Aysha Lima, por um segundo de amor

“Ín.ti.mo”, primeiro disco da cantora carioca, traz R&B com tempero de house e afrobeats – e repassa jornada amorosa com começo, meio e fim

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Fotos: Blackcalle

O primeiro disco de Aysha Lima, Ín.ti.mo, lançado hoje nas plataformas digitais, a princípio era para ser um EP – “com três ou quatro faixas”, ela relembra –, mas a cantora carioca, motivada também pela ideia do produtor André Miquelotti, percebeu que tinha muito mais a dizer. Com base sólida no R&B e abertura para referências de house, pop e afrobeats, o repertório do álbum percorre uma jornada extremamente pessoal e (como o título anuncia) íntima vivida por Aysha. “A ideia do disco foi: vou contar tudo que eu estava sentindo. Foi um encerramento de ciclo da minha vida – e quero que isso gere identificação nas pessoas”. São as idas e vindas do amor, as complexidades de relacionamentos que te fazem bem, mas que nem sempre dão certo; uma trajetória que vai de energia, desejo e paixão, passa por vulnerabilidade e autoconhecimento, até desembocar, literalmente, no fim.

“São as três fases de um relacionamento: aquele primeiro encontro, que parece que tudo vai dar certo; a segunda é quando começam a surgir questões – você quer se entregar, mas há outras pessoas, outras coisas a serem vividas; e a terceira é o rompimento, quando você quer que dê certo, pensa se vale a pena, mas surge medo e insegurança. É o fim”, resume Aysha. A própria divisão silábica no título vem da intenção de expressar esses três capítulos de um relacionamento que termina – e a carga fidedigna do repertório é ainda incrementada por interlúdios, áudios (verdadeiros) de WhatsApp, além de datas e apelidos que condizem com a história real – a história, no singular. Encarar o processo com enorme franqueza foi a forma que Aysha encontrou não apenas para compor ou desaguar sentimentos, mas para eternizar essa história. “Foi uma relação importante para mim. Abriu algumas feridas, mas também me curou de muitas coisas e eu gostei da ideia do álbum eternizar essa relação, deixar ali para sempre, independente de como terminou. Transformar isso em arte foi a melhor forma de homenagear a relação”, conta Aysha.

Criada no Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, mais especificamente no bairro Inhoaíba, Aysha – nascida Amanda – cresceu cercada de música, muito por influência do pai, que escutava especialmente samba e MPB, além do R&B de Whitney Houston e Mariah Carey. Mas mais do que ouvir bons sons em casa, Aysha começou a viver de música muito cedo – aos 12 anos de idade, ela já cantava em rodas de samba da região. “Eu e meus primos montamos um grupo de samba, fizemos uma apresentação, gostaram e começaram a chamar a gente para trabalhar. Mas eu era muito novinha, o grupo se desfez quando eu tinha uns 15 anos. Depois disso, deixei de lado, comecei a focar em estudos, prestar Enem, essas coisas”. Essas idas e vindas, como aquelas do amor presentes em Ín.ti.mo, fazem parte da relação de Aysha com a música – segundo ela: “Todas as vezes que acontecia algo ruim e eu pensava em desistir, acontecia alguma coisa boa, uma oportunidade que eu não poderia deixar passar. Sempre fui muito de altos e baixos com a música – querer me jogar, mas tinha medo ou acontecia alguma coisa e me frustrava de novo”.

“A música organiza minhas ideias – é como falar de forma concreta sobre uma coisa que eu só sinto e às vezes não enxergo”.

In.flu.ên.cias

Eu cresci no samba – Reinaldo, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Alcione (quando eu era pequena, falava que queria cantar o amor igual a Alcione. Comecei a ter acesso à MPB, Djavan, Gilberto Gil e sempre gostei de Tim Maia. Pelo Tim Maia, comecei a gostar de Nina Simone, Etta James, Erykah Badu. E depois fui chegando no R&B contemporâneo – Rihanna, Beyoncé, Toni Braxton, Aaliyah... Quando eu era nova, era louca por Sampa Crew, Fat Family. Aprendi a cantar escutando música”

Mais de três anos depois do fim do grupo com os primos, a família de Aysha desenvolveu um projeto de samba voltado para cultura afro-brasileira – uma roda samba em sua própria casa foi o que ela precisou para voltar a soltar a voz. O samba, segundo Aysha, foi decisivo para sua formação como artista e para a construção de sua personalidade, mas foi no R&B que ela encontrou sua voz. “Acessei minha negritude pelo samba, por meio dessa cultura. Por mais que eu nunca tivesse dúvidas de ser uma mulher preta, acessei essas coisas por meio do samba. Faz parte de quem eu sou. Mas o que me chamou a atenção no R&B foi a forma de cantar – com dobras, melismas. Foi uma questão de explorar mais a minha voz. Bateu mais forte no meu coração. O R&B é uma parada que eu falo ‘isso aqui sou eu de verdade’”.

“Acessei minha negritude pelo samba. Por mais que eu nunca tivesse dúvidas de ser uma mulher preta, acessei essas coisas por meio dessa cultura. Faz parte de quem eu sou. Mas o que me chamou a atenção no R&B foi a forma de cantar – com dobras, melismas. Foi uma questão de explorar mais a minha voz. Bateu mais forte no meu coração”

No capítulo seguinte dessa jornada, veio a chance de Aysha, enfim, se aventurar pelo R&B, com a participação no projeto O Apartamento, do produtor Bryan AVS, na faixa “Filme de Domingo”. Na sequência, ela conheceu o fotógrafo e diretor criativo Jef Delgado, encontro que, após uma vinda da carioca para São Paulo, redundou em outras conexões artísticas. Entre os novos parceiros de estúdio, estava André Miquelotti – produtor musical da maioria do repertório de Ín.ti.mo, que ainda traz trabalhos de R3gin, Nagalli, DG Prod e CHARLLEZ.

Lançado pelo selo/estúdio Undersoil, de Campinas, o disco teve um processo de produção de pouco mais de um ano e foi resultado da sintonia fina que surgiu entre Aysha e Miquelotti. “Ele sempre me tira da minha zona de conforto e a gente confia muito um no outro. Foi orgânico: a gente queria, foi lá e fez. Foi um desafio, foi maçante, mas foi gostoso e uma superação, porque eu não imaginava fazer isso tão cedo”, define Aysha. Acompanhando a artista, Duquesa, Nina, Izy Castelano, Torres, OriginalDé e CHARLEZZ também colaboram cantando no projeto. “Me sinto muito sortuda e confortável, porque tô do lado de muita gente que bota fé no meu trabalho – e foi de forma orgânica”. A direção geral do projeto é de Vinícius Mariano, o audiovisual ficou por conta de Júulios e as fotografias são de Blackcalle.

Em meio à intensidade e à franqueza das composições de Ín.ti.mo, no qual Aysha repassa uma história de momentos tão felizes quanto doloridos, a realização do álbum acabou se tornando um exercício quase terapêutico – não por acaso, já que ela é psicóloga de formação. Segundo ela, conciliar música e psicologia não foi tarefa fácil, mas, com o tempo, Aysha soube usar os aprendizados da faculdade no ritmo de composição, principalmente ao entender como funcionava sua criatividade e seus sentimentos na hora de desaguar emoções nos versos das canções. “No início, afetava muito a minha criatividade, minha mente ficava cansada. Depois comecei a linkar uma coisa na outra, a me analisar, fazer uma autocrítica e a respeitar meus processos. Sempre tive que escrever as coisas que eu sentia, antes mesmo de fazer música. Quando eu era pequena, tinha um diário. Na terapia também escrevo o que quero falar. E a música organiza minhas ideias – é como falar de uma forma concreta sobre uma coisa que eu só sinto e às vezes não enxergo”. No caso de Ín.ti.mo, ela confessa que, durante o processo. muitas vezes não foi fácil ter que imergir em memórias e chafurdar o passado para transformar isso em música – mas, agora, com o disco na rua, Aysha reconhece que foi uma espécie de libertação. “Antes, eu ouvia as guias e me despertava coisas que eu não queria ter que lidar naquele momento. Hoje eu ouço com carinho e amor, porque tinha muito entre a gente. Mas o disco foi para jogar fora o que eu tinha que jogar fora e eu só conseguiria fazer isso através da arte. Foi tipo ‘eu preciso fazer isso mesmo, agora vou falar tudo que eu quero’”.

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