Mar do Japão

Quem são os artistas japoneses que merecem um espaço entre suas bandas favoritas

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Falar (daqui) sobre as formas e expressões de arte japonesa é cair na armadilha irresistível das comparações com o Ocidente: traçar paralelos entre os cinemas de Kurosawa e Bergman; apontar influências de Hemingway na prosa de Murakami; chamar A Viagem de Chihiro, clássico de Miyazaki, de “Alice no País das Maravilhas oriental” (vê-se muito por aí). Ainda que as analogias sejam, de fato, inevitáveis e bem proveitosas para definir onde estamos pisando, basta um olhar/uma lida/uma ouvida mais profunda para perceber quão original, inclassificável e incomparável costuma ser a arte vinda do Japão. 

Na música, a ousadia para mesclar referências distantes e remanejá-las sob o pano de fundo sonoro de um país tão sui generis tem um resultado arrebatador e livre criativamente. Selecionamos sete nomes de diferentes gerações da música japonesa (todos ainda na ativa) os quais, donos de uma voz única, são como um vento revigorante chegando da terra do sol nascente, arejando todo o mundo.

Shintaro Sakamoto

Como líder da Yura Yura Teikoku, banda psicodélica de destaque no underground japonês durante os anos 1990 e 2000, o multi-instrumentista Shintaro Sakamoto já dera sinais de que era adepto a fusões sonoras. Mas público e mídia se surpreenderam com a espécie de guinada dada por ele ao fazer sua estreia solo com o disco How To Live With A Fantom, em 2012. Um caldo que parte do Soft Rock e Pop dos anos 1970, mas que rapidamente se mistura a toques latinos percussivos e influências da Bossa Nova e do Soul americano. 

Canções como “You’ve Just Decide”, “Mask On Mask” e “From The Dead” mostram à primeira audição como as searas “Indie” e “Alternativo” são insatisfatórias para definir o que Sakamoto produz e servem de amostras da sua capacidade de surpreender – seja por um solo de sax imprevisível, uma levada que começa estranha e de repente nos faz mexer o ombrinho ou por uma melodia irresistivelmente Pop em meio a experimentações sofisticadas. Ele repetiu o êxito criativo nos lançamentos seguintes, Let’s Dance Raw (2014) e Love If Possible (2016), mas a estreia segue sendo o primeiro contato perfeito e arrebatador com o músico. Em 2019, Sakamoto participou de “Volta e Meia”, canção do grupo paulistano O Terno, que também contou com Devendra Banhart.

Haru Nemuri

Nascida em Yokohama, Haru Nemuri expandiu sua música para além das fronteiras japonesas logo com seu trabalho de estreia, Haru To Shura (2018). A poderosa mescla entre Rock, Pop e Rap serve de cama perfeita para a jovem de 23 anos mostrar sua versatilidade como cantora, navegando por doces melodias, gritos pungentes, spoken word e literalmente Rap. Há críticos que chegaram a chama-la de “poetry rapper”, por conta do estilo falado de cantar suas letras, mas, com apenas um disco, o que pode se dizer com segurança é: ela fez uma baita estreia. O LP passeia com naturalidade por diferentes propostas que flertam com música eletrônica, Noise Pop, Shoegaze, além do próprio J-pop e é aí que está o trunfo de Nemuri.

Por mais que diferentes camadas apareçam em seu som, a mistura soa natural e coesa, e faixas como “Make More Noise Of You” e “Yumewomiu” estarem em um mesmo disco impressiona e ainda faz sentido. É o caso daqueles artistas que já na estreia demonstram uma personalidade marcante e assinam suas viagens com tinta forte. No ano passado, ela aumentou seu número de ouvintes ao redor do mundo, depois que Anthony Fantano, do canal The Needle Drop, deu nota 8 ao seu disco.

Sunset Rollercoaster

Embora formada em Taipé, capital de Taiwan (território japonês até 1945), o Sunset Rollercoaster é também íntimo das experimentações típicas dos artistas mostrados aqui. A carreira do grupo, entretanto, se iniciou de forma fragmentada, após a estreia do sexteto liderado pelo vocalista/guitarrista Kuo em Bossa Nova (2011). Os fãs que foram conquistados por canções como “Bomb Of Love” e “Little Monkey Rides On The Little Donkey” tiveram de esperar cinco anos para ouvir novas músicas da banda. E, ainda que a estreia – um Rock Alternativo à la Pavement e Sonic Youth e que, ao mesmo tempo, bebe do Folk dos anos 1970 – tenha sido comemorada, o passo mais marcante estava por vir, com o EP Jinjii Kikko (2016). Muito mais cheio de groove, o trabalho que marcou o retorno do grupo tem apenas três faixas, mas o recheio, “My Jinji”, uma combinação belíssima entre Synth Pop e Rock Psicodélico, viralizou e tem quase 9 milhões de visualizações no YouTube. Em total sintonia com o que Tame Impala e Mac DeMarco vinham lançando na época, a faixa, que caiu nas graças de muita gente do Ocidente, também mostrava algo maior, mais único, com influências que passam por R&B, AOR e City Pop (gênero popular no Japão durante os anos 1980 e que influenciou o Vaporwave). Para se ter uma noção da miríade de influências do grupo, Kuor já disse que a maior inspiração de sua carreira é o clássico álbum Stone Flower (1970), de Tom Jobim. 

A cada lançamento desde a estreia, o Sunset Rollercoaster parece mais bem-sucedido na missão de adicionar elementos ao seu som. Em Cassa Nova (2018) – masterizado no Abbey Road –, de “Summun Bonum”, “Cool Of Lullaby” e “Slow’, a fusão ficou ainda mais ousada, soando como um Steely Dan funkeado ou um Prince depois de uma jam session com Kevin Parker. Mas no fim é apenas o ótimo Sunset Rollercoaster.

tofubeats

Inspirado em pioneiros do UK Garage como MJ Cole, o DJ e produtor Yusuke Kawai começou a lançar trabalhos na internet desde a adolescência e, em 2013, com o primeiro álbum – o independente, Lost Decade – figurando em paradas japonesas, chamou a atenção da Warner. Em pouco tempo, ele passou de herói independente a artista quente do mainstream, impulsionado por produções que mesclam as características marcantes do UGK – percussões sincopadas em 4/4, vocais em high pitch compondo a base e linhas de baixo graúdas – ao Trap de Atlanta. Mesmo bem-sucedida comercialmente – e reduzida a J-pop por aí –, a fusão sonora não é nada burocrática e nem soa como fórmula para atingir o grande público. Muito pelo contrário. tofubeats é daqueles magos das MPCs, dos teclados MIDI, das brincadeiras com tons e filtros de voz no microfone. Das possibilidades e peripécias de estúdio. E digital ou (um pouco mais) orgânico, como em “Stakeholder” ou “No. 1”, respectivamente, o resultado impressiona pela diversidade sonora que constrói as produções. 

“CHANT #1”, abertura de Fantasy Club (2017) – disco em que ele, em detrimento das parcerias e faixas instrumentais, assume mais vezes a faceta MC-de-trap-autotunado –, é uma sobreposição fantástica de vozes ecoando em cima de um beat 100% Dirty South americano. No mesmo álbum, ele mostra sua versatilidade no House em “What You Got” e se joga no Trap em “Shopping Mall” – com synths tão gordos como aqueles do Graduation, de Kanye West. O êxito do álbum rendeu uma crítica elogiosa da Pitchfork e colocou o sucessor Run (2018), mais imerso na música eletrônica, no topo do ranking japonês no iTunes.

Cornelius

Entre os artistas aqui listados, Cornelius talvez seja o que mais desfruta de uma, digamos, projeção mundial. O caminho do multi-instrumentista Keygo Oymada – cuja alcunha vem de um personagem do filme Planeta dos Macacos (1968) – começou de verdade após ele deixar a banda Flipper’s Guitar no início dos anos 1990. Com The First Question Award (1994), ele já adquiriu uma fama considerável no underground japonês, mas foi o lançamento de Fantasma (1997) que o colocou em um novo patamar. Ouvir o disco é se surpreender a cada faixa, um sucessivo “de onde eu saí e para onde eu vou agora?”, como na transição de “The Micro Disneycal World Tour” a “New Music Machine”. O mais sedutor na obra de Cornelius é a capacidade de combinar mundos diferentes – Shoegaze com Punk com Noise com Bossa Nova com Música Eletrônica – e ainda assim juntar tudo isso arrematado com uma cola extremamente Pop. A magia nos picotes e samples também é mostrada na série de discos intitulada CM, que traz remixes de Blur, k.d. Lang, James Brown, Moby, Sting e muitos outros. 

Sem soar “cabeçuda”, a experimentação com essa intensidade fez com gente da imprensa musical o chamasse de “Beck Japonês” e, da mesma forma, por conta do talento para melodias e harmonias Pop, teve quem o apelidasse de “Brian Wilson moderno”. Figura que circula pelos portais de música do mundo – e pelos redutos indies da web –, Cornelius já deu uma aula de referências no quadro What’s In My Bag, da Amoeba Music, e fez um show como você nunca viu no NPR Music Tiny Desk Concert, onde apresenta canções do intrincado Mellow Waves (2017), seu disco mais recente.

Haruomi Hosono

Antes de formar o lendário Yellow Magic Orchestra, Haruomi Hosono já havia, durante os anos 1960, dado os primeiros passos para se tornar uma das figuras mais influentes e versáteis da história do pop japonês. À frente das bandas Apryl Fool e Happy end, o multi-instrumentista fã de Buffallo Springfield e Yardbirds explorou o Folk Rock e a psicodelia, que guiariam também seu primeiro trabalho solo, Hosono House (1973). A partir daí, fica difícil colocar o som de Hosono, uma explosão criativa constante, em alguma caixinha. Paraiso (1978), já acompanhado da YMO, coloca camadas de Jazz e levadas no contratempo em meio ao mesmo apelo Pop da estreia. E Pacific, lançado no mesmo ano, é uma brincadeira mágica entre Synthpop e ambiência para ouvir tanto em uma sessão de acupuntura, quanto tomando uma caipirinha à beira-mar em Ipanema (“Kiska”, aliás, parece saída de um disco de Marcos Valle, e “Coral Reef” é comandada por uma guitarra que faz inveja a qualquer hit oitentista de Lulu Santos).

A energia única do YMO influenciou toda uma geração de músicos do City Pop e do Shibuya-key – fusão entre Jazz, Pop e Synthpop – durante os anos 1980 e colocou Hosono entre os produtores mais procurados do Japão. Após a separação do YMO, ele voltou com Omni Sight Seeing (1989), uma viagem que vai de tradições musicais japonesas traduzidas em sintetizadores (“Orgone Box”) ao Acid House mais bruto (“Laugh-Gas”). 

Sua saga continuou sendo prova viva de que o termo World Music é uma padronização das mais grosseiras e homogeneizantes, seja caminhando com naturalidade por quebras de campos harmônicos e colagens sampleadas em N.D.E (1995) ou retornando livremente às raízes folks em Vu Jà Dé (2017). Aos 72 anos, Haruomi Hosono é daqueles casos de artistas em que é bem mais fácil amar do que definir. 

Ryuichi Sakamoto

Ala um pouco mais erudita do Yellow Magic Orchestra, Ryuichi Sakamato é mais uma verdadeira lenda da música japonesa. Considerado um dos principais inovadores do Synth Pop e admirado por nomes que vão de Brian Wilson a Afrikah Bambaata – passando por Iggy Pop e Pedro Almodóvar –, o músico nascido em Tóquio é, para variar, bem mais que isso. Sua capacidade de aliar elementos de música eletrônica, som ambiente, música clássica – especialmente no piano, instrumento que toca desde os 3 anos de idade –, propostas desplugadas e as mais variadas texturas e camadas rendeu uma premiada carreira como compositor de trilhas sonoras, além de uma lista versátil de parcerias. Sakamoto é dono de um ecletismo invejável para criar seja ambiências ou até sons para pistas, indo de tons etéreos – caso da estreia solo, Thousand Knives Of. Two Years (1978) – a grooves mais dançantes, como em “Computer Game”, hit do YMO. 

Com o fim do grupo em meados da década de 1980, ele ativou de vez as colaborações e percorreu um caminho estelar: venceu o BAFTA de Melhor Trilha Sonora por Merry Christmas, Mr. Lawrence (1983), filme em que contracena com ninguém menos do que David Bowie; gravou uma versão de “We Love You”, dos Rolling Stones, incluída no discão Beauty (1989), ao lado de Robert Wyatt e Brian Wilson; e assinou produções para gente como Iggy Pop e Bootsy Collins. Em 1989, recebeu o Oscar de Melhor Trilha Sonora pelo trabalho feito ao lado de David Byrne e Cong Su em O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci. As incursões em diferentes gêneros ainda rendem outras pérolas como Casa (2001), disco gravado com o casal brasileiro Jacques e Paula Morelenbaum, que traz releituras de Tom Jobim.

Após ser diagnosticado com câncer na garganta em 2014, Sakamoto compôs a trilha de O Regresso (2016) e retornou aos trabalhos com o celebrado async (2017), uma complexa e afável união de sons que, segundo ele, foi composta para ser a trilha de um filme não-existente de Andrei Tarkovsky. 

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