Bruno Berle: no caminho – e com pressa

Com canções compostas entre 2017 e 2021, “No Reino dos Afetos” deu nova impulsão à trajetória do músico alagoano e é um dos grandes discos nacionais do ano; ele comenta a repercussão, aponta os próximos passos e reflete sobre palavras, matemática e São Paulo

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Fotos: Marina Zabenzi/Divulgação

Bruno Berle sente gratidão por tudo que vem acontecendo ao longo deste ano. Em julho, o músico alagoano apresentou No Reino dos Afetos, entre os grandes discos nacionais do ano. Com composições criadas entre 2017 e 2021, o álbum foi lançado pelo selo Far Out Recordings, label londrina especializada em música brasileira. E no embalo de Reino, Bruno já dá novos passos. Seu próximo trabalho já começou a ser gestado, também ao lado de batata boy, um parceiro de longa data, e Ana Frango Elétrico, que chega para somar na produção musical. A princípio, o plano é lançar este outro registro no ano que vem, mas desta vez pelo Coala Records, selo do festival Coala.

“Eu e a batata, a gente encarava nosso selo, o Batata Records, como algo provisório, a nossa vontade é de fechar com alguém grande porque sozinho não conseguimos fazer tudo. A gente sempre pensou dessa forma. E é o que aconteceu agora. A gente está com a Far Out nesse, mas vamos trabalhar com os dois no próximo”, explica Bruno. Dentre os planos para esse projeto, a ideia é que batata e Ana se dividam na produção para que o cantor se dedique a voz e as composições.

Há quase uma década, Bruno lança músicas de forma independente, criadas ao lado de amigos – ele e batata, inclusive, tiveram a banda Troco em Bala antes de partirem para um som mais eletrônico. Reino dos Afetos surge como uma seleção de ideias abraçadas durante gravações em casa, quando o compositor morava no centro de Maceió. “O álbum é uma reunião de faixas que eu gosto de verdade, sem medo de expor isso, gosto do jeito em que foram gravadas”, reflete. Na época, Bruno vinha escutando muito highlife, estilo musical criado no início do século passado em Gana e Nigéria. “É um ritmo muito lindo, uma coisa bem tradicional, e eu também estava ouvindo muitas bandas com guitarra daquela região”.

Em “Som Nyame”, canção baseada em uma trilha sonora de filme, a produção inclui dois poemas declamados que Bruno encontrou durante suas pesquisas. “Uma criança e uma mulher, que estava em uma cerimônia. Não sei o que significa, mas são poemas. O jeito que eles declamam é muito para cima, uma expressão muito forte, me identifiquei e coloquei na música”.

Já em “Virigina Talk”, a música seguinte e a mais antiga desse repertório, surge de um áudio de Virgínia Guimarães, artista de Santa Cruz do Capibaribe (PE), e da mesma cidade há ainda Felipe Nunes, colaborador em duas das 12 faixas. Na lista de parcerias, há ainda a fotógrafa carioca Marina Zambezi, diretora do videoclipe de “Quero Dizer”. Confira abaixo um papo com Bruno Berle, que, além de falar de Reino e dos próximos projetos, reflete sobre mudar-se para São Paulo, matemática, palavras e Strokes.

Qual foi o ponto de partida do disco?

Não foi uma coisa pensada ter beat com violão, e não é uma coisa que a gente procura. Por exemplo, “Quero Dizer” surgiu de um beat todo do batata, a canção veio em cima do que ele fez. A gente está tentando tirar o violão da história no próximo álbum, que imagino feito de beats. O meu desejo agora é cantar, pegar o microfone e cantar, apesar de que continuarei sempre com os shows no violão, cantando e tocando. Quero viver outra coisa agora vivendo em São Paulo, uma cidade tão fritada e agitada. Eu também tenho pressa, trabalhei muito tempo, mas só agora aconteceram coisas legais de verdade, que me geraram algum dinheiro. Venho de uma família que nunca teve grana, tanto minha mãe, quanto o meu pai, vieram da zona rural. Minha mãe aos 17 anos trabalhava em casa de família. Então tenho pressa para ganhar dinheiro porque tenho pressa de ser feliz. Cantar, sem ter o trabalho de tocar, me liberta desse trabalho de precisar fazer coisas com muitos instrumentos. Além de que o violão é uma coisa mais pra dentro, mais solitária e romântica. Quero fazer uma coisa mais expandida para tocar em festivais e lugares maiores.

Quando você percebeu a necessidade de algo mais solar?

Pessoas de outros lugares começaram a escutar o meu trabalho durante a pandemia, então isso foi me deixando mais feliz e mais alegre. Foi quando eu comecei a pensar que eu devia me encontrar comigo mesmo, tenho que ir para frente e não tem jeito. Eu não posso ter tempo para sofrer. Tenho que gostar do que faço, tenho que gostar de mim. Busquei fazer isso no disco. Trabalhei com pessoas que não tinham poder de decisão, que assim como eu, nunca tive a grana ou o suporte para gravar uma faixa. Sempre tive amigos me ajudando e me fortalecendo. O que é muito chato, mas gera isso. Na verdade, não sei de onde veio essa alegria que sinto hoje, essa vontade de viver assim e gostar de mim, mas sei que foi naquela época. Eu havia me mudado para uma casa no centro de Maceió, uma casa linda, que me fez muito bem, principalmente quando estava sozinho, algo meio raro. Desde que me mudei em novembro para São Paulo, ando muito bem comigo mesmo, não quero retroceder, quero mesmo é me expandir através da felicidade e do sorriso.

De que maneiras o ritmo da cidade pode ser uma influência criativa?

Eu vim aqui tentar a sorte, ver o que acontecia, mostrar o meu trabalho e deu muito certo. As músicas novas foram feitas aqui, então elas já nascem com esse ritmo rápido, frenético e que eu gosto muito. Tenho estado feliz. Não me sinto sozinho como eu me sentia em Maceió, porque muitas ideias não batiam por lá. Como tem muita gente em São Paulo, tem como bater ideia com muita gente também, quero fazer o próximo disco aqui. Apesar de eu adorar o Rio e ter ido lá algumas vezes. O Reino dos Afetos foi criado em Maceió, enxergo uma influência clara e óbvia em vários momentos, especialmente nos espaços de respiração na percussão. Aqui é um lugar onde a respiração é difícil, quero fazer um álbum rápido, algo que nunca conseguiria fazer lá. O batata mora há mais tempo, ele veio primeiro e é a minha base afetiva. A gente trabalha o dia inteiro, se articula, conversa, faz música. Estou muito feliz do que conquistamos porque já chegamos num lugar muito foda de poder fazer shows em São Paulo, a capital de um lugar gigantesco, onde tem tanta gente foda que quer tocar. É uma cidade do mundo.

Como está sendo o retorno às apresentações?

Tenho dois formatos: voz e violão ou piano, e o outro é o batata soltando beats e eu na voz. No meu show com violão, toco muita coisa que não está gravada ou músicas de outros artistas. Resgates de músicas que pego para serem minhas, e que eu gosto de interpretar. Gosto muito da Déa Trancoso, especialmente do primeiro disco dela, o Tum Tum Tum (2007). Ela é uma das maiores artistas de todos os tempos, é gigante. A voz, as ideias, tudo. Também toco músicas de Vital Farias, Geraldo Azevedo, Dora Morelenbaum, João Menezes e Felipe Nunes. Eu faço o repertório no dia, então tem muito a ver com o lugar que vou tocar. Conheci a Dora no Festival Carambola e a nossa amizade começou lá. Lembro da primeira vez em que vi a Dora cantar na minha frente, foi algo absurdo. A voz dela é infinita. Alguns amigos e produtores falam para a gente fazer um disco junto, acho que agora não vai dar, mas não vejo a menor dificuldade. Quero ser um artista de lançar vários discos por ano, ter diferentes tipos de show, são coisas que eu almejo. Sei que preciso de uma estabilidade e trabalhar de uma forma mais quadrada para chegar nesse lugar.

Reino dos Afetos é uma música que não entrou para o álbum. Em que momento o nome surge para amarrar o trabalho?

Eu ficava pulando de título em título, às vezes pensava em chamar de “sem título” porque o disco é como um apanhado de ideias. No ano passado, fiz uma música em cima de um beat do batata, e na minha cabeça, aquela melodia trazia o reino dos afetos. “Vim pelo reino dos afetos e do amor”. Era basicamente uma frase que se repetia. Comecei a pensar em como essa expressão é boa: imaginei alguém entrando em um lugar sereno, meio céu. Também fiquei pensando como o disco tem poucas palavras e como elas se repetem em alguns lugares. Ter poucas palavras é uma preocupação minha. Sabe quando você procura “as palavras mais presentes na obra do Gil ou do Djavan”? Aquilo ficou na minha cabeça como se fosse um reino, como o conjunto das palavras é capaz de gerar um espaço. Pensei em como as palavras desse disco geram um espaço de afeto, principalmente pensando em fazer música com os meus amigos e falar de uma pessoa que eu amo.

“Eu também tenho pressa. Trabalhei muito tempo, mas só agora aconteceram coisas legais de verdade”

Sempre foi fácil falar sobre amor?

Tudo casou. O amor romântico sempre foi uma coisa presente nas coisas que faço. Eu já tentei lutar contra isso, mas não gera muita coisa. No próximo disco vou falar mais sobre as coisas que estou vivendo. Acho que o amor romântico que eu falava, e vivia, era na dependência do outro para me sentir bem, mas hoje me sinto bem [estando] sozinho, então tenho mais segurança para falar sobre outras coisas. Pô, love song é uma das coisas que eu mais gosto de ouvir desde sempre e ainda amo.

Você mencionou a necessidade de se fazer feliz e tentar outras coisas. Como você enxerga esse movimento no processo criativo?

Sempre escutei de tudo, música eletrônica de todos os cantos. A preocupação de ir para outro lugar nos ritmos vem do nosso processo: o batata faz os beats do que eu costumo jogar nele. São batidas retas, ligadas à tradição americana e europeia de fazer música. A música tradicional deles é diferente daqui, o samba traz uma síncope diferente. Por exemplo, a música alagoana tem o coco de roda, então olhando para o começo da carreira do Djavan, ele traz um samba diferente do baiano ou do carioca. Essa é uma das razões do samba dele ser tão específico e ter feito tanto sucesso. Como a música dele não é uma cópia de outros lugares do país, porque o dele é especial, ele é alagoano. Quero explorar batidas com outros ritmos e mais suingue. No processo anterior, fizemos muito R&B, uma batida muito americana, então busco outros ritmos, africanos e brasileiros, também quero fazer algo no trap.

Quando o canto surge em cena?

Comecei a cantar com zero anos, sempre foi uma coisa presente na minha vida. Recentemente, passei um mês na casa da minha tia na Mooca, e ela falou que o meu tio, já falecido, pedia para eu cantar para as pessoas com apenas três anos. Morei até os cinco anos aqui, depois em Garanhuns e, por fim, Maceió. Cheguei aos sete e fiquei até vir morar em São Paulo em novembro do ano passado. Aprendi a tocar violão com sete anos, já tocava em um conjunto do subúrbio onde eu morava, passei a tocar em festas, era o meu sonho e o meu pai me incentivava. Pausei aos 14 anos para estudar matemática, eu gostava muito, fui medalhista em competições. Fiz um ano de faculdade de matemática, mas achava todo mundo da sala muito conservador, muitos evangélicos, era um clima estranho. Percebi que gostava mesmo de música, comecei a compor nessa época, em 2013. Larguei a faculdade para tentar a viver de música.

Antes de partirem para uma sonoridade mais eletrônica, você e o batata boy criaram a Troco em Bala, uma banda de indie rock. Como aconteceu essa transição?

A gente formou a banda naquele mesmo ano, começamos a tocar juntos as minhas composições. Em 2014, gravei um álbum que, sendo sincero, não gosto muito, então tirei do Spotify. Acho que ele não tem muito a ver com o que estou fazendo agora, e na plataforma, você precisa ser organizado, tem que levar as pessoas como se fosse o mercado, precisa organizar a sua prateleira direitinho. Nesse meio tempo, também formei um selo com ele, o Batata Records. A gente encarava o selo como algo provisório, a nossa vontade é de fechar com alguém grande porque sozinho a gente não consegue fazer tudo.

Como foi esse período da adolescência?

Vivi uma fase estranha, me tornei evangélico por um tempo, toquei na igreja, não costumava ir a shows, estava muito ligado à matemática, a estudar muito e ser bem-sucedido dessa forma. Foi uma vivência estranha, mas também foi nesse momento em que, por exemplo, descobri os Strokes na televisão e fiquei muito fã. Eu não tinha internet ou computador, então via as coisas na televisão, me formei pela MTV, principalmente. Lembro de ver o clipe de “Last Night” naquelas faixas de videoclipes e achei muito foda. Quis fazer uma banda, foi esse impulso que me tirou daquele lugar estranho, de fazer matemática e também da pressão familiar, de fazer um curso superior.

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ARTISTA: Bruno Berle

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