Delicadeza e velocidade com Karen Francis

Em “Anos Luz”, seu disco de estreia, a jovem artista amazonense reflete sobre suas experiências como mulher negra lésbica e une influências de R&B e afrobeats

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Fotos: Dighetto

Anos Luz, disco de estreia da amazonense Karen Francis, mistura referências de R&B e afrobeats, em composições sinceras sobre amor negro e vivências lésbicas. Com apenas 23 anos, Karen já vem lançando canções desde os 18, porém o processo do primeiro disco levou mais tempo do que ela previa, em uma jornada bastante importante de aprendizado e crescimento. “Eu passei três anos produzindo e vivendo e atrasando e chorando e aprendendo a compor de formas diferentes, mas foi um processo muito importante para o meu amadurecimento musical e pessoal”, conta a artista.

“É um disco muito sincero. A proposta dele é que eu falasse das minhas vivências enquanto uma mulher negra e lésbica, sem enigmas, que eu conseguisse ser o mais sincera possível e que isso servisse de identificação para as pessoas”, explica Karen, que cresceu em um lar cristão e se assumiu lésbica ainda na adolescência, aos 17 anos. “A palavra que me acompanha de lá para cá é coragem, muita coragem. Eu busco sempre ter coragem para ser sincera no sentido de não ter medo nunca de falar sobre essa realidade, não ter medo de falar dessa afetividade, sobre amor entre mulheres, não ter medo de falar de negritude. É um processo que dói. Essas músicas muitas vezes me trouxeram muita dor, mas não no sentido de me fazer mal, mas é porque a reflexão, muitas vezes, gera dor”.

As canções de Anos Luz funcionam como possibilidades de diálogo com seus ouvintes – e Karen entende bem esse jogo entre se expor de forma inteira nas composições, mas também saber dosar os motivos desse processo. “Eu tenho pensado bastante sobre isso, porque eu acho que para o artista é tudo sobre exposição, a gente está o tempo todo se expondo, não só o artista, a gente enquanto sociedade, a gente está cada vez mais exposto. Ultimamente está rolando essa polêmica das lives NPC, em que as pessoas ficam interpretando personagens, pessoas que não necessariamente se colocam como artistas, mas isso é uma exposição também. Acho que socialmente isso está bem comum, mas a gente capitaliza a nossa exposição enquanto artista, então chega um ponto em que a nossa exposição fica uma parada meio que controlada. Tem uma expectativa sobre o que vai ser exposto, tem uma expectativa sobre o que as pessoas querem conhecer sobre você”.

“Eu passei três anos produzindo e vivendo e atrasando e chorando e aprendendo a compor de formas diferentes, mas foi um processo muito importante para o meu amadurecimento musical e pessoal”

Para Karen, compartilhar a sua história é também uma forma se conectar com outros jovens negros que podem criar laços de identificação. Karen nasceu em Maués, no interior do Amazonas, e desde pequenininha teve um contato muito forte com a música. Seu pai tocava em bandas de pagode antes de se converter religiosamente e, depois disso, passou a tocar canções gospel. Sua mãe, de origem moçambicana, trazia uma musicalidade única para dentro de casa. “Eu fui empurrada para cantar na igreja com 8 anos. Com 9, eu aprendi a tocar violão e fui tocar na igreja”, conta Karen. Na adolescência, ela se mudou para Manaus e começou a cursar graduação em licenciatura em música.

Nesse cenário entre religiosidade e música, ela conta que ainda na infância foi apresentada pelo pai ao samba e ao pagode, bem como ao R&B americano, época em que conheceu artistas como Whitney Houston. Mas, ainda assim, Karen teve que superar algumas barreiras para ter mais contato com música. “Eu não assistia MTV, não ouvia rádio. Quando eu ouvia rádio, era escondida. Isso afetou, porque eu perdi várias referências que fui entender só depois que cresci. Todo mundo assistia aos clipes. Eu não podia assistir”, relembra.

Sobre a religião, Karen acabou se afastando de vez e fez isso como um processo de libertação e autocuidado. “O meu entendimento hoje sobre o cristianismo é algo que não faz sentido pra mim. Eu vivo bem com essa consciência de que não faz sentido pra mim. Foi um processo que rolou ali a partir dos 17 anos, não só porque eu me assumi, mas porque eu queria me emancipar de coisas que foram impostas sobre mim”, explica.

“É um disco muito sincero. A proposta dele é falar das minhas vivências enquanto uma mulher negra e lésbica, sem enigmas. Ser o mais sincera possível e servir de identificação para as pessoas”

No meio de todo esse processo pessoal, outras múltiplas referências começaram a pipocar. Ainda na adolescência, Karen fez uma importante viagem ao lado da mãe para Moçambique, quando conheceu a kizomba e, na sequência, se aprofundou em outros ritmos, chegando até o afrobeat nigeriano. Ela cita diferentes nomes importantes em sua caminhada, dos nigerianos Yemi Alade e Davido até a cabo-verdiana Mayra Andrade e a brasileira Luedji Luna. Luedji, aliás, tem uma importância para o nascimento de Anos Luz: Karen chegou até um dos produtores do disco após ouvir a faixa “Proveito”, de Luedji, prodizida por Tico Pro, que acabou se transformando em um parceiro importante dentro do processo do disco.

Outra colaboração fundamental é de Elisa Maia, artista e produtora cultural manauara. “Ela fez a direção artística do álbum. Era pro projeto ter a duração de seis meses e ela passou 3 anos comigo”, lembra Karen. Sobre as participações especiais, ela explica que tudo foi pensado com muito cuidado, para que cada um pudesse agregar da melhor forma. “Nayra Lays foi uma pessoa muito carinhosa em todo o processo. Acho que a Nayra e a Anna Suav abrilhantaram muito as faixas que elas participaram, os versos delas engrandeceram as canções. A música com a Iza Sabino [“Chama”]  tinha a ideia de falar de amor entre duas mulheres, pois a gente vê que às vezes mesmo cantoras lésbicas ainda cantam músicas que estão no masculino ou como se elas estivessem falando com um homem. A ideia era fazer isso totalmente voltado para mulheres. Era uma necessidade que eu tinha, pois eu acho bonito e sincero”.

“O meu entendimento hoje sobre o cristianismo é algo que não faz sentido pra mim. Eu vivo bem com essa consciência de que não faz sentido pra mim. Foi um processo que rolou ali a partir dos 17 anos, não só porque eu me assumi, mas porque eu queria me emancipar de coisas que foram impostas sobre mim”

Além do lado musical, Anos Luz tem um cuidado estético muito forte e isso foi pensando por Karen ao lado de Anna Suav. “Anna é minha namorada e é uma artista incrível, ela já trabalhava comigo na direção artística e visual há algum tempo, então ela me auxiliou a fazer algo coeso dentro da nossa representação do álbum”, explica a artista. “No decorrer do processo, a gente percebeu que eu falo muito de tempo nas músicas. E eu fiquei pensando muito. Falo muito dessa correria, eu me vejo muito como uma pessoa jovem, que está dentro desse cenário da juventude negra e que tem essa missão de correr e de fazer muitas vezes o dobro para atingir a metade do resultado, a metade do retorno, e eu fiquei pensando muito nessa questão de estrela, nessa questão de estrelas que a gente tem dentro do nosso bairro e que às vezes brilham uma vez e apagam, brilham uma vez e não têm o seu reconhecimento, que tá correndo na velocidade da luz”.

“Com isso, a gente começou a pensar muito num conceito afrofuturista, pois o álbum fala sobre essa correria, sobre o futuro, mas também fala sobre ancestralidade. A gente pensou nessa viajante que viaja no tempo e que tem essas cores, tem esse look moderno, que tem essa questão com a parte geométrica da coisa. A gente chamou as pessoas que a gente mais admira, que são potências. O fotógrafo que eu contratei é o Dighetto, ele é muito luz. Ele estava terminando o ensino médio, é muito novo, mas já entrega um trabalho lindíssimo. ​​Luiz Almeida, o designer, também foi muito importante nesse processo. Ele deu um toque totalmente diferente nessa capa”.

O resultado final destes encontros musicais e visuais pode ser desfrutado em Anos Luz, um disco sincero e verdadeiro sobre amor, entrega e sensibilidade. Karen Francis é um nome para se manter no radar e demonstra que, entre a delicadeza e a velocidade da luz, seu primeiro passo foi muito bem dado.

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ARTISTA: Karen Francis

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