A série nos bailes da vida conversa com músicos, musicistas e artistas que, de show em show e de estúdio em estúdio, emprestam seu talento (a músicos, musicistas e artistas) por aí.
A garagem da casa onde Helena Cruz passou a infância parecia o cenário da série That’s 70s Show: o espaço foi feito para escutar vinis e tirar um som sem importunar o restante dos moradores. “Era um lugar onde eu podia tocar sem incomodar a minha irmã mais velha, que já não aguentava mais ouvir as mesmas coisas, então eu vivia lá”, lembra Helena que, com nove anos, já viajava na coleção de discos da família para replicar as linhas de baixo.
Incentivada pelos pais a continuar estudando o instrumento, ela passou a ter bandas com os amigos do colégio. “É muito importante falar dos festivais de escolas, foi onde conheci as pessoas com quem toco junto até hoje”. Quando estudava no Oswald de Andrade, esbarrou com o Theo (Ceccato), estudante do Vera Cruz, e que a apresentou para o Vicente (Tassara) no vão da FFLCH. A dupla, que também integra a Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, a convidou para participar da Pelados – que conta ainda com Lauiz e Manu Julian.
Antes de entrar na Pelados, em 2018, Helena participou durante três anos da Luzia, formada por Lumanzin, Pedro Lacerda, Pedro Ascaleta e Renato Putini. “Cada um seguiu outro caminho, foi um término de namoro. Ter banda é uma coisa muito visceral, então me agarrei na Pelados. Compor o disco Foi Mal (2022) me fez me reconhecer para além de baixista, pois exercitei a musicalidade de outras formas”, lembra.
Em paralelo ao grupo, a baixista integra a banda de outros artistas, como Sessa, Malu Magri, Belagio, Bruno Berle e Patrícia Bastos. “Sou sub de várias pessoas, mas você nunca vai realmente ser um substituto porque cada pessoa toca de um jeito, cada um tem a sua identidade. Acho uma pira tocar com tanta gente de estilos musicais diferentes. Me sinto privilegiada”, explica.
A sua gig mais recorrente é com o Sessa, que a escalou para acompanhá-lo no show de lançamento do disco Estrela Acesa (2022). Desde então, a banda fez shows pelo Brasil e pela Europa: “Ele me convidou para fazer sub do Marcelo Cabral, inclusive, eu tinha até postado um vídeo tocando as linhas dele no disco porque o Cabral é uma das minhas referências”.
Na sua lista de influências, Helena cita os brasileiros Arthur Maia, Alberto Continentino, Sizão Machado e Guilherme d’Almeida. No exterior, destaca Carol Kaye, musicista americana colaboradora de Phill Spector, Quincy Jones e muitos outros, e Tina Weymouth, do Talking Heads. Assistir Stop Making Sense (1984) foi uma experiência transformadora: “O Talking Heads virou a minha banda favorita, justamente porque foi a primeira vez que vi uma mulher tocando baixo. Esse filme mudou a minha vida”.
Ainda que hoje em dia conheça outras instrumentistas, entende como o cenário está longe de ser igualitário. Desde 2020, passou a divulgar aulas de baixo em seu perfil no Instagram – que soma 104 mil seguidores – e se surpreendeu com a adesão: “São pessoas que me seguem por lá e ninguém que eu conhecia antes. Gosto muito que a maioria são mulheres”. Na plataforma, além de divulgar os shows que participa, compartilha vídeos de covers e experimentações com loops. Em janeiro, uma versão de “Saudosa Maloca”, de Adoniran Barbosa, viralizou e chegou a 4M de views. No entanto, o vídeo gerou um mal-estar para Helena, pois ela recebeu uma enxurrada de comentários misóginos. O motivo? O vídeo é ambientado na lavanderia.
Após bloquear mais de 100 perfis, fez um boletim de ocorrência por importunação e passou dias preocupada com a repercussão: “Recebi diversos comentários criminosos. Homens me importunando sobre o lugar da mulher. Demorei quatro dias para conseguir fazer esse vídeo e eles comentaram que o instrumento que eles mais gostaram era o meu peito balançando. Afetou a minha saúde mental”. Não era a primeira vez que algo dessa natureza acontecia, porém nunca havia alcançado essa dimensão. Somente pela exposição online, além dos comentários, é comum aparecerem cantadas, nudes não requisitadas, entre outras modalidades de assédio virtual.
Outro comportamento de praxe é o mansplaining: “Sabe quando você está com camiseta de futebol e o cara diz: ‘então fala o nome do jogador’. São maneiras de colocar o meu conhecimento em jogo. Como a sensação de ir sozinha na Teodoro Sampaio e ver como é difícil os caras te levarem a sério. Como se você não soubesse o que está procurando. Sendo que eu sei disso tudo”.
Pouco tempo depois, Alana Alberg, baixista, integrante da banda do Jão, publicou uma série de stories desabafando sobre o mesmo assunto. “Ela falava: ‘só vou parar de denunciar quando isso parar de acontecer’. São pequenas violências permitidas na internet porque as pessoas falam o que querem.” Trocar experiências com outras instrumentistas a fez entender os padrões de comportamento e a necessidade de se articular ao lado de outras artistas. “Quero trabalhar com outras minas, fazer algo a partir dessa violência, não deixar me silenciar”.
Como você lida com a exposição online?
Não me considero blogueira, mas é louco como a internet não tem regras. Fiquei com medo e muito preocupada. Comecei com poucos seguidores e vi meu trabalho chegando em outras pessoas. Foi por ali que conheci pessoas maravilhosas, como o Sessa, o Bruno (Berle) e a Malu (Magri). Esse universo me deu uma vida diferente. Nunca me senti tão eu, mas é algo que me trouxe inúmeros outros medos. Além das noias das curtidas e comentários, vêm as violências, o cyberbullying e o assédio. Isso tudo me deu vontade de estudar, fazer um mestrado, pesquisar musicologia. Li Calibã e Bruxa (2017), da Silvia Federici, que me fez pensar nas relações de trabalho na música, e em todas as violências contra as mulheres dentro disso. Como ressignificar essas violências? Para que elas nos mobilizem e não destruam. Comecei a ler e ouvir muitos podcasts sobre essas disparidades. Bloqueei algumas palavras chave nos comentários, compartilhei a história com as minhas amigas, fiz boletim de ocorrência… Não pretendo tirar o vídeo do ar, demorei quatro dias para fazê-lo, não vou me admitir como vencida. As mídias sociais precisam ser reguladas. Agradeço por ter o veículo, entendo a sua importância, virou um campo de conexão com outras mulheres instrumentistas e alunas, mas às vezes apago o aplicativo do celular porque isso não é real.
Quando você começou a dar aulas?
Sou formada em história e sempre gostei de estudar. Além disso, sempre tive uma relação forte com professores. Quando me formei no colegial, por não ter tido um ensino formal, fiquei receosa em prestar música. Então peguei minha matéria favorita da escola, história, e decidi que seria professora. Me formei na FFLCH, então com 20 anos, já estava dando aula em escola particular. Fui professora de adolescente dos meus 20 aos 24 anos. Porém, por ser professora de história num momento político foda, começou a rolar muita censura e perseguição na escola onde eu trabalhava. Resolvi me desligar e me afastar da educação. Foi um corte lacaniano. Depois disso, foquei na música, mas sentia falta de dar aula. Aos poucos fui conciliando isso. Comecei a dar aula de baixo no ano passado, com alguns alunos online, e a coisa foi pra frente. Fiquei mais confiante. Acabei gostando e desenvolvendo uma didática.
Como você avalia essas trocas?
Ser professora acaba fazendo com que você volte a estudar. Como atribuir sentido em algo que também é técnico? Os meus alunos são as pessoas que me seguem no Instagram, não os conhecia antes. A maioria são mulheres, gosto muito disso. Quando cresci, não tinha referências de mulheres no baixo. Aos 11 anos, conheci a Tina (Waymouth), do Talking Heads. Assim como a bateria, o baixo, por ser grave, é muito associado aos homens. Eu era tomboy, sofri muito bullying na adolescência somente por tocar baixo e parecer masculina. Foi muito gratificante quando surgiram minas querendo aprender comigo.
“Sou sub de várias pessoas, mas você nunca vai realmente ser um substituto porque cada pessoa toca de um jeito, cada um tem a sua identidade. Acho uma pira tocar com tanta gente de estilos musicais diferentes. Me sinto privilegiada”
Aos nove anos, quando você começou a estudar música, foi direto no baixo? Ou tentou outros instrumentos?
Não há instrumentistas na minha família, mas todos são muito musicais. Os meus pais sempre colocavam pra tocar discos do Clube da Esquina, Caetano Veloso, Cássia Eller… Eles tinham uma coleção de LPs, me ensinaram a colocar a agulha no vinil, então a gente sempre teve uma relação forte. Tenho duas irmãs, uma mais velha e uma gêmea, que não se parece nada comigo. A minha irmã mais velha começou a tocar violão, então a gente queria copiá-la. Um amigo da minha prima começou a dar aulas pra gente. Ter uma irmã gêmea é importante nesse percurso porque a gente cresceu em comparação. Ela pegou o violão muito rápido, então ficava nervosa e frustrada. Na época, o professor perguntou se eu já tinha ouvido falar do baixo porque ele seria mais fácil do que a guitarra por conta das quatro cordas. Passei um ano tocando baixo no violão até ganhar um de Natal do meu pai. Depois disso tirava as músicas de ouvido e fui me encontrando. Talvez seja a primeira coisa que me diferenciou da minha irmã. Isso foi louco: na hora que eu abracei a música, ela falou que não era para ela. Hoje em dia, ela trabalha com música, mas se formou em dança, então trabalha com videodança, mora em Barão Geraldo e vive na cena de forró, tocando e cantando. A música foi a primeira coisa que fez com que os meus amigos me separassem da Sofia, eles passaram a nos ver como duas pessoas diferentes. Apesar da gente não ser parecida fisicamente, na escola, a gente era um conjunto. Por isso, me apeguei com garras e dentes a isso: por ser uma parte da construção da minha identidade.
De certa forma, esse momento representou um distanciamento entre as irmãs?
Foi a primeira coisa que era minha e não era algo que a gente fazia juntas. Eu fui me apaixonando. Era algo que eu me identificava porque desde criança não me identificava com os padrões de feminilidade. Eu já era bem estranha. Menstruei cedo então era alta pra caramba, jogava bola e vivia com roxo no joelho. A minha irmã era bem feminina. Hoje em dia, é engraçado, mas ela é bissexual e sempre namorou minas. A gente pegou a cabeça da nossa mãe e virou de ponta cabeça com a questão de estereótipos. Eu era bem tímida, nerdzinha, então fui me entendendo junto do baixo. Quando você começa a estudar um instrumento, indico para todo mundo, acaba entendendo a música de um jeito diferente. Às vezes, isolar certos instrumentos ou prestar mais atenção no que é possível reconhecer.
No processo de olhar a música de outra forma, o que mais te chama atenção numa linha de baixo?
Tive uma adolescência muito roqueira: Led Zeppelin, The Who, Beatles, Yes, King Crimson. Fui me aproximando da música brasileira mais velha, quando já conseguia tirar a música de ouvido. Ainda é difícil encontrar linha de baixo transcritas. Normalmente são materiais gringos. A Black Rio e o Itamar Assumpção são referências. Demorei para ouvir e descobrir, mas não abandono as coisas que ouço desde criança, são coisas que vão mexendo com a minha cabeça. Ultimamente presto atenção na Carol Kaye, que é uma baixista de estúdio, que foi apagada da história por ser uma instrumentista dos anos 1960. Ela gravou as linhas do Pet Sounds (1966), da trilha da série do Missão Impossível (1966), fez coisas com Quincy Jones e muita gente. No encarte do disco você consegue ver quem gravou, mas não temos essa informação no streaming. Presto atenção nas identidades sonoras e timbrísticas de cada instrumentista. Hoje em dia, gosto de entender as identidades de quem está por trás disso. Tem o instrumentista de gig, que é diferente do músico de estúdio. Vou tentando descobrir novas gravações e projetos dessas pessoas.