BK’ perto do Sol

Com um quarto disco na praça e o posto de referência consolidado, o MC carioca fala sobre suas inspirações – de casa e do hip hop, atuais e atemporais – e discute as armadilhas da idolatria no rap

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Fotos: Bruna Sussekind

“O cara que fez eu querer rimar foi o Tupac”, define BK’, 33. “Eu vi o documentário sobre ele, o Tupac Ressurection, e mexeu com a minha cabeça. Quando assisti, tive certeza: eu quero ser igual esse cara.” Assim como o ídolo estadunidense, Abebe Bikila também nasceu e cresceu em uma família do movimento negro. A mãe do rapper carioca é a ativista Ana Cristina Costa Gomes, professora de Língua Portuguesa, doutoranda na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e militante do Movimento de Mulheres Negras desde sua fundação. Nos anos 1980, o movimento negro do Rio de Janeiro estava em efervescência: por um lado, os encontros do Centro de Estudos Afro-Asiáticos organizados pela ativista negra e historiadora Beatriz Nascimento formavam núcleos de ação e, por outro, Abdias do Nascimento voltava do seu exílio para fundar o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Nesse contexto, coube às ativistas negras, como Ana Cristina Costa Gomes, o duplo esforço de pautar gênero nos núcleos dos movimentos negros e raça nos encontros feministas — e tomar Educação como uma linha de frente. No geral, as décadas de 1970 e 1980 no Brasil são marcadas por movimentos sociais profundamente inspirados, rebelados e transgressores. Para as gerações seguintes, é difícil não se sentir como a continuação de um sonho.

“Quando você nasce em uma família do movimento negro, você percebe essas lutas”, conta BK’. “Todas as nossas discussões aqui em casa são sobre as lutas do povo preto e sempre pensando sobre o quanto essas pessoas lutaram antes: minha mãe, minhas tias, as amigas da minha mãe, pessoas antes delas ou ainda o próprio movimento hip hop. Para o rap ser o que é hoje, para eu poder dar entrevista e a galera poder ajudar a família, pagar suas coisas, viver de rap: tudo isso é fruto de pessoas que vieram antes. A música [“Continuação de um sonho”] é uma forma de reconhecer isso. Pessoas lutaram muito, morreram, derramaram sangue para a gente estar aqui. É uma forma de homenagear essas pessoas, lembrar, ter respeito pelos mais velhos e continuar a história”.

Quarto disco da carreira solo, ICARUS (2022) tem 13 faixas e apresenta um BK’ mais inclinado para o formato de canção do que para as rimas arrebatadoras que marcaram o começo da carreira. Embora “Lugar na Mesa” e “Foto Armado” retomem a entrega explosiva do rapper, a maior parte do disco propõe uma interpretação mais melódica das composições — “Luta e lucro” e “Tudo mudou e nada mudou” são grandes exemplos disso. Tematicamente é um disco que fala sobre o que vem depois do sonho: o estresse com a indústria da música, a sedução da vida noturna, ter dinheiro na conta e a preocupação com manter um legado. O disco conta com elenco de peso nas participações com L7NNON, Carlos do Complexo, Bebé, Luccas Carlos, Major RD e Marina Sena. Além disso, Ícarus tem colaborações de Sango em três faixas, o que já sinaliza — junto de Carlos do Complexo — uma aposta em uma sonoridade diferente dos demais discos.

ICARUS representa ao mesmo tempo uma ruptura e uma continuidade na carreira de BK’. É o primeiro disco do rapper a não ser lançado pela Pirâmide Perdida, coletivo e gravadora independente do Rio de Janeiro, e essa transição não passa batido no disco novo. Na faixa “Se eu não lembrar”, BK’ rima: “Enquanto o empresário liga/ Fala sobre eu mudar meu jeito/ Ou seja, ser menos preto”. Mais para frente, ele dispara o verso ácido: “Ainda sou o melhor produto/ Se não entende o que eu represento/ Então melhor rasgar seu contrato/ E queimar seu planejamento.” Icarus foi lançado um ano depois que BK’ anunciou sua saída da Pirâmide Perdida e é a estreia do selo Gigantes, que leva o nome de seu segundo disco solo.

Na entrevista, o rapper prefere ser reservado sobre os negócios e diz que começa a pensar em colaborações para o Gigantes agora. “Trabalhar com rap é trabalhar com o sonho das pessoas”, diz. “E, quando você trabalha com o sonho das pessoas, você tem que ter um respeito, uma educação. Por isso as coisas na Gigantes estão devagar. Lancei meu álbum agora, já tinha artistas com quem eu estava trocando ideia, vou falar com eles de novo e apresentar uma forma de contrato. Acho que o contrato é fundamental. Todo mundo tem que entender o mínimo que seja sobre direitos autorais, ter um advogado para trocar ideia ou jogar no Google, sabe? Porque, no final, um contratinho assinado muda tudo. Ou um contratinho não assinado [risos].”

Já a continuidade de ICARUS está nas bases: o disco reafirma a parceria com o produtor musical JXNV$, parceiro do BK’ desde o grupo Nectar Gang. Aliás, se é para falar de BK’, é preciso dizer que tudo começou com Nectar Gang. Na verdade, tudo começou com a Batalha da Lapa. Organizada pelo rapper CHS e fotografada por BK’, na época com 20 anos, esta batalha foi uma escola e o princípio do Nectar Gang como um coletivo. Lá atrás, o flow do BK’ já se destacava pelo balanço entre a pegada do rap estadunidense e o suingue do funk, o qual, segundo o rapper, é até hoje o maior tempero das suas rimas.

Apesar do cantor favorito da sua família ser — em unanimidade — Djavan, BK’ ainda se lembra de quando era menino e esperava a mãe sair para o trabalho para ouvir escondido as fitas de proibidão no rádio. Cidinho e Doca, MC Mascote, G3, Gil do Andaraí e Mr. Catra eram os nomes do momento em uma época em que o funk carioca se auto intitulava rap — do Rap da Felicidade ao Rap das Armas. De rap mesmo, Racionais MCs, MV Bill e Marcelo D2 era o que tocava em Jacarepaguá, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro onde Abebe Bikila cresceu. Foi esse contexto sonoro que levou o BK’ de 16 anos a quase virar MC de funk. Ele chegou a escrever e gravar uma música no Audacity, sem nem saber que existia mixagem. Por um descuido da idade, da malícia de fazer música ou pela concreta falta de uma plataforma de distribuição que só o YouTube ofereceria anos mais tarde, essa faixa virou um som de ouvir no churrasco com amigos e se sentir orgulhoso de ter concretizado uma ideia em música. Até porque, quando você tem 16 anos, só o orgulho já basta para encarar o mundo e sonhar cada vez mais alto, cada vez mais perto do sol.

“Hoje quero ser referência para as pessoas da mesma forma que vários artistas do rap foram referência para mim, mas também nunca quis ser um super-herói. Peguei o rap nessa transição, né? Do rap muito sério para um tipo de rap livre. E, sempre nesse meio termo, eu tentei ser sério, mas gosto de me divertir. O rap também é sobre quem você é de verdade”

“In Da Club”, do 50 Cent, “Hey Ya!”, do Outkast, e “Excuse Miss”, do JAY-Z, também marcaram a adolescência de BK’ por conta dos programas de videoclipes da tevê. Anos mais tarde, com o formato de fórum do Orkut, a paixão por rap foi ganhando mais embasamento nos tópicos das comunidades; dessas, uma marcante para BK’ foi a de fãs do Lil Wayne. De toda forma, a influência do funk continua na lírica do rapper, de “Julius” a “Cidade do Pecado”. “Às vezes no flow, às vezes na escrita. É um tempero: o funk está ali mais para dar uma diferenciada do que para guiar a sonoridade. Mas eu tenho bastante música puxando fundamento de funk porque eu ouvia muito”, diz.

“Hoje eu quero ser referência para as pessoas da mesma forma que vários artistas do rap foram referência para mim, várias pessoas da nossa cultura preta foram referência pra mim, mas eu também nunca quis ser um super-herói”, elabora. “Eu peguei o rap nessa transição, né? Do rap muito sério para um tipo de rap livre. E, sempre nesse meio termo, eu tentei ser sério, mas eu gosto de me divertir. Ao mesmo tempo em que eu tenho um disco com a pegada de O Líder em Movimento (2020), eu faço músicas como ‘Deus do Furdunço’ porque é o que eu sou de verdade? Então, pra mim, rap também é sobre quem você é de verdade. Você pode inventar um personagem, claro, mas para a minha arte eu tenho que ser verdadeiro comigo mesmo. Eu não quero ser um super-herói nunca porque eu sou cheio de defeitos e passo meus defeitos na minha música, tá ligado? A gente é mais comum do que as pessoas imaginam. Eu não gosto de me botar numa posição intocável, como uma mente absurda, sei lá, eu só estudei rap. Ouço bastante rap, gosto de escrever rap e me dedico bastante ao que eu faço. Mas eu sou uma pessoa comum.” No dia 28 de janeiro, sábado, BK’ apresenta o show de lançamento de Icarus em São Paulo, na Audio.

“Não gosto de me botar numa posição intocável, como uma mente absurda, sei lá, eu só estudei rap. Ouço bastante rap, gosto de escrever rap e me dedico bastante ao que eu faço. Mas eu sou uma pessoa comum”

 

Qual é seu top 5 de maiores rappers da história?

Já pode gostar do Kanye de novo ou ainda não pode?

Em um mundo em que a gente pudesse gostar do Kanye, qual seria seu top 5?

JAY Z é meu primeiro, Kanye West é o segundo, The Notorious B.I.G. é o terceiro, Andre 3000 é o quarto, e o Tupac é o quinto. Agora rola um movimento de não gostar do Tupac e eu não gosto desse movimento. De uns anos pra cá tem esse papo de que o B.I.G. é infinitamente melhor que o Tupac, que o Tupac não é isso tudo, mas eu acho que o que o Tupac foi pra época, o que ele representou é fora de série, não só nas linhas. No cenário do hip hop teve poucos que foram tão importantes como ele. Foi inclusive o cara que fez eu querer rimar. Eu acho que o B.I.G. rima mais que o Tupac, mas não é só isso, né, mano? Hip hop não é só isso, no fim das contas.

E é maluco entrar nessa disputa hoje. Aliás, você sente que isso, essa competição também acontece no rap nacional?

Sinto. Teve uma época que eu acho que a gente poderia muito ter trabalhado mais junto, geral. Eu, Djonga, Baco, Froid. A gente poderia ter trabalhado mais junto, mas a galera foi inventando uma disputa que até certo ponto é saudável, dentro do jogo do rap: quem rima mais. Mas acho que a galera foi fomentando uma rivalidade que, como todo mundo era novo, a gente nem entendia direito. A galera poderia ter colaborado muito mais. Acho que hoje em dia todo mundo já se entende melhor e entende o que cada um é, tá ligado? E entende que a gente se complementa e trabalha, mas ainda poderia ter mais colaborações.

Você entrou nessa ideia de rivalidade?

Você não entra, você só está ali. Porque ninguém chegou para ninguém e mandou uma diss, só Froid e Baco que mandaram uma diss um para o outro. Mas era mais uma coisa dos fãs. Sempre fui muito tranquilo com isso. Era mais uma coisa de internet e pessoalmente ninguém tinha isso, a não ser o Froid e o Baco que mandaram diss um pro outro [risos]. Me dou benzão com geral, mas se você for na mente do público, ainda mais naquele momento, rolaria uma treta. Acho que a gente passou bem por esse momento e hoje a cena já é outra da de quatro anos atrás, ano lírico, apareceram quinhentas mil pessoas rimando pra caralho, fazendo música pra caralho e fazendo merda pra caralho. Bastante coisa boa, bastante coisa ruim. A cena não se resume a quatro nomes. A cena é a cena. Graças a deus.

O que você tem ouvido de mais underground e de mais mainstream?

Icarus foi o álbum mais difícil para eu fazer porque é um momento que o rap não está me inspirando muito, cara. Nem aqui, nem lá fora. Acho que foi o ano em que eu menos ouvi rap. A cena está bem grande, crescendo, mas não está me inspirando tanto como há uns anos. Não sei se é porque eu passei dos 30 e estou começando a ficar chato, mas esse ano eu escutei o que eu escuto sempre: JAY-Z, Djavan, Racionais MC’s, não escutei nada novo. O álbum que saiu do Don L do ano passado [Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2] eu ouvi pra caramba e acho que o último que eu ouvi muito também da gringa foi o do Saba, o último álbum antes do que saiu em 2022 [Care For me (2018)]. O novo eu nem ouvi ainda. A gente vai ouvindo as novidades, trampo dos amigos, mas nem esse último álbum do Kendrick eu ouvi tanto.

Qual é o melhor do Kendrick para você?

good kid, m.A.A.d city (2012). Se eu falar o meu top 5 do Kendrick as pessoas vão me matar! Primeiro, good kid, m.A.A.d city, depois Section.80 (2011), DAMN (2017), To Pimp a Butterfly (2015) e Untitled Unmastered (2016).

Nossa eu fiquei muito chocada com To Pimp a Butterfly em quarto lugar.

Mas então: eu tenho com o good kid, m.A.A.d city a mesma coisa que meus fãs tem com Castelos e Ruínas. Quando saiu To Pimp a Butterfly, eu fiquei frustrado porque eu queria outro good kid. Quando passou o auge do To Pimp, eu não voltei para ouvir. Porque eu sou muito apaixonado no good kid, eu estava esperando um good kid 2, igual meus fãs ficaram esperando Castelos e Ruínas 2. O DAMN já bateu pra mim de primeira. Eu acabei com o disco. Ouvia todo dia três vezes por dia, eu acabei com o disco.

“Eu tenho com o ‘good kid, m.A.A.d city’ a mesma coisa que meus fãs tem com ‘Castelos e Ruínas’. Quando saiu ‘To Pimp a Butterfly’, eu fiquei frustrado porque eu queria outro ‘good kid’

Que louco que você percebe que é a mesma armadilha em que seus fãs caíram.

Eu sei. Eu sou ouvinte também, eu sou fã também. Eu entendo a galera. Um cara que eu não consigo mais ouvir nada é o Ab-Soul porque depois do Control System eu não consigo ouvir mais nada dele. Porque eu entendi que eu sou fã do Control System. Talvez eu não seja fã do Ab-Soul, talvez eu seja fã do Control System porque o Ab-Soul não tem só pra falar o Control System e eu não tenho só pra falar o Castelos e Ruínas. Eu sou fã de rap. Eu gosto de ficar analisando as linhas dos outros, as barras. A gente ia pra Lapa, ficava tocando o evento de rap na rua, eu sou dessa época, em que a gente tinha que saber de que ano era a música, quem foi que produziu. Tinha aquele estudo, tinha que conhecer de rap. Eu sou desse rolé ainda, por isso eu consigo entender as pessoas.

Nunca imaginei que você fosse falar com leveza sobre isso. Porque, na prática, é uma situação muito injusta em que você é colocado como artista.

Já saíram vários trampos na pista com a mesma qualidade de Castelos e Ruínas, não só meu. Mas o momento, aquele momento não vai existir — na real, vai existir, mas mais para frente —, foi um reboot na cena. Eu, Djonga, os moleques. Foi um renascimento. E as pessoas já ficam com aquele gosto querendo a mesma sensação. Eu senti a mesma coisa com o rap na gringa: quando apareceu Kendrick, Joey Badass, essa galera toda. Eu não consigo ouvir um trampo novo do Joey Badass e ter a mesma sensação porque tinha toda uma história pra aquele disco ter aquele sabor. Castelos e Ruínas, Heresia, Esú, teve toda uma parada. Não é sobre qualidade da música, é sobre contexto histórico. E como você luta com a história? Não tem como. Eu faço música, música que eu gosto, em que eu acredito e tento manter a qualidade. Mas tele transportar as pessoas para 2016… Eu não tenho esse poder. Castelos e Ruínas saiu em 2016 e foi começar a ter os números que ele tem hoje um ano depois que eu soltei os clipes. Acho que é isso: a galera não dá o tempo dos outros trabalhos crescerem. Eu respeito todo mundo porque eu sou ouvinte de rap, mas eu tenho essa consciência. Talvez esse último disco do Kendrick vá fazer sentido pra mim lá na frente. Quando saiu o 4:44 (2017), do JAY-Z, eu estava tão enfiado no DAMN que não consegui ouvir 4:44 da forma que ele tinha que ser escutado, eu só fui ouvir depois e aí pronto: JAY-Z  é o melhor de todos os tempos e acabou! [risos].

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ARTISTA: BK