Nyege Nyege: de palco em palco, modernidade e tradição

O festival em Kampala, capital de Uganda, mantém a experimentação circulando, enquanto combina as mais diferentes matrizes da música africana contemporânea

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Fotos: Nyege Nyege

Estou andando pelas ruas de uma região comercial de Kampala, a capital de Uganda, quando vejo uma lojinha com algumas camisas de times. Decido entrar e, enquanto olho as camisas, vou trocando ideia com o cara que vende as camisas. Falando sobre música, menciono que eu vinha do Brasil e estava ali para ir ao Nyege Nyege Festival. “Nyege Nyege?! É demais. Eu fui em outras edições, é muito bom”, ele comenta.

O vendedor de camisas de time não foi o único na cidade a mencionar o festival de música com entusiasmo. Nas duas semanas em que estive por lá, pelo menos outros dois comerciantes nas ruas comentaram sobre boas experiências no evento. Em outras palavras, apesar de se destacar na mídia europeia e atrair um bom número de turistas, o festival mostrava uma conexão legítima com a comunidade local que o tornava diferente das recentes iniciativas de grandes festivais em solo africano.

Criado pelo grego-armeno Arlen Dilsizian e o belga Derek Debru, o Nyege Nyege Festival surgiu em 2015 com a proposta de ser um palco para artistas do underground africano e das transformações contínuas da música contemporânea do continente. De lá para cá, o festival cresceu. E muito. Em 2022, o evento teve uma superlotação que gerou problemas de roubos e de acomodação. Nesta edição, no entanto, os problemas de estrutura foram solucionados e o Nyege recebeu um público de dezenas de milhares de pessoas, com quatro palcos, em shows que foram da quinta à noite até as primeiras horas da segunda-feira. Esse não é o único grande festival do continente africano. O mercado, na verdade, está bem aquecido e vem atraindo mais e mais turistas a cada ano. Sintoma disso é a Live Nation, gigante multinacional do entretenimento, estar produzindo festivais e eventos no continente.  Mas há algo especial no Nyege Nyege que o destaca neste meio e pode servir de inspiração para o mercado brasileiro: um senso rigoroso e afiado de curadoria que está intimamente linkado à criação de uma verdadeira comunidade artística.

O Nyege Nyege Festival se conecta diretamente ao Nyege Nyege Tapes, selo que desde 2017 vem lançando álbuns e coletâneas de alguns dos artistas mais inovadores e radicais do mundo — foram eles os divulgadores internacionais do Singeli da Tanzânia, do Balani Show do Mali e do Cruise Beat da Nigéria, por exemplo. Em paralelo ao Nyege Nyege Tapes, há ainda o Hakuna Kulala, selo irmão do Nyege que também tem a curadoria do produtor e multiartista congolês Rey Sapienz. Além disso, há ainda a Nyege Nyege Villa, uma casa equipada com três estúdios em Kampala que hospeda músicos de todos os cantos do mundo (incluindo refugiados de conflitos em países vizinhos) para residências artísticas e intercâmbios culturais. Um espaço que respira música.

Todo esse panorama fortalece uma curadoria com voz firme e identidade própria, que parece guiar cada passo do festival e que está sempre à frente de tudo ligado ao festival. O Nyege Nyege Festival faz parte de um ecossistema criativo e não funciona sem ele, contrariando a tendência dos festivais que surgem apenas associados a marcas, sem propostas artísticas definidas, interessados apenas em lotar palcos gigantescos. Esse é um ponto que ainda não encontramos no Brasil, ainda muito precarizado quando o assunto é incentivo e financiamento da cultura.

Talvez o mais próximo que tivemos disso tenha sido o Festival Antimatéria, um desdobramento das atividades do selo carioca QTV e que apresentou lineups que misturavam a putaria acelerada de Iasmin Turbininha, a eletrônica apocalíptica de Tantão e os Fita e o footwork do norte-americano DJ Earl. Mas após duas edições o festival foi descontinuado por falta de patrocinadores. O mercado tem pressa: prefere fazer uma edição sold out agora e ser esquecido do que levar alguns anos construindo um nome e reputação com mais longevidade e conexão com público.

Um acerto do Nyege Nyege é a capacidade de combinar as mais diferentes matrizes da música africana contemporânea. No palco principal, a estrela local Eddy Kenzo e seus afrobeats eram uma das atrações mais esperadas pelo público. A sul-africana Sho Madjozi, a “black cinderella”, foi outro nome de peso e fez um show de uma verdadeira popstar. Coreografias afiadas e presença de palco contagiante embalando hits à base de afropop, gqom e amapiano, como “Wakanda Forever”, “John Cena”.

Ao mesmo tempo, em um palco a alguns metros dali, Sam Karugu, membro da dupla queniana de black metal Duma, fazia uma performance de drone e noise que explorava com precisão a força visceral dos graves saturados. Ainda no mesmo palco, a dupla alemã Operant apresentou uma performance de power electronics entre o hardcore industrial e o noisecore, dando vida a um caos meticulosamente orquestrado. E por lá ainda havia espaço para DJs e produtoras emergentes de todo o mundo, como a colombiana Rosa Pistola, a DJ e performer franco-ganense Pö, e a afro-britânica Tash LC e a ugandense Kampire, além da rapper nigeriana Aunty Rayzor, que fez um dos shows mais incendiários do festival.

Combine tudo isso aos sets de 300 BPM e ritmos sincopados de singeli feitos por Maiko e Sisso, DJ Travella e Jay Mitta mais o balani do DJ Diaki e você tem uma reviravolta da ideia eurocêntrica de música eletrônica como ritmos quadrados. No Nyege Nyege (e, pelo que pude perceber, em muitos outros contextos de música e festa no continente africano), a dança não é necessariamente um flerte, mas sim uma abertura para a sintonia coletiva com a música. Em vez de um suposto transe solipsista, uma celebração ao redor do som que desmonta muitos pilares da cultura clubber de origem euro-americana.

Mas nem só de música eletrônica vive o Nyege Nyege. Em outro palco, às margens do Rio Nilo, apresentavam-se grupos ligados à música tradicional, como é o caso do Nakibembe Embaire Group, por exemplo. O embaire é um enorme xilofone tradicional dos Basoga, um povo Bantu de Uganda, tocado por oito percussionistas ao mesmo tempo. O grupo constrói um fractal polirrítmico hipnotizante, costurando diferentes camadas de som. Seu trabalho chamou atenção da música eletrônica contemporânea. Em 2020, o Nakimbembe Embaire Group tocou na Berghain, o icônico club techno de Berlim. Em seu recém-lançado álbum de estreia, o grupo ainda conta com músicas em parceria com o duo Gabber Modus Operandi e o produtor Wahono, dois nomes importantes da nova vanguarda eletrônica.

Refletindo os impulsos artísticos da música do Nakibembe, o Nyege Nyege ressalta os trânsitos entre modernidade e tradição, em vez de reforçar uma suposta dicotomia. Mesmo que em palcos separados, os tambores do Domadana Kadodi e do Burundi Drum Ensemble estavam a poucos metros dos beats eletrônicos e ressoavam um ao outro. Poucas horas depois de seu show, Nassr, o líder do Nakibembe, por exemplo, estava curtindo o show do DJ Travella e o set de funk do DJ brasiliense Vinnau. Mais uma vez: uma curadoria que está alinhada aos princípios criativos de sua música.

Outro acerto ímpar do Nyege Nyege é um entendimento de que em muitas ocasiões a música está além do palco e que é preciso abraçar um senso de improviso. Os shows não são espetáculos fechados, mas pontos de encontro — e, por isso, há muitos B2Bs e feats que acontecem especialmente no festival, como o encontro avassalador entre o francês Judgitzu e o malinense DJ Diaki. Nesse sentido, não é por acaso que o festival conte também com nomes como o DJ Decimal Points (famoso no TikTok pelas performances nas ruas de Kampala) tocando pela área do evento  e também artistas de rua, como os performers do Kampact e Eddy Ekete. E é precisamente nos encontros e que acontecem os momentos mais mágicos do festival — e posso dizer alguns dos momentos musicais mais incríveis que pude experienciar.

O grande show do festival vem disso: DJ Diaki e Sisso, Mali e Tanzânia, África Ocidental e Oriental. Duas culturas diferentes, mas que nos BPMs acelerados encontravam uma sinergia catártica de outra dimensão. Em algum momento, sobem ao palco os congoleses Papalas e Bebson de La Rue e o tanzaniano Hemedi-Kiduku, além do palco tomado por pessoas do público dançando, enquanto outros à frente do palco soavam apitos nos tempo (e no contratempo!) da música. Ali era o afropolitismo ao vivo: o surgimento de outras possibilidades para as conexões culturais globais que não passam pelas imposições da Europa. A música cria os laços. Aos festivais, cabe a sensibilidade de fazer aflorar encontros que mantenham a experimentação e a inovação circulando, para além de um mega evento que busca só acumular público.

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