Revisitando Meus Clássicos: Cátia de França – 20 Palavras ao Redor do Sol (1979)

A artista paraibana relembra os dias de gravação de seu clássico, com participações ilustríssimas, e fala da alegria de “renascer” para novas gerações; “Minha timidez tinha mordaça, mas quando estou no palco, subo com dois metros de altura, porque estou defendendo o meu feijão com arroz”

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Fotos: Murilo Alvesso

Revisitando Meus Clássicos é um quadro no qual os próprios músicos destrincham grandes álbuns e pérolas escondidas de sua discografia.

 

Aos 77 anos, Cátia de França diz viver uma ressurreição na carreira, momento impulsionado pela nova geração que vem descobrindo o clássico 20 Palavras Ao Redor do Sol (1979). Recentemente, também foi convidada para dividir palco

com expoentes da nova safra nacional, Chico Chico e Juliana Linhares, e em dezembro do ano passado, divulgou a parceria com Luana Flores em “Encantarya”. “Esse reconhecimento é para chorar de emoção. As pessoas pediram e fiz uma apresentação em Maringá, no interior do Paraná, eu nunca tinha ido para lá. Fui para Curitiba em 1984, com Jackson do Pandeiro, no Projeto Pixinguinha”.

Com quatro discos na bagagem, sendo o último Hóspede da Natureza (2016), a cantora nascida em João Pessoa se prepara para lançar um novo trabalho com 12 músicas. “Tem coisas do mesmo teor do 20 Palavras. Se chama no Rastro da Catarina, porque tem a história do raso da Catarina – no sertão baiano, local onde o avião se escondeu, e eu gostei muito desse trocadilho.”

As músicas foram ensaiadas na garagem de uma casa em frente à praia, em João Pessoa, e gravadas em um estúdio paulistano, em agosto do ano passado. O álbum apresenta um leque de estilos musicais, com faixas que misturam rock e tango a ritmos tradicionais. Na tracklist há uma homenagem aos povos originários, além de um tema no piano com a letra da primeira música que Cátia escreveu na vida, aos 15 anos. O tango foi dedicado ao pai, entusiasta da boemia.

Já as referências literárias presentes na obra de Cátia, estilo inaugurado há 45 anos, permanecem como um dos alicerces de suas composições: “O meu trabalho todinho é em cima da literatura, devido à minha mãe, professora, a primeira negra educadora do estado. Na nossa casa faltava manteiga, mas não faltava livro”. A professora Adélia Maria de França alfabetizou a filha cantando e sonhava que ela se tornasse professora. A mãe foi a principal incentivadora para que Cátia se mudasse para o Rio de Janeiro, sem se importar com as convenções sociais da época.

“Os familiares ficaram chocados com uma moça se metendo em lugar de perdição. O sudeste era como Sodoma e Gomorra para eles”, conta a cantora. No final da adolescência, ela já se apresentava na noite munida de um violão e canções de Milton Nascimento, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil e Jovem Guarda. Foi esse repertório que a levou a tentar a sorte na capital carioca.

Durante a semana, no horário comercial, trabalhava como datilógrafa em uma empresa americana, já de sexta-feira a domingo, fazia shows. “Eu cantava com uma roupa africana e uma peruca black. O povo gostava da coisa suingada, do violão redondo sem acompanhamento, acabou dando certo tocar sozinha”.

Depois de entrar na banda de Zé Ramalho, foi convidada para gravar o primeiro disco, que conta com participações da nata da época – Elba Ramalho, Amelinha, Lulu Santos, Dominguinhos, Sivuca e Bezerra da Silva. O resto é história. Aqui, Cátia de França revisita a criação das músicas de 20 Palavras Ao Redor do Sol (1979) e reflete sobre o impacto do disco.

(Divulgação/José de Holanda)

Quando aconteceu o primeiro encontro com Luana Flores?

Luana é uma pessoa contagiante, que provoca terremotos musicais na Paraíba. Ela participou de uma apresentação minha no Itaú Cultural, em São Paulo, então procurei saber mais sobre o mundo dela, o “nordeste futurista”. Ela pega os ritmos que são o alicerce da música nordestina, de raiz, e coloca pitadas de eletrônico. Luana canta e compõe, além de ser irreverente. Como sou aquariana, logo viajei na coisa. Na gravação do clipe, esqueci que tinha 77 anos e fiquei com quatro. Brincamos muito, sabe?

“Encantarya” fala da crença no mundo mágico. Como o esoterismo faz parte da sua vida?

A magia é tudo que a gente tem. Fala dos mistérios, das invocações sobrenaturais. A gente tem um pé no mundo paralelo e um pé no mundo atual. Precisamos fazer um negócio tipo Alice no País das Maravilhas, mas sem o coelho maluco na história, então principalmente agora, que as pessoas ficaram com sequelas da epidemia, chega o momento de consertar isso ao salvar a criança de cada um. O pior de ser adulto é ter que ficar sério. A responsabilidade é uma coisa, já a seriedade em demasia é outra. Sou aquariana de 13 de fevereiro de 1947, tenho ascendente em virgem para me dar coerência. Imagina se eu tivesse outro signo? O que me segura é o virgem no mapa. Eu acredito nisso tudo, esse é o meu rumo.

Como foi o período de pandemia?

Acredito que os meus guias me aceitam e perdoam rapidamente as coisas que eu cometo. Eu queria tanto que o disco 20 Palavras ao Redor do Sol fosse relançado, e ele nasceu justamente em 2020. Pensei também que se eu fosse para dentro do mato, nada chegaria lá, então me mudei para Macaé de Cima, na serra do Rio de Janeiro. Mal tinha sinal de celular, mas de repente, bateu. Foi uma coisa tão surreal que achei que fosse trote. O brasileiro é muito gaiato, não importa o momento. Eu não estava levando a sério o rapaz, o Rafael Cortes, da Três Selos. Num momento como aquele, com o globo terrestre desarrumado, é bom que a pessoa se ocupe, então falamos de uma coisa séria, o relançamento de um disco icônico, que está atual. A geração que não existia em 1979 o descobriu, então no meu show, agora é só crianças – meninos e meninos com jeito de bisnetos cantando as minhas músicas. Isso é muito gratificante e me emociona. É uma ressurreição.

“Era aquela festa, uma embaixada musical. Não tinha ninguém cheio de ego, todo mundo foi muito honesto e transparente, e aos poucos, o disco ganhou corpo até ser o que é hoje – eterno”

O que você se lembra da época da pré-gravação?

Foi como uma maré, uma lua crescente e minguante. “Kukukaya (Jogo da Asa da Bruxa)” é de muito tempo atrás, ela tem um clima sobrenatural, dos ciganos da Bulgária. Eu musiquei e a Elba (Ramalho) gravou no primeiro disco dela, o Ave de Prata (1979). “O Bonde”, uma música que as pessoas me pedem muito para tocar, é do universo do escritor paraibano José Lins do Rego, então já estava feita. “Itabaiana” e “Porto de Cabedelo” também são inspiradas no escritor porque o meu trabalho todinho é em cima de literatura, devido à minha mãe, estou sempre amparada por algum escritor. O nome do disco saiu do poema “Graciliano” – [publicado no livro Terceira Feira (1961)] – do pernambucano João Cabral de Melo Neto. Tem várias coisas dentro do disco que falam de livros, autores, como Guimarães Rosa, entre outros assuntos. “Sustenta a Pisada” retrata o momento da época, os Anos de Chumbo, como estava o liquidificador político da época. O inusitado dessa faixa é que o Bezerra da Silva toca berimbau. O Zé Ramalho o convidou para tocar no Avôhai (1978), mas de repente botou o Bezerra na gravação. Quer dizer, teve coisas insólitas dentro do disco.

Como foi reunir esse elenco estrelado para colaborar no disco?

O disco é uma caixinha de surpresas, a caixa de Pandora, da Emília, do Sítio do Picapau Amarelo. Várias coisas saem de dentro dessa cartola mágica. Zé Ramalho toca baixo em “Sustenta a Pisada”, eu estou no piano de “Kukuya”, e Lulu Santos, o roqueiro, na guitarra de “20 Palavras”. Amelinha, Elba Ramalho, Lucinha Turnbull e Lizzie Bravo fazem vocais. E por aí vai.

Como era o clima no estúdio?

Gravamos nos estúdios da CBS em 1979, localizado na Rua Gomes Freire, na Lapa, no Rio de Janeiro. O início das gravações era às nove da manhã e não tinha hora para acabar. Eu nunca vi isso, porque já fiz outros discos, e hora dentro do estúdio é ouro. Você precisa sempre ganhar tempo. Mas, no disco, ninguém falava em acabar, era aquela festa, uma embaixada musical, uma alegria imensa. Não tinha ninguém cheio de ego, todo mundo foi muito honesto e transparente, e aos poucos, o disco foi ganhando corpo até ser o que é hoje – eterno.

“A minha timidez tinha mordaça, mas quando estou no palco, subo com dois metros de altura, porque estou defendendo o meu feijão com arroz”

Em que momento a gravadora decidiu abraçar o projeto?

Por que esse alargamento de horas? Zé Ramalho estava na crista da onda como um grande vendedor de discos com o Avôhai. Dentro da estrutura do estúdio, tinha a figura do padrinho, como o padrinho lá da Itália, na Sicília. Então, Zé Ramalho era um deles e tinha seus afilhados. Eu era uma das afilhadas debaixo das asas dele. Elba também. E tinha o Fagner, que estava vendendo adoidado, também com seus afilhados: Amelinha, Ednardo e Clodo, Climério & Clésio. Tinha o Geraldinho Azevedo que transitava, como até hoje. Ele é uma pessoa tão do bem que não cria arestas, ele trafega e dá tudo certo.

Quanto tempo levou o processo de gravação?

As bases do disco foram feitas em sete dias, uma aberração. Hoje em dia, é feita em uma madrugada. A produção foi de Zé Ramalho junto de Carlos Alberto Sion. Os arranjos são meus: as músicas já nascem prontas, com introdução que vem de forma mediúnica. Zé Ramalho nas violas e cordas, Lulu Santos na guitarra, Chico Batera e Sérgio Boré na percussão. Foi um disco sem precedentes. Teve Dominguinhos. Sivuca e Severo nas sanfonas. Sivuca tocou piano porque “Djaniras”, música minha com Xangai, Israel Semente e Sérgio Natureza, é uma salsa. Tem um detalhe curioso: ficava rouca na hora de botar a voz definitiva. Como estava nervosa, era algo emocional, então ficava afônica e desafinava. O Zé falou para gravar primeiro “Djaniras” por ser uma salsa, uma música buliçosa, alegre e pra cima. Eu fiz e ele disse: “tá valendo”. Não tive nem tempo de ter medo ou insegurança, quando vi que eu podia, tudo fluiu.

“O meu trabalho todinho é em cima da literatura, devido à minha mãe, professora, a primeira negra educadora do estado. Na nossa casa faltava manteiga, mas não faltava livro”

Na estrada com o disco, você cantava, tocava violão e sanfona. Quais são as suas recordações deste período?

O Zé tratou logo de criar independência. Ele disse: “Forme logo sua banda porque você está tocando com a minha”. Ele escolheu as pessoas, em sua maioria músicos da Paraíba, e fui viajar com o disco. O lance da sanfona surge porque meu pai era boêmio, adorava tangos de Carlos Gardel, coisa de quem gosta de vida noturna. Eu tive implicância com o instrumento porque o meu pai me obrigava a aprender a tocar. Já o piano, a minha mãe me deu um de brinquedo quando era criança e o definitivo com 12 anos. O meu pai era truculento, tinha 1,90m, um crioulo bonitão. A minha mãe era pequena e no documento dela rezava ser parda, ficava com a maior raiva do mundo, ela dizia “ou é negra ou é branca, então eu sou negra”.

Quando você percebe que poderia viver como instrumentista?

Toco cordas, só não faço sopro, mas é piano, sanfona e percussão. Quando eu vestia a sanfona, ficava sandália de rabicho, bem nordestina. Já no piano, ficava mais jazzística, mais americanizada. Foi o que me fez sobreviver tocando na banda do Zé. O dinheiro entrou mais fortemente quando comecei a tocar percussão, triângulo e reco-reco na banda dele. Depois disso, fui participar do teatro político de Luiz Mendonça no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nessa época, tinha Elba, Tânia Alves e Tonico Pereira. Todos esses atores de novela trabalharam no teatro de cordel.

Você continuou no teatro após o lançamento do disco?

Fiz até quando deu, parei quando gravei o disco. No teatro que a gente fazia tinha Alceu Valença, Geraldinho Azevedo e Vital Farias, então como eu tocava muitos instrumentos, acabava dando um toque a mais. Em vez de ter uma banda com quatro ou cinco, pegava três que fazia às vezes de doze. Era uma boa orquestra. O Vital fazia as cordas, eu segurava a sanfona e percussão, e o Pedro Osmar na viola. Deu certo no Rio de Janeiro, que é cheio de modismo, onde se prefere as loiras, pessoas bem nutridas e alimentadas. O nordestino é meio espantado, aquela coisa da seca, mal vestido e mal embrulhado. Quando viemos para São Paulo, apresentamos o espetáculo para crianças em escolas e de noite para adultos com um texto mais apimentado. A gente fez sucesso, porque eu planejava ficar um mês e acabei ficando um ano. O último que fizemos foi A Chegada de Lampião no Inferno, de José Pacheco, com Madame Satã como um xamã do público, ele interpretava o dono do inferno lutando contra Lampião. Estava na época das pessoas voltarem a rir depois dos anos de chumbo, era uma coisa meio escondida porque a gente passava por um regime político vingativo.

Como era transitar nesses ambientes sendo uma mulher nordestina?

No universo do samba é bem sólido, demorou para Dona Ivone Lara e Leci Brandão fazerem um samba inteiro. O teatro era um universo que não me lembro de tantas mulheres. Elba, que foi uma tônica, veio ao Rio com o Quinteto Violado, um grupo com músicas fantásticas. Ela é atriz. Eu fui a primeira mulher a tocar guitarra em um festival de música na Paraíba, em 1970. Eu fui para Pernambuco em 1966, com 19 anos. Minha mãe disse que eu precisava voltar para a música, porque voltei com medo de tudo depois do colégio interno, com uma timidez exacerbada. Eu tocava e sentia que as pessoas pensavam que eu não ia dar conta. Ou se eu tocava um violão tão perfeito, era porque tocava como um homem. Existem esses apêndices que as pessoas botam na gente.

Você acredita que essas discussões avançaram?

Pô, superou. Luana Flores chegou dando as cartas com linguagem, ela poderia ficar numa zona de conforto e falar do nordeste que a gente conhece, mas ela colocou a pitada futurista. Ela diz que canta, toca instrumento e faz discotecagem, atua e produz. A minha timidez tinha mordaça, mas quando estou no palco, subo com dois metros de altura porque estou defendendo o meu feijão com arroz. Já a Luana, não. Essa geração chegou para dizer a que veio. Existem mulheres provocando um terremoto musical.

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