A série nos bailes da vida conversa com músicos, musicistas e artistas que, de show em show e de estúdio em estúdio, emprestam seu talento (a músicos, musicistas e artistas) por aí.
De Ana Frango Elétrico a Gilberto Gil, de Ilessi a Marcos Valle: a lista de colaborações de Guilherme Lirio, de 30 anos, vai das maiores figuras da música brasileira aos talentos emergentes do Rio de Janeiro. No meio dessa agenda apertada de show em show, tocando para três ou três mil pessoas, o guitarrista e baixista carioca encontra tempo para produzir os trabalhos autorais de outros artistas e também fazer música em cima de áudios de Whatsapp da Laurinha Lero. Guilherme é uma pessoa tímida, engraçada e tem uma maestria, consciente ou não, de fazer as pessoas se sentirem à vontade perto dele. Curiosamente, quando perguntado o que uma pessoa precisa ter para conseguir ser um músico que, assim como ele, acompanha várias bandas, a resposta repousa nessa sua leveza: ser fácil de conviver, até porque se você vai pegar avião, estrada e balsa para chegar em um show, é preferível estar em boa companhia.
Talvez a trilha inusitada de Guilherme Lirio comece mesmo nessa facilidade de conhecer pessoas, propor parcerias e construir relações para viver de música. Foi assim, inclusive, que ele conheceu sua melhor amiga, Ana Frango Elétrico, depois de ver uma apresentação solo dela no CEP, só Ana e guitarra, e propor para fazer um show similar, mas com uma pegada mais punk, meio White Stripes, só ela e uma bateria e, é claro, ofereceu-se para tocar bateria. Ana topou, enviou as músicas e eles tocaram juntos. Pouco tempo depois, Guilherme viria a co-produzir o disco de estreia da cantora e compositora carioca, Mormaço Queima (2018).
Com um grande acesso e contato com instrumentos desde cedo. Das aulas de piano que se tornaram um pouco chatas para o menino que só ouvia rock às aulas de baixo para somar nas bandas da escola, Guilherme sentia que só seria ouvido quando tivesse sua banda e, para isso, a guitarra parecia imprescindível. Aprendeu a tocar e era tão encantado por rock que o nome da sua primeira banda foi OUT PUT, uma sacada do adolescente depois de se dar conta de que AC/DC é uma entrada atrás dos eletrodomésticos e o nome do cabo ao lado era OUT PUT. Guilherme chegou a participar do reality Geleia do Rock, 13 anos atrás, mas ainda assim não tinha decidido seguir com a carreira na música. Foi estudar cinema com planos de virar roteirista, motivado tanto pela paixão por filmes — seu favorito hoje é O Abraço da Serpente (2016), de Ciro Guerra — quanto pelo desejo de contar histórias, ao qual ele pretende dar forma com seu disco e show autoral. Guilherme terminou o curso, mas no meio do caminho conheceu um dos músicos mais influentes da sua trajetória, o baixista Alberto Continentino.
Além dos shows, a produção musical é uma das principais atividades do músico. As colaborações vão de Dora Morelenbaum a Matheus Torreão, de Illy a Um Haitiano e a maior parte do seu trabalho recente ainda vai ser lançado em 2023. Por enquanto, Guilherme tem uma compilação de todas suas produções nesta playlist. Já nesta playlist exclusiva para o Monkeybuzz, o guitarrista trouxe uma seleção de músicas que ele tem descoberto (e se encantado) junto de faixas que foram fundamentais na sua formação como músico. Depois de uma hora rindo com Guilherme Lirio, entre histórias de perrengue e imprevistos de backstage, é impossível não achar curioso que sua única gravação cantando, uma joia rara disponível no Bandcamp, seja um samba de Nelson Sargento: “Minha Vez de Sorrir”.
Quando você percebeu que queria viver de música?
O que me fez querer levar a sério assim foi conhecer o Alberto Continentino. Ele é um dos maiores baixistas do Brasil e toca com muita, muita gente. Ele também vai ser um perfil incrível pra vocês. Ele já tocou com literalmente todo mundo, Caetano Veloso e também gravou no último disco da Ana Frango Elétrico. Eu conheci ele quando tinha uma outra banda chamada Exército de Bebês e a gente era muito fã dessa galera que é uma galera muito do Rio, né? O Kassin, Domenico, Pedro Sá, a gente era muito fã deles e ia em muitos shows deles.
Nessa época, o Stéphane San Juan, um francês que mora no Rio há 12 anos e tem uns discos muito bons, é um baterista que já tocou com todo mundo, desde Caetano Veloso, Vanessa da Mata até Amadou & Mariam, sabe? Um dia ele foi ver um show nosso e ele curtiu muito. Ele estava para lançar o Système de Son (2014) que era a primeira vez dele como cantor, então tinha muita insegurança de se apresentar cantando porque ele sempre foi baterista a vida inteira. Foi meio que um casamento perfeito porque a gente tinha uns 20 anos e ele queria alguém que pudesse ensaiar bastante com ele e até ele se sentir mais confiante. Então, foi muito bom porque a gente cresceu muito num nível musical, profissional e fizemos vários shows com ele.
O Alberto Continentino foi a mesma coisa: estava para lançar o disco dele, nunca tinha cantado e chamou a gente com o Stéphane na bateria. E aí eu via eles, ia nas gravações para ver a música sendo feita e quando eu vi tipo a música que o Alberto fazia eu falei: se eu estiver fazendo isso acho que eu vou estar bem, sabe? Independente de qualquer coisa.
Qual foi o show mais underground que você já fez?
Tenho uma história de um show que não é exatamente underground, mas é bem aleatório. Eu tinha uma banda chamada Exército de Bebês e a gente já tocou em um desfile de cabeleireiros. Era num teatro e a ideia era que cabeleireiros cortavam cabelo ao vivo e tinham modelos desfilando enquanto a gente tocava um som meio dance assim.
E qual o mais “absurdo”, mais mainstream?
Ah deve ter sido com o Gil no Queremos ou no MITA.
Então, como você começou a tocar com Gil? Me conta mais sobre essa aproximação.
Maior sorte, né? Assim, eu conheço Bem Gil porque a gente ia nos shows do Tono, ele passou a ir em shows nossos e ficamos amigos, eu e Bem. E eu faço sub do João Gil, que é neto do Gil e toca no Gilsons. Como o Gilsons começou a bombar e ele e o Bem revezam baixo e guitarra no show do Gil, o Bem viu que iria precisar de alguém pra substituir o João e precisava ser alguém que tocasse baixo ou guitarra, então eu fui a primeira pessoa que ele pensou. Do nada, ele me mandou uma mensagem assim: ah, pô, tô precisando de alguém pra substituir o João nos shows do pai. Eu olhei a mensagem assim e falei, “pô, ahm? Sério isso?” Muito louco.
E qual é o vestibular pra tocar com o Gil?
Então, ele me mandou um show que eles tinham feito na França que era o show que eu tinha para estudar para tocar. Eu tirei o show todinho, só que meu primeiro show que ia rolar com o Gil foi num casamento em Itacaré. Uma semana antes do ensaio alguém falou que as músicas não seriam aquelas do show. Eles ainda estavam vendo com o GIl e eu não sabia o que eu ia tocar, se era baixo ou guitarra, muito menos quais músicas eram o repertório. Faltando uns três dias, o João me mandou as músicas, várias já tinha estudado e outras não. No ensaio, eu me senti muito mal na verdade, foi péssimo, meu amplificador tava horrível, eu fiquei muito nervoso porque tocam o Danilo, que é tecladista do Jorge Ben, e o Mestrinho, que toca acordeom. Eles tocam muito, coisa de outro mundo, então eu não conseguia meio que nem tocar de guitarra direito nas músicas.
E aí teve um negócio engraçado também: a gente passou o show inteiro nesse ensaio, e no “Andar com Fé” o Gil parou e disse “Não, a guitarra não, a guitarra ainda não chegou”. Aí puta que pariu. Toquei outra parada e o pior é que eu tinha feito uma coisa que tinha achado muito boa, eu tinha achado até meio Gil e aí ele falou que não, não estava bom. Eu fiz outra coisa e ele parou de novo “Não, não, a guitarra ainda não, a guitarra…” Não estava rolando e eu fui pra casa me sentindo mal pra caralho. Só depois que eu me toquei: a gente passou umas 20 músicas e ele só não gostou dessa. Então, quer dizer que dezenove estava ok pra ele. Na verdade, eu achei até bom ele ter reclamado porque mostra que ele estava ouvindo tudo, sabe?
“Com o Gil, eu só quero ficar invisível. Ficar invisível e sorrindo”
E o primeiro show com ele? Foi nesse casamento?
É e deu tudo errado assim. A elétrica do lugar estava toda fudida e então todos os amplificadores tinham ruído enorme. E os noivos ainda pediram pra tirar “Drão” porque era devagar demais.
Caraca, que absurdo. Nossa e o Gil tem que passar por isso hoje. Nunca imaginaria uma coisa dessas.
É, tem várias situações que eu vejo também ele passando e fico só pensando “caraca, que loucura”. Por exemplo passar som 23h na véspera de um festival enquanto estão construindo o palco, fazendo obra mesmo, e o Gil tendo que esperar a obra assim, sabe? De braço cruzado esperando a obra acabar para passar uma música.
E o amplificador estava ruim, mas como foi a apresentação no geral?
Ah, meio que deu tudo errado. Meu amplificador parou de funcionar, eu quase chorei, sabe? Eu imaginei ele olhando pra trás assim e pensando “Pô, quem são esses moleques que meu filho arruma pra tocar comigo?”, risos. Na verdade, quando eu vi que todo mundo estava meio fodido e o show rolando, eu falei: cara se isso aqui acabar bem, eu meio que posso passar por qualquer coisa, sabe? Aí meio que relaxei pra sempre talvez.
E você dá pitaco nas apresentações, nos ensaios?
Ah, depende muito, né? Com o Gil de jeito nenhum. Nada. Eu quero só ficar invisível, ficar invisível e sorrindo.
E Marcos Valle?
Não, não, nada. Até porque são shows que já existem, eu estou lá pra substituir alguém, sabe? Talvez em um jeito mais subjetivo eu dê um pitaco no sentido de fazer algumas coisas um pouquinho diferente, sabe? Mas verbalmente não.
Em quais ensaios ou shows você se sente mais à vontade de pitacar?
Em shows novos, que não existem ainda. Um show da Ana Frango Elétrico, do Vovô Bebê ou da Dora Morelenbaum.
Diz uma música especial do repertório dos artistas com quem você toca.
Tem que estar no repertório? Acho que talvez “Torturadores”, da Ana Frango Elétrico. É linda e às vezes a gente não toca ali em show porque a Ana acha que a música é meio pra baixo e tal, mas é engraçado que já rolou algumas vezes da galera pedir a música animadona gritando “Torturadores”, o que é uma coisa estranha de gritar em coro. Com Vovô Bebê, eu acho “Sobre o Natural” de chorar. Gosto muito de “Double Dip”, do Alberto Continentino, e “Realce”, do Gilberto Gil.
Para você, o que uma pessoa tem que ter pra poder ser um músico de gig? Pode ser desde uma coisa concreta, como dominar um instrumento, até uma coisa abstrata, tipo gosto musical.
Eu acho que tem que ser uma pessoa muito gente boa na verdade, uma pessoa boa de se conviver, sabe? Porque você vai passar muito tempo junto — aeroporto, avião, estrada, van, sabe? Ensaio, passagem de som, então acaba rolando uma convivência forte e eu acho que, na verdade, ser uma pessoa agradável acaba contando mais do que tudo eu acho.
E você pensa em engatar uma carreira mais autoral assim, de ter uma banda sua, lançar projetos?
Sim, eu penso muito nisso! Eu estou para gravar o meu disco, ainda não comecei, mas penso muito, muito, muito nele, já tenho ele na cabeça todo praticamente. Na minha vida, o humor é um negócio muito forte, sabe? Então, meio que o disco seria meio humor orientado um pouco, mas não tanto também, mas… que que eu tô falando… (risos). E aí tem várias coisas que mudaram muito minha cabeça assim como João Gilberto, que mudou como eu penso música. E o próprio Alberto Continentino. Tenho também vontade de trazer algumas coisas do funk americano, tipo Sly and the Family Stone.
Você já sabe quando vai lançar, tem uma data?
Seria bom me dar um prazo, realmente.
Qual foi o último artista que te deixou obcecado?
Eu gostei muito do disco de estreia do Nyron Higor. Ele é um músico de Alagoas, dessa galera do Bruno Berle e Batata Boy. Inclusive, eu fiquei muito amigo deles na pandemia pela internet, uma loucura. O Nyron soltou um disco chamado Fio de Lâmina (2022) e eu achei muito foda.