nos bailes da vida: sthe araújo

Entre palcos, estúdios e carnavais, a percussionista relembra sua trajetória até assumir a direção musical da regravação do disco de Carolina Maria de Jesus

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Fotos: Igor de Paula

A série nos bailes da vida conversa com músicos, musicistas e artistas que, de show em show e de estúdio em estúdio, emprestam seu talento (a músicos, musicistas e artistas) por aí.

 

Sthe Araújo tem 26 anos e uma porção de boas histórias no bolso. A percussionista paulista que hoje acompanha Jorge Du Peixe, Céu, O Novíssimo Edgar e faz parte de grandes formações como A Espetacular Charanga do França e Funmilayo Afrobeat Orquestra, agora se prepara para dar mais um passo: na próxima sexta-feira (3), Sthe lança Bitita – As Composições de Carolina Maria de Jesus, uma regravação do disco de 1961 em que a autora Carolina Maria de Jesus canta suas composições. A iniciativa é do Selo Sesc e inaugura a carreira de Sthe Araújo como produtora e diretora musical. A diretriz estética do projeto foi colocar vozes e percussões em pé de igualdade, retirando os tambores da sua posição tradicional na produção e dando espaço para que os instrumentos (e instrumentistas) ganhem o protagonismo da obra.

Criada na zona sul de São Paulo, Sthe conviveu com uma grande efervescência cultural no seu bairro: dança, grafite e música estiveram por perto desde a infância da musicista. As oficinas de maracatu e a formação no teatro foram primordiais na adolescência, apesar de Sthe se lembrar da última com sabor agridoce. Com 13 anos, começou no maracatu e, aos 15 anos, a formação no teatro já não permitia que ela comparecesse aos ensaios. Encontrou então outro grupo chamado Caracaxá, o qual frequentou por cinco anos. “Terminei o teatro esgotada”, relembra, “Não aguentava mais, estava muito triste por muitas situações que aconteceram e que só hoje eu consigo perceber o que aconteceu mesmo. Mas a minha maior vontade era voltar a tocar”.

Assim, em uma busca latente pelo antídoto de um veneno que poderia não ter ainda nome, mas já tinha efeito, Sthe encontrou na música e nos movimentos de rua um espaço em que era possível ser. E ela tentou de tudo: grupos de percussão, grupos de dança, balé afro e o que mais couber na conta. E, como num Carnaval, quando o acaso dá conta de tudo que há no mundo, Sthe um dia viu um anúncio em uma rede social que dizia: ensaio aberto da Espetacular Charanga do França — venham assistir, vamos ensaiar na rua e, pessoas que tocam percussão, podem chegar com seu instrumento. Sthe foi porque quando a vida convoca, a gente vai. Na época, ela nem sabia quem era Thiago França, o saxofonista do Metá Metá e idealizador da Espetacular Charanga do França, um dos blocos mais celebrados do Carnaval de rua de São Paulo. E, como nas melhores histórias da vida e do Carnaval, ela só foi e, no final do ensaio, França pediu seu contato e a convidou para continuar ensaiando com a banda, todas as terças.

(Foto: Jorge Sato)

Sthe tinha 20 anos e já anunciava seu gosto por uma vida agitada — estamos falando de uma percussionista que, anos mais tarde, toparia no mesmo Carnaval tocar na Charanga do França e desfilar como pernalta do Bloco Ilú Obá de Min, que desfila em dois dias diferentes. Mas o fato é que quando o Carnaval de 2017 passou, ela sentiu falta. Foi quando recebeu uma mensagem: “Sthe, convido você para entrar na banda da Charanga do França. A gente vai fazer shows dia 30 de março, 31 de março e dia 1º de abril. Depois, a gente vai fazer seis shows pelo Circuito Sesc. Você topa?”  Sem hesitar, Sthe abriu mão do trabalho na escola e foi tocar porque quando o desejo fala, ele clama.

 

Ouvi hoje de manhã “Moamba”, primeira faixa do projeto da Carolina Maria de Jesus. Como está sendo esse processo de produção musical, você está assinando a produção do disco?

Isso, eu assino a direção artística e a produção musical do disco. Pegar uma obra e fazer uma releitura não é fácil, né? Ainda mais da época que a obra é, de como era o conceito de musicalização, de arranjos, de forma de cantar da época. Ao mesmo tempo, é uma obra histórica, então como a gente vai fazer essa releitura pensando em respeitar também as tradições? Eu sou mais nova e acredito que pessoas mais novas também pensam assim: como a gente reverencia e ao mesmo tempo expressa a forma que a gente enxerga música. Como percussionista, eu fiz uma releitura totalmente voz e percussão — já tinha vontade de ter um grupo, um trabalho de percussão, mas em que os tambores conversassem e fossem protagonistas da própria voz. Criar uma melodia de tambores que não necessariamente estivesse ligada em notas precisas, ou seja, deixar o tambor naturalmente cantar e fazer com que uma orquestra de tambores converse entre si.

Nas produções musicais, em geral, a percussão nunca está como protagonista. A percussão está sempre acompanhando, sempre dando um molho, sempre dando um efeito e não como protagonista. É como também pensar assim tradicionalmente pensando nos cantos de trabalho e como as coisas aconteciam, sabe? Tem trechos em alguns livros da Carolina Maria de Jesus falando sobre o pai de Carolina, que o descreve como uma pessoa preguiçosa porque ele queria ser cantor, ele queria viver cantando. Hoje a gente pensaria que essa pessoa é um músico, mas imagina um músico numa época pós-escravidão muito recente, né? Como é que é isso? Como as pessoas valorizavam isso? Não valorizavam porque o preto não podia cantar, mas, ainda assim, a música estava sempre presente nos trabalhos, estava sempre presente na hora de ir lavar uma roupa, na hora de cozinhar, sempre dando ritmo a alguma ação, então a percussão também está ligada a esse processo histórico. A percussão nunca se sobressai. E, em Bitita, no disco de composições da Carolina, a percussão está como linha de frente, a percussão conduz tudo. Eu acho que pensar em Bitita hoje é pensar em afinar essas percussões de um jeito muito elegante, de um jeito que todo mundo vai escutar esse tambor.

“A percussão nunca se sobressai. E, em ‘Bitita’, no disco de composições da Carolina, a percussão está como linha de frente, a percussão conduz tudo. Eu acho que pensar em ‘Bitita’ é pensar em afinar essas percussões de um jeito muito elegante, de um jeito que todo mundo vai escutar esse tambor”

Como começou esse projeto?

Eu recebi um convite no final de 2021 do Selo Sesc, que faz regravações e tem a missão de manter um acervo vivo. O Instituto Moreira Salles resgatou muito da obra da Carolina e, como o Sesc tem uma proposta ligada à música, eles pensaram em fazer uma regravação do disco. E me chamaram para fazer a produção. De primeira, eu fiquei em choque porque é uma responsa, né? Mas fiquei muito feliz também, porque era um contato que eu tinha próximo da Carolina, ainda mais durante a pandemia, que principalmente eu que toco, viajo muito, tive um momento para parar e ler livros, assistir palestras, enfim, foi muito bom e Carolina esteve muito presente, principalmente pelas questões que durante a pandemia o mundo inteiro passou. Situações de vulnerabilidade social que voltaram dessa maneira tão brusca e também compõem um momento muito importante de retomar a Carolina.

Você tinha mencionado que tem algumas diferenças na no modo de produzir, da sonoridade de cada época, qual que foi seu maior desafio?

Acho que o maior desafio foi escutar a obra e sentir que talvez as intenções dos arranjos musicais não eram as intenções que a Carolina estava falando na letra. Tem momentos em que a gente escuta a música dela e o arranjo que está acontecendo tem uma ligação com o livro Quarto de Despejo e você percebe que não faz muito sentido, sabe? Naquela época, as produções eram de fábrica: entrar no estúdio e gravar. Pegaram as letras dela, mandaram para um produtor, ela simplesmente foi no estúdio e cantou. Não são arranjos que ela pensou, que ela escreveu. Ainda mais uma mulher preta, favelada, entrando dentro dum estúdio. Como é que essa pessoa foi recebida, como esses arranjos foram feitos? Será que tiveram modificações nas letras, sabe? É preciso pensar quando a miséria vira entretenimento. Como que as pessoas, principalmente o jornalista que estava trabalhando com ela, encaravam a obra da Carolina. O encarte do disco é tipo de chorar assim: “Ah, o Quarto de Despejo, do livro que fala sobre a miséria, agora em músicas”. Então, esse foi o maior desafio, sabe? Refletir sobre como essas músicas podem ter sido modificadas. Mas também, na questão dos arranjos, não se tem muitas informações de quem gravou, só tem a informação de que quem gravou foram os Titulares do Ritmo, que é um grupo que eu achei incrível: um grupo de estúdio que gravou com milhares de artistas e projetos, são seis homens cegos que fizeram essa banda e eles cantam, tocam violão, sanfona. Enfim, eu achei muito foda, muito legal mesmo. E os arranjos deles são regionais: choro, samba, marchinha. Eu fico imaginando, o que é desconstruir um choro? O que é fazer essas marchinhas em cima da percussão?

(Foto: Nadja Kouchi)

Você é percussionista, mas quais instrumentos você toca? Só pra eu me localizar porque a percussão é um leque enorme de instrumentos.

Eu considero percussão mais como a minha pesquisa, mas, por exemplo, na música brasileira a gente tem em conga, atabaque, pandeiro, triângulos, zabumba. Eu comecei tocando caixa de maracatu, por exemplo.

Como você começou a tocar?

Eu sou da zona sul de São Paulo, da comunidade da Pedreira e, dentro dessa comunidade, existe um projeto social chamado Afago e foi onde eu tive praticamente toda minha formação, infância, adolescência e juventude. Eu entrei com quatro anos e parei de frequentar com dezessete. Dentro desse lugar era onde a gente tinha contato com arte: dança, música, pintura, grafite, etc.

Com 13 anos, comecei a participar das oficinas de maracatu e foi quando eu mergulhei na percussão. A partir daí, eu comecei a tocar caixa, faia, timbal, xequerê, e comecei a aprender sobre todos esses instrumentos.

Me fala um músico ou uma musicista que te inspirou a tocar?

Olha, Xeina Barros me inspirou bastante, eu a vi fazendo show na noite, tocando uma roda de samba, junto de uma galera, com todo mundo cantando junto. Ela é assim… Me inspirou muito. A primeira vez que eu vi a Xeina eu tinha uns 19 anos e ela estava tocando conga e pandeiro. A gente foi se conhecer mesmo mais recente assim, pouco tempo antes da pandemia, acho que foi em 2019 mesmo.

Quais são os músicos que você acompanha? A galera com quem você toca sempre.

Hoje eu toco com a Charanga e com a Funmilayo, então são duas bandas. Com artistas, tem o Jorge Du Peixe, a Céu e o Edgar.

Me fala uma música especial do repertório desses artistas com quem você toca sempre?

“Rei Bantu” é uma música em que eu toco e canto, no caso do Jorge Du Peixe. Com a Céu eu não gravei nenhuma, mas uma música especial que eu amo é “Lenda” e “Etílica”, que no final tem um vocalize da Céu com a Tulipa Ruiz. Edgar, pô, Edgar é engraçado: quando eu fui fazer o Circuito Sesc com a Charanga foi quando eu conheci o Edgar. Ele estava indo fazer um uma performance de um grupo chamado Versos Móveis. Era um quadriciclo todo iluminado com um mano soltando uns beat e ele rimando em cima, dando a volta nas praças. Só que nos horários comuns a gente estava sempre junto porque o Circuito Sesc é isso: um ônibus onde tem dançarino, poeta, músico e a gente fica viajando juntos durante três semanas.

Foi assim que eu conheci o Edgar. Ele ainda não estava tendo shows, tinha um disco gravado, mas não tinha estourado ainda como cantor. Depois do Circuito Sesc, ele montou um show com duas MPCs e dois beatmakers e me mandou mensagem dizendo que estava planejando um próximo show e que iria me chamar para tocar. Logo depois disso rolou o Ultrassom (2019) e, mais tarde, o Ultraleve (2021), e a gente começou a fazer show juntos, comigo tocando percussão. Não gravei nada nesses discos, mas tem muitas músicas especiais que eu amo, tipo “O amor está Preso?”, em que eu toco bateria, e outra é “A Hierarquia do Pecado”, que pra mim é a maior pedrada que a gente poderia ter de letra principalmente. Ah! E se puder mais uma: “Antes Que As Libélulas Entrem Em Extinção”.

Da Charanga eu amo todas, mas desse novo A Espetacular Charanga do França: Nunca Não É Carnaval (2021), eu adoro “Ladeira Véia” em que eu gravei surdo e foi muito bom gravar surdo porque a minha maior referências de pessoas tocando surdo é o Samba “Sam” Ossalê, ele é um dos maiores mestres tocando surdo, e foi uma responsa tocar surdo com ele na mesma gravação porque ele queria tocar outros instrumentos. Ah, eu gosto muito de “Pedra 90”. E da Funmilayo Afrobeat Orquestra, que eu gravei todas as músicas e tive a maior direção musical das percussões, de conduzir os ritmos e as gravações dos tambores, eu gosto muito de “Wikipreta”.

“Acho que o músico de gig tem que ter uma abertura para entender como colocar o que ele aprendeu em diversos estilos musicais”

Qual foi seu show ou a apresentação underground?

Olha, esses são os artistas com quem eu toco hoje, mas eu já toquei com uma galera. Um dos maiores perrengues foi quando eu tocava com Coco de Oyá que é um trio de coco feminino: era eu, Rafaella Nepomuceno e Kelli Garcia. Eu adoro coco, desde a época do maracatu e a gente fazia uns shows muito malucos. A gente já viajou pra outro canto sem perspectiva nenhuma, já encaramos o pior frio de São Paulo e a gente indo fazer show em São Bernardo do Campo para chegar lá e não ter ninguém, ninguém mesmo pra assistir. Então, acho que os perrengues de vida eu aprendi mais com um Coco de Oyá.

Como foi essa história da viagem?

Teve uma vez que a gente foi convidada a tocar em um evento de carimbó no Rio de Janeiro. Só que não tinha perspectiva nenhuma do evento, nem de como levar a gente. A Rafa adorava essas aventuras, então, ah, vamos de carro, chegando lá vai ser a bilheteria e o dinheiro que rolar a gente divide. Só que, chegando lá, o cara não dividiu dinheiro nenhum, a gente não tinha onde ficar, não tinha um camarim, não tinha nada assim e, quando a gente foi tocar, começou uma puta tempestade. Foi uma loucura.

E qual foi seu maior show? O mais absurdo.

Ah, tocar com o Gil. Eu toquei naquele show de 40 anos do Refavela. Eu fiz o show do Sesc Itaquera e esse dia foi um sonho. Foi meu primeiro dia de inferno astral, dia 10 de setembro de 2017. Foi o ano em que tudo aconteceu para mim: eu saí da escola em que dava aula de musicalização infantil, comecei a tocar em bandas, comecei a tocar na Charanga, formei no teatro e toquei com Gil. Tudo em um ano. E foi um show incrível, eu nunca tinha visto tanta gente, óbvio né? Nunca tinha tocado mesmo para um público assim e com o Gil. Foi naquela área externa do Sesc Itaquera, onde tem um morro e, quando você olhava pra cima, tinha gente assim a subida inteira e, como era fim de tarde, estava aquele pôr do sol com todo mundo laranja. O Thomas tinha me convidado no dia, assim: Sthe, vamos tocar, é um show que está sendo pra família e amigos, eu sei o quanto você é fã. E foi isso. Ai, eu subi no palco antes da hora, não era nem pra entrar, ele veio atrás de mim, risos. Já tinham me avisado que uma das maiores dificuldades é alguém tocar o xequerê da “Patuscada de Gandhi” e aí na hora que ele puxou e eu comecei a tocar ele ficou impressionado: ‘meu deus, quem é que está tocando? É você!’ Ele veio até mim e ficou dançando do meu lado um tempão antes de começar a cantar – e foi um dia que assim, eu senti que já podia morrer de tão feliz. Para mim, o Gil é o maior artista, eu sou a maior fã dele, amo todos os discos e acho que tudo que eu queria na vida foi esse pedido que aconteceu.

“Já tinham me avisado que uma das maiores dificuldades é alguém tocar o xequerê da ‘Patuscada de Gandhi’ e aí na hora que ele puxou e eu comecei a tocar, o Gil ficou impressionado: ‘meu deus, quem é que está tocando? É você!’ Ele veio até mim e ficou dançando do meu lado um tempão antes de começar a cantar a música – e foi um dia que, assim, eu senti que já podia morrer de tão feliz.” (O vídeo acima é um registro desse momento, em 2017).

O que uma pessoa tem que ter para poder ser um músico de um músico de gig?

Eu acho que músico de gig tem que estar aberto, até por conta das necessidades. Muitas vezes eu vejo muitas pessoas tocando em várias gigs porque necessitam de trabalho, então automaticamente essas pessoas acabam tendo contato com diversas linguagens. Ao contrário da percussão que está ligada a maioria das músicas, na maioria dos ritmos, desde a música popular brasileira, a música de matrizes africanas, até a música pop, sabe? Então eu acho que o músico de gig tem que ter uma abertura para entender como colocar o que ele aprendeu em diversos estilos musicais.

Para finalizar: Sthe, qual foi o último artista que te deixou obcecada?

Eu gosto muito de afrobeat. Eu escutei durante muito tempo e sou fascinadíssima por KOKOROKO. Vou em shows, tenho os vinis. Fui no último show deles no Brasil no Sesc Pompeia, fiquei causando na pista, tanto que eles chamaram a gente pra subir no palco e a gente subiu. Eu sou muito fascinada pelo estilo musical e por essa galera que praticamente é da mesma faixa etária que a gente, sabe? E estão fazendo um som que a gente curte, que está aberto à pesquisa até porque é uma pesquisa que dialoga bastante com a gente. Então, KOKOROKO eu coloco o disco para tocar em toda oportunidade, quando eu estou muito cansada e preciso relaxar ou quando eu estou acordando e preciso de energia.

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ARTISTA: Sthe Araújo