nos bailes da vida: beatriz lima

A baixista paulistana repassa sua carreira, do primeiro contato com o instrumento – e com o rap – até subir ao palco acompanhando nomes como Coruja BC1, Don L, Luedji Luna e Brisa Flow

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Fotos: Naná Curti

 

A série nos bailes da vida conversa com músicos, musicistas e artistas que, de show em show e de estúdio em estúdio, emprestam seu talento (a músicos, musicistas e artistas) por aí.

 

 

“Eu lembro que fui numa lan house e pesquisei: ‘mulheres que tocam baixo’. A primeira que apareceu foi a Honda Smith e ela, enfim, incrível, né? Depois que vi aquele vídeo, eu só soube. É isso que eu quero fazer”, relembra Beatriz Lima, de 28 anos. Sua primeira interação com o baixo foi assim, no susto, aos 17 anos, como necessidade da banda da igreja e ela, que já acompanhava o grupo tocando violão desde os 13 anos, sentiu medo — o baixo, assim como a bateria, era visto dentro da igreja como um instrumento demasiadamente masculino. Essa pesquisa na lan house, buscando uma prova, sobretudo para si mesma, de que mulheres e baixo coexistem, definiu um mergulho de cabeça no instrumento que, hoje, já levou Beatriz Lima aos palcos com Don L, Luedji Luna, Brisa Flow e Coruja BC1.

O ingresso da baixista na cena de rap começou há cinco anos quando ela recebeu o convite para tocar com Coruja BC1 no Sesc Vila Mariana. “O divisor de águas da minha carreira foi quando eu comecei a tocar com Coruja BC1 porque a experiência de tocar com ele me fez entender onde eu estava e onde eu queria estar. Mais: foi quando eu percebi que o rap estava na minha vida sem eu nem saber, o rap estava em as minhas influências, o rap estava em tudo. E eu me senti muito pertencente a esse lugar, por ser uma pessoa que veio da periferia, de uma família humilde, de várias coisas. Então, eu me senti muito presente naquele lugar. Como quem se sente mesmo daquele movimento, sabe?”.

Hoje, Beatriz afirma que as suas raízes musicais são axé, forró e rap, gêneros que atravessaram sua infância e sua rua, no extremo oeste de São Paulo. Mas, durante sua vida toda, esses não eram seus estilos musicais favoritos, e a baixista nem mesmo prestava muita atenção ao rap. Só quando ela começou a trabalhar com rap e viver o rap é que o som (e tudo que vem com ele) bateu — um encontro que veio de forma avassaladora, com uma intensa rotina de ensaios, voos e palcos, e também com um quê de mágica, em cima do palco e vendo à sua frente o êxtase de um dos gêneros musicais mais importantes na história do país.

(Foto: Rodolfo Magalhães)

Você toca com muita gente, de Brisa Flow a Don L. Me conta qual foi seu show mais underground e qual foi seu maior show?

O meu maior show foi no João Rock com o Coruja BC1. Alguém do BaianaSystem testou positivo para Covid-19, então colocaram o Coruja no palco principal em horário nobre. Ele era super novo na época, mas botou a galera pra dançar, se divertir. A gente tava sem poder ensaiar, então a gente ia consertando tudo no show. Quando a gente soube que a ia tocar no palco principal, a gente ficou no hall do hotel passando música a música, cantando, cantarolando e foi muito legal porque no show a gente estava tão feliz que tudo deu certo. A gente se olhava no palco sem nem entender o que estava acontecendo e eu acho que esse show foi assim…Nossa, ainda não consegui superar esse show de todos que eu já fiz.

E qual que foi da sua vida o show mais underground, a maior história de perrengue?

Um show autoral que a gente ia fazer com uma cantora brasileira e meu baixo tava com alguns problemas técnicos porque ele estava captando ondas de rádio. Tiveram que fazer um fio terra no baixo para mim, então colocaram um fio no baixo e um fio nas minhas costas — inclusive, eu tenho essa marca até hoje porque o fio ficou encostando em mim o show inteiro e eu não estava aguentando mais porque estava me machucando e eu precisava terminar o show.

(Foto: Nathália Gonçalves)

Para você, o que uma pessoa tem que ter para ser um músico de gig? Pode ser desde uma coisa concreta, como dominar um instrumento, até uma coisa bem abstrata, como gostar de um tipo de música.

Ter a mente aberta para diversos estilos musicais. Música brasileira, rock, rap, jazz e instrumental. Uma coisa que eu acho fundamental é manter um estudo, independente do lugar onde você esteja. É muito valioso buscar conhecimento. A música é um universo que a gente sempre tem que estar aprimorando, fazendo uma manutenção diária da sua técnica, do seu ouvido e da sua apresentação.

Quando você começou a tocar com o Don L e como tem sido essa experiência?

Foi em novembro do ano passado, para o Primavera Sound. Foi muito legal, muito legal mesmo. Eu fiquei muito admirada também pela forma como ele trabalha, o Don L sempre tem várias ideias, propõe várias coisas e faz a banda imaginar junto, sabe? Ao mesmo tempo em que ele gosta muito de manter as versões do disco, tem outras que ele quer fazer tudo diferente. Isso é muito engraçado porque ele dá essa liberdade para gente poder criar e ele vai criando junto. Quando você demonstra uma ideia, ele poderia muito bem falar “ah, legal, está boa essa ideia”, mas ele é mais do tipo que diz “poxa, é isso, mas a gente pode ir um pouquinho ainda mais fundo”, sabe? Ele gosta mesmo de instigar a banda, de trazer o máximo que tem aí dentro de você. E isso é muito interessante, porque isso força a banda a pensar e criar junto. É um dos trabalhos mais diferentes que eu já fiz.

“O Don L gosta de instigar a banda, de trazer o máximo que tem dentro de você”

É muito louco pensar que hoje você tenha voltado pra esse lugar do rap, do pertencimento e está tocando com todas as pessoas. O que você escuta assim quando chega em casa?

Olha, eu amo música instrumental, inclusive tenho um projeto autoral de música instrumental que são as minhas composições, chama Rosas e Jeans. Mas é um projeto que não está ainda no mercado, está na gavetinha aqui! (risos). Eu lembro que tive um choque de realidade muito grande quando comecei a estudar na EMESP (Escola de Música do Estado de São Paulo). Eu entrei lá também quando tinha acabado de pegar o baixo, fiz uma prova super concorrida e acabei entrando num curso que tinha uma preparatória. Eu lembro que a minha primeira aula foi sobre o walking bass, que é uma técnica, um jeito de tocar conhecido no jazz, e eu nunca tinha escutado jazz na minha vida com 17 para 18 anos.

Jazz, música brasileira, bossa nova, isso tudo para mim era novo. E eu lembro de perguntar e o professor falar “nossa, mas você não conhece…?” e o gesto, a expressão dele foi muito forte para mim. Só depois que fui entender que tem a ver com eu ser da periferia e os estilos musicais que eu conhecia eram diferentes. Eu comecei a estudar lá no instrumento que eu tinha – treinava baixo no violão, então, era uma coisa de força de vontade porque eu tinha um baixo disponível só lá na igreja mesmo e, por isso, eu fiquei quase seis meses só escrevendo nome de jazzista e escala. Então, acho que quando eu entrei na EMESP eu acabei mergulhando mesmo na música instrumental, no jazz fusion, na bossa nova — e foram estilos que eu acabei gostando muito, sabe? Hoje eu tenho ouvido muito música instrumental e os grandes baixistas do Brasil, como Arthur Maia e Nico Assumpção. São músicas assim que eu gosto de escutar aqui; Chico Buarque, Tom Jobim, Chick Corea, essas são as minhas referências musicais que eu paro pra pra pra escutar fora os trabalhos.

Mas, por outro lado, eu comecei a me fechar muito nesse momento. Eu tinha medo de falar, de perguntar e sentia que tudo poderia ser usado contra mim. Eu lembro que por vezes tremia enquanto tocava para o professor, sabe? E para sair desse trauma foi um longo percurso. Hoje, por exemplo, eu dou muitas aulas de baixo, principalmente para mulheres. Mulheres devem tocar baixo porque é muito legal e eu sempre falo que para aprender você precisa errar. Tem que errar, não tem problema em errar porque a gente está em um processo de aprendizagem. Então, eu sempre tento fazer a aula de uma forma aberta e tranquila para que as pessoas consigam tirar suas dúvidas e para que aprender seja gostoso.

“Uma coisa fundamental é manter um estudo, independente de onde você esteja. Buscar conhecimento. A gente sempre tem que estar aprimorando, fazendo uma manutenção diária da sua técnica, do seu ouvido e da sua apresentação”

Me fala uma música do repertório dos artistas com quem você toca que mexe muito com você.

O Don L é muito reflexivo no geral, mas tem uma música em especial que eu acho muito, muito boa, muito divertida de tocar, que é “Primavera”; muito legal e muito interessante instrumentalmente falando. Do Coruja BC1, eu curto muito “Baby Girl”. Da Assucena, eu gosto muito de uma música autoral dela que se chama “Partido Alto”, tem uma letra cheia de ambiguidades, cheia de ligações interessantes e tem um arranjo muito legal, inclusive tem uma linha de baixo muito saborosa.

Do 2DE1 tem uma música que se chama “Emersão”, do último álbum deles, e acho que é uma das minhas favoritas. Ah, e eu também acompanho o ÀVUÀ, do JP e da Bruna Black, outro duo incrível que faz música brasileira assim muita qualidade — deles, eu gosto muito de “Comum”.

Qual foi a última música ou artista que te deixou completamente obcecada?

Obcecada pelo John Patitucci, que é um baixista que eu admiro muito. É alguém em que eu me inspiro muito e, por isso, eu sempre fico de olho nos processos, no que ele está fazendo, se ele está gravando. Porque é alguém que eu admiro muito, inclusive tecnicamente falando. E eu sou um pouco obcecada no geral por discos de baixistas, amo, acompanho e apoio muito.

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