma ideia da intenção que ele queria passar com cada uma”, completa.

Feito em um mês, Atabagrime é um disco sobre a relação do Puterrier com a música. Ele já tinha tentado engatar uma carreira algumas vezes antes do sucesso de “Putaria 2000”, com projetos, pesquisas sonoras e vulgos diferentes. Puterrier alimenta essa ideia de viver de música, entre shows e estúdios, há muito tempo — para se ter uma ideia, ele lançou seu primeiro clipe no YouTube com 12 anos de idade. Nessa época, o seu vulgo era seu sobrenome: Mitoso. Depois, começou a fazer trap e trocou de vulgo mais duas vezes. A carreira não engatou e ele parou de pensar em música, como se tirasse a ideia da cabeça. Mas, ideias não são matéria simples. Elas persistem, amadurecem, latejam, procurando uma forma de voltar à tona. Depois de um ano sem fazer música, ele chegou a uma festa com um Kenner novo e um amigo comentou: “caralho, esse Kenner é de puterrier”. Assim, com essa entonação afrancesada em um palavrão como elogio. Um puto chique demais, um puterrier. Ele foi para casa e escreveu uma letra, chamou-a de “Puterrier” e decidiu que esse seria também seu vulgo. Não queria desistir.

“Puterrier é um monstro no estúdio: escreve rápido, rima rápido, tem presença” – Ávila

“Sai da frente, abre espaço, nessa porra eu tô destinado, eu sou brasileiro e contra o Estado”, canta em “Atabagrime”. Ainda na mesma música, ele afirma: “Já fui herói, já fui vilão, agora eu sou o que eu tenho que ser”. Em “Dando Ritmo”, dispara: “Muito querido, fiel, você sabe, eu nasci pra isso, faço com vontade”. Mais que um disco sobre putaria, Atabagrime é um manifesto de Puterrier para ele mesmo: quando ideias se tornam sonhos, não se deve abandoná-las. “Putaria 2000” foi lançada em novembro de 2021, dois meses depois de “Puterrier”, e foi a grande guinada na carreira do MC. “Eu fiz o disco em um mês”, conta Puterrier, “Era para eu ter feito há vários meses, só que eu fui vivendo, começando a carreira de artista e isso estava fluindo. Eu estava mais vivendo do que fazendo música. Só que a gente tinha que aproveitar a eleição e a Copa do Mundo para puxar a bandeira do Atabagrime. Quando eu vi, me falaram: tu tem um mês para fazer o bagulho. A gente fez tudo em um mês, sete clipes em dois dias, ritmo acelerado”.

“O Puterrier é um monstro no estúdio: escreve rápido, rima rápido, tem presença”, descreve Ávila, produtor musical que assina “Aquecimento”, “Concubina” e “Ditando Ritmo”. Segundo Pedro Bala, produtor musical do disco e DJ que acompanha Puterrier nos palcos, as maiores referências para a sonoridade de Atabagrime vieram dos podcasts de funk e especialmente do repertório de funk pré 2010. “A maioria das produções começam puxando um fundamento do funk, depois a gente vai botando uns elementos de grime — hi hat, clap, sem contar o 808 que dá muito essa cara do disco e que até aparece no funk, mas não da forma que a gente usa”, elabora.

Já Ávila trouxe as referências da sua pesquisa sobre a Colômbia e a República Dominicana, através de gêneros musicais como dembow e moombahton, além da inspiração direta da música “Culo”, do Pitbull, para fazer a faixa “Concubina”. “Eu assinei uma produção do disco, gravei um monte de faixas com Puterrier ao longo do processo, umas que saíram como single, outras estão para sair ainda, mas a minha participação maior no Atabagrime foi como direção artística mesmo”, conta Biggie Diehl, que se prepara para lançar um disco em maio com participações de Puterrier e a produtora e DJ LARINHX. “A minha função em Atabagrime era guiar e trabalhar com ele a estética do que a gente ia pegar para samplear, seja um pedaço de voz, seja um instrumento bem brasileiro, como a cuíca. Foi uma chuva de referências: a primeira é o MC Smith, que é uma pessoa de quem o Puterrier pega muita influência da vocalização e às vezes da lírica também, mas também tem o Russ Millions, que é do drill, e o Puterrier tem uns flows diferenciados que têm influência forte do dub”.

“A maioria das produções começa puxando um fundamento do funk, depois a gente vai botando uns elementos de grime — hi hat, clap, sem contar o 808 que dá muito essa cara do disco e que até aparece no funk, mas não da forma que a gente usa” – Pedro Bala

Para Puterrier, a sua maior escola foi o programa Brasil Grime Show. Ele conta que já tinha ouvido a “Cidadão Comum Refém”, do Chorão com MV Bill, e “Hennessy”, do BK’, mas começar a acompanhar o Brasil Grime Show foi decisivo para ele estudar grime de fato. O MC começou a aprender a rimar em cima de DJ sets do YouTube, mas, quando ia para o baile, seus amigos pediam para ele rimar em cima do atabaque. “O SD9 já fazia isso, não com atabaque, mas com outros elementos de funk e com predominância do grime. Eu puxei o atabaque e vim predominando mais o funk”, comenta. Esse contato constante com a rua e, especialmente, o baile funk é essencial para a construção sonora de Atabagrime. Hoje, o baile favorito do Puterrier é o Baile da Selva, na Penha, e talvez o maior feito da sua música até agora é que ela borbulha uma pista, seja em uma casa de show, seja em um baile funk.

“Independente se tu fala explicitamente de política ou não, rap é política, poesia é política. Na minha visão, tudo é. Se o menor tá falando de crime ou ostentação, o que leva àquelas situações é política. Tudo que a gente canta é política, independente do que for. Só que eu fui mais explícito porque era época de eleição e eu quis ser objetivo” – Puterrier

“Meu primeiro baile foi lá da área. Eu sou da B2, Bandeira Dois, e era um baile de natal. Tinha cria, mas também tinha família. Era um baile mais família, nem vinha muita gente de fora”, relembra. “Agora não tem mais porque polícia não deixa”. Para Puterrier, tudo é política — e a música não pode se dar ao luxo de fingir que não o é também. Por isso, a gente encontra no disco linhas sobre putaria seguidas de “Pular da cama, votar no 13, voltar pra casa e ouvir Puterrier”. “Independente se tu fala explicitamente de política ou não, rap é política, poesia é política, na minha visão tudo é política”, afirma, “Se o menor tá falando de crime ou ostentação, o que leva àquelas situações é política, envolvendo toda a sociedade. Tudo que a gente canta é política, independente do que for. Só que eu fui mais explícito porque era época de eleição e justamente eu quis ser objetivo para as pessoas terem um grito”.

Sem nome e idade confirmada, tudo que sabemos sobre Puterrier é seu vulgo. A decisão foi conjunta dele com a sua produtora, Formiga. Quando começaram a trabalhar juntos, há dois anos, traçaram uma estratégia de comunicação, marketing e carreira. Volta e meia, alguém levanta a dúvida sobre qual é o nome do MC no Twitter e gera um burburinho. Segundo Formiga, isso engaja os fãs na figura do Puterrier e rende boas risadas no backstage. Mas nome e idade pouco importam quando o MC sobe no palco, com Pedro Bala e o MC Raro. “O Puterrier tem muito talento para o ao vivo”, comenta Pedro Bala. “No ao vivo dá para ver como ele se destaca, se diferencia muito da cena de grime e drill. Uma coisa que chama muita atenção dos MCs é o jeito dele de rimar: a métrica é muito diferente e tem um jeito muito original de se rimar aliado a um vocabulário muito autêntico.” É um show simples, enxuto, sem muita conversa e em ritmo acelerado, que entrega linha por linha. Autêntico como Puterrier.

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