Revisitando Meus Clássicos: DJ Marky & XRS – In Rotation (2004)

Lenda da música eletrônica, Marky conta as histórias por trás de seu primeiro disco autoral, relembra a parceria especial com XRS e fala de grooves, samples e dos prazeres e desafios de remar contra a maré

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Fotos: Marcelo Naddeo

Revisitando Meus Clássicos é um quadro no qual os próprios músicos destrincham grandes álbuns e pérolas escondidas de sua discografia.

 

Diretamente de Cangaíba, Zona Leste de São Paulo, para o mundo – Marco Antonio da Silva aka DJ Marky Mark aka DJ Marky. Filho de mãe mineira que migrou para a capital paulistana e pai paulista, ele, durante os anos 1990, se tornou bastião fundamental do drum ‘n’ bass ao lado de figuras como DJ Julião, DJ Andy e XRS – o último, com quem divide a produção do clássico In Rotation. Outros nomes surgiram posteriormente nessa fervilhante cena, como DJ Patife, Marcelinho da Lua e o Bossacucanova, Drumagick, além de artistas mais pops nos anos 2000, produzidos por Fernanda Porto, como Karla Sabah, Kaleidoscopio, entre outros.

Se você já viu Marky tocando, sabe que poucas pessoas fazem o que ele faz na frente de um par de toca-discos Technics e um mixer. Sua técnica afiada e feeling poderoso contribuíram para que sua relevância e seu reconhecimento ultrapassassem as terras brasileiras e chegassem ao Reino Unido, ao Leste Europeu e à Ásia. Atualmente, o jornalista Chico Cornejo está escrevendo uma biografia de DJ Marky, detalhando sua história que percorre mais de 20 anos de muito som e pistas, sempre impulsionados por paixão, carisma e técnica.

Fugindo da brasilidade mais óbvia das produções de música eletrônica da época, Marky e XRS, em In Rotation, desenvolveram um repertório autêntico, contagiante e atemporal. O fato do disco ter sido lançado primeiro na Inglaterra e depois no Brasil ilustra bem sua força, seu diálogo marcante com a cena britânica, além de sintomatizar uma valorização tardia de tantos gênios da produção eletrônica nacional. Aqui, celebramos esse álbum histórico em uma longa conversa com Marky, que conta as histórias por trás de In Rotation, relembra sua parceria com XRS e fala de grooves, samples, de sua devoção inesgotável por música e dos prazeres e desafios de remar contra a maré.

 

Fala, Marky! Qual é o projeto mais recente em que você está trabalhando?

Tenho feito muitas músicas. Além de lançar na minha gravadora, na Innerground, tenho um deal com a Shogun Audio, Então, tô fazendo single pra Shogun Audio e também trabalhando com alguns artistas da Shogun: Pola & Bryson, GEST, Javeon. Fiz diversas músicas com o Makoto, a gente trabalha junto direto, então eu já lancei uma música esse ano, que é a “Tell Me”, com o Makoto e o BCee, com os vocais da SOLAH. Agora tá pra sair o Kochi EP, pela Innerground. Kochi é uma cidade do Japão, e eu tô lançando esse EP que contém a faixa “Soul Samba”, que eu e o Xerxes (XRS) fizemos 20 anos atrás. O Makoto e eu fizemos um remix dessa música e vai sair junto com mais três faixas inéditas – “Star Tripping”, “Just A Simple Song” e “Kochi”, um EP de quatro faixas. Ainda pro meio do ano tem uma faixa inédita no disco de 25 anos da Shogun Audio. Tem bastante coisa, tô trabalhando bastante. Tenho bastante releases, não só nesse ano como no ano que vem também.

“Tenho muito orgulho do ‘In Rotation’, apesar de não ouvir o disco. Não escutei mais o álbum. Na verdade, não escuto muito meus discos, acho que o único disco que escuto mesmo é o meu recente, o ‘The Time is Right’

Você se lembra do momento em que foi apresentado à música eletrônica?

Não sei, cara, acho que depende. Talvez em 1982, “Planet Rock”, do Afrika Bambaataa & Soulsonic Force, quando escutei a primeira vez, e, ao mesmo tempo, já tinha escutado outras coisas do Kraftwerk. Mas do Kraftwerk o que me fascinou mesmo logo de cara foi “Musique Nonstop”, do álbum Electric Café. Essa música foi fundamental. Nunca vi como “música eletrônica” ou música tocada com bateria orgânica. Para mim, o que mais importa é o groove da música, o groove e a alma, né? O groove, para mim, é o mais importante.

A primeira vez que você foi pra Londres foi com o DJ Patife em 1997. Como foi?

Na verdade, tudo começou com o Adrian Harley. Ele apareceu na loja de discos onde eu trabalhava, na Updance Music. Perguntei de onde ele era, ele falou que era de Londres e tava procurando discos de jungle na época. Aí eu falei que tinha uma festa que eu fazia, que era na Toco, que eu tocava jungle e tinha mais uns amigos. Era uma terça ou quarta-feira, se não me engano. Aí tinha uma noite no Arena, levei ele lá. O Patife era residente, junto com o Tibor, e eu levei o Adrian, que me viu tocando e falou: “Cara, vocês têm que tocar na Inglaterra!” E aí a gente foi pra Inglaterra. Foi muito legal, foi bacana. No primeiro dia eu gastei todo o meu dinheiro em discos [risos] e o resto que tinha era pra comer. Ficamos comendo Chicken Royal Meal do Burger King, ninguém tinha dinheiro, a gente tava fudido. Mas a gente tava muito feliz e, logo de cara, a gente encontrou o Goldie, na Black Market Records, junto com o Ray Keith, que tava trabalhando lá. A gente encontrou o Tayla, da Good Looking Records. Foi um momento muito mágico, muito especial.

E depois com o Bryan Gee no ano seguinte? O que mudou?

A diferença foi que na primeira vez a gente queria conhecer Londres e tínhamos o contato do Adrian. Fizemos contatos, compramos vários discos e eu trouxe o Bryan Gee para tocar no Love. Quando ele me viu tocar, falou: “Como o cara toca desse jeito e não tem uma música exclusiva?”. Naquela época eu só tinha disco normal, que você compra em loja de disco. Aí ele me chamou para ir tocar na Inglaterra e eu falei que não queria, porque aqui eu era meio que super star no Brasil, não podia andar de metrô na rua. Apareceu um monte de primo que eu nunca tinha ouvido falar, gente que fingia que tinha estudado comigo. Mas a galera insistiu tanto que eu acabei indo e foi incrível.

O In Rotation não foi seu primeiro disco, mas acho que foi sua coroação como artista. Como era o Marky nos seus 30 anos?

Na verdade, o In Rotation é o meu primeiro disco meio que autoral, né? Mesmo usando samples, é um disco autoral, porque os outros discos que eu lancei eram compilações. Então, eram faixas que não eram minhas e eu saía mixando. Agora, o In Rotation, não. A gente decidiu fazer um álbum mesmo, sampleando daqui, sampleando de lá, e a gente chamou uma galera pra fazer música também. O Calibre fez uma música com a gente, e o Gilberto Gil. Cara, foi muito legal ter feito o disco. O disco foi bacana, a gente teve influências de vários estilos musicais, de várias pessoas, de vários momentos. Momentos bons, momentos ruins. A gente colocou no disco. A própria faixa “Terapia” era uma fase muito ruim da minha vida. Eu não tava vivendo uma fase muito boa e eu tava indo pra terapia e melhorei e a gente fez essa música. Foi um lance muito legal, muito especial. Eu tenho muito orgulho do disco, apesar de não ouvir o disco. Eu não escutei mais o álbum. Na verdade, não escuto muito meus discos, acho que o único disco que escuto mesmo é o meu recente, o The Time is Right, que é o que eu mais escuto.

Essa foi sua primeira colaboração com o XRS? Me fala sobre a dinâmica de vocês na produção do disco.

Cara, trabalhar com o Michel, que é o nome do XRS, era fantástico. A gente tinha muita coisa em comum: é do mesmo signo, gostava dos mesmos desenhos, gostava de quase as mesmas músicas. Muita coisa eu apresentei a ele, mas ele também gostava de coisas bem diferentes que eram fodas, que ele me apresentou. Lembro dele tocar para mim “Samba Pa Ti”, do Santana, e a gente às vezes fazia música e parava e escutava outras músicas ou ia no Fran’s Café, na Vila Alpina, e ficava falando sobre desenho animado. Escutava funk, soul, disco, jazz, rock. Qualquer coisa a gente escutava, ficava analisando as músicas, era muito legal. Na época, ele já era casado com a Paula, tinha a Julinha – que agora já está quase casada, se eu não me engano. Era mágico, mas a gente não tinha nenhuma pretensão de fazer sucesso, a gente queria fazer música, sabe? Na verdade, ele foi o cara que mais me incentivou a fazer música. Porque eu queria só tocar e aí, depois, comecei a incentivar ele a tocar também. Ele acabou pegando gosto por tocar, foi uma troca mútua e é um período da minha vida que eu tenho bastante saudade.

“Era mágico, mas a gente não tinha nenhuma pretensão de fazer sucesso. A gente queria fazer música”

Eu notei algo enquanto ouvia o disco: você abre os caminhos com o Gil em “Highlights” e fecha com ele em “Dia de Sol”. Por quê?

É um fato muito engraçado. A gente nunca percebeu isso [risos]. Quer dizer, eu nunca percebi isso, quando a gente fez o tracklist a gente não percebeu também. “Highlights” a gente colocou em primeira porque a gente gostava muito dela. Lembro que levei lá o Realce, disco de 1979 do Gilberto Gil – que era dos meus pais e eu pilhava –, e a gente botava na agulha o disco, escutava a intro [começa a imitar a entrada de “Realce”]. E aí nós dois tivemos um estalo: “Vamos tentar fazer uma versão drum ‘n’ bass dessa música!” E aí saiu “Highlights”, entendeu?

Na época era uma das nossas músicas prediletas e ainda é uma das minhas músicas prediletas que a gente fez. E “Highlights” que significa nada mais significa do que “realce”, né? E “Misto Quente” também é outra música que tenho um super carinho. Na verdade, era uma ideia de um remix que eu queria fazer para uma música de uma artista da gravadora Trama, mas ela era, sei lá, meio esquisita. Aí eu falei: “Não, vou guardar essa ideia pra fazer uma música nossa mesmo”. Então, lembro que eu tinha a ideia já de samplear a Rita Lee em “Caso Sério”, e eu já tinha a linha de piano na minha cabeça [imita a melodia da música com a voz]. É, eu já tinha essa linha, e essa música também gosto muito. Mas só lembrando, cara, eu juro para você, nunca percebi que a primeira faixa é “Highlights”, a última é “Dia de Sol”, e as duas têm Gilberto Gil no meio. Juro que eu nunca percebi isso.

Aproveitando esse gancho, fala do trio elétrico da Daniela Mercury no Carnaval na Bahia em 2002? 

Cara, essa história do trio da Daniela Mercury, eu nem lembro. Eu não lembro. Não sei se a gente tocou no trio da Daniela Mercury, acho que a gente não tocou. Ah, eu acho que o trio da Daniela Mercury foi com o Fatboy Slim, né? Essa foi com o Fatboy Slim, mas antes a gente tocou no camarote do Expresso 2222, do Gil. Inclusive, ele deu uma canja com a gente em “Dia de Sol” e foi bem foda. Quem arrumou esse gig pra gente foi o Toni Vanzolini e o Andrucha Waddington. Eles que arrumaram esse gig pra gente. Na época, a gente levou o Marcus Intalex também. O Marcus tocou na Bahia também, e a gente tocou no camarote do Expresso 2222, foi bem legal. Agora a festa com o Fatboy Slim foi divertida, tensa também pra tocar, porque a gente toca drum ‘n’ bass, a maioria dos DJs tocou house, mas a gente se deu bem, a gente tocou bem, foi legal pra caramba. Acho que é isso. Não lembro, juro que eu não lembro se foi com o Fatboy Slim. Com o Xerxes foi no camarote do Expresso 2222, do Gil.

“Sempre corri atrás do diferente. Digo que sempre remei contra a maré. Às vezes dá certo, às vezes não dá certo, às vezes a gente paga um preço alto”

“LK (Carol Carolina Bela)” me parece que foi uma daquelas faixas feitas para estourar. Me fala mais dela?

Não, totalmente o contrário, cara. Totalmente o contrário porque, na verdade, a gente tava querendo fazer uma música diferente, uma música tipo o álbum do Ed Rush & Optical, Wormhole, que tinha acabado de sair. A gente queria fazer uma música mais usando elementos de jazz abstrato, mais pesado, um som mais pesado e denso. E a gente não conseguia tirar aquele som, não conseguia chegar naquela sonoridade, conseguir samples, etc. A gente não tinha a manha, o Xerxes tinha muita manha no estúdio, mas a gente não tinha a manha de tirar aquele som, né? O Xerxes sempre operou as máquinas, mas eu tinha as ideias e fazia o arranjo. Sempre fiz os arranjos das músicas. A gente tava fazendo a música de manhã, aí deu umas duas, três da tarde, eu falei para ele assim: “Ó, vou fazer o seguinte, vou pra casa buscar um sample, vou ver se tem algum sample lá, vou ver algum disco e a gente dá um jeito”. Aí voltei pra casa, minha mãe esquentou o almoço, aí ela tava lavando a cozinha. Nisso, eu tava procurando os discos e achei o compacto do Jorge Ben e do Toquinho, que era um disco dos meus pais, e eu falei: “Pô, isso aqui acho que dá um caldo”. E aí eu editei a música no MiniDisc e levei tudo pro Xerxes, aí ele pirou. Botamos todos os áudios no computador e fomos acrescentando as músicas. A gente começou a música do meio para frente, a gente não sabia o que fazer no começo. O começo demorou muito pra gente fazer, mas a música saiu. Mas eu queria que saísse pela Soul:R, e o Marcus não gostou da música. O ST Files (Lee Davenport) gostou, mas o Marcus não gostou.

Aí passou um mês e meio, voltei pro Brasil, depois eu fui para Miami de novo. Eu e o Xerxes – a gente tinha feito umas 10 músicas. Nesse CD, ainda tinha uma música que a gente sampleou Barry White, que saiu no The Flava EP, chama “Unlimited Gold”, até saiu com o nome de SP Collective. A gente tinha vários codinomes. Aí o Brian me pediu esse CD, eu não queria dar, mas ele ficou me enchendo o saco e eu dei o CD praa ele, e depois de uma semana tava todo mundo me ligando querendo a música, incluindo o Goldie e outros DJs. A música estourou, mas estourou o instrumental. Depois o lance do vocal já é outra história. Eu fui fazer um show em Newcastle, e o Stamina tava comigo. A gente tava tocando, e a penúltima música que eu toquei foi “LK”, e aí ele fez o freestyle. E aí o que aconteceu: depois de uns três, quatro meses, eu voltei no mesmo clube pra tocar, porque essa festa foi muito boa e os caras me contrataram. Só que ao invés de ir com o Stamina eu fui com o Darrison. Quando eu cheguei na porta, todo mundo ficou perguntando se eu ia tocar “Is The Way” e eu não sabia que porra de música era “Is The Way”. Eu achava que era o jungle, né? DJ Taktix, “It’s The Way”. Não sabia que música era, aí eu toquei, como penúltima música, “LK”. Quando toquei, todo mundo começou a cantar “It’s the way that we bring the sound” e eu não acreditei. Dei o rewind na música, toquei de novo e liguei pro meu empresário na época, o Oliver, eu falei: “Liga pro Linden (Stamina) e bota ele no estúdio pra gravar o vocal de ‘LK'”. Isso era terça de madrugada, porque na quarta à noite eu ia viajar, para chegar aqui na quinta pra tocar no Love. Aí o Stamina gravou os vocais na quarta de tarde, me deu um CD-R. Cheguei aqui na quinta, abarrotado de disco novo, fui tocar no Love e tava o Xerxes, tava todo mundo lá, clube lotado. Toquei “LK” e todo mundo gritou, só que eu botei o CD com o  capella no CDJ100 da Pioneer e dei o play em cima. Meu, o povo invadiu a cabine, foi tipo dez rewind, não conseguimos tocar mais. Saímos do Love oito da manhã e o Xerxes falou: “Vamo pro estúdio agora”. Oito e meia da manhã botamos o vocal de “LK”. Eu com sono pra caramba e tal porque toquei a noite inteira sozinho. E essa é a história de como surgiu a versão vocal.

E o título “LK” veio de onde?

Primeiro a gente chamava essa música de “Patinha Theme”, que era o jeito que a gente chamava o Patife porque a gente sabia que ele ia gostar da música. Minha mãe tava lavando a cozinha depois do almoço e quando eu fui até ela o piso tava molhado , aí eu pensei “Liquid Kitchen”, que é LK. Nome ridículo, eu sei [risos], mas a gente só queria que a música tivesse impacto na pista, não tinha muita pretensão.

“Para mim, o que mais importa é o groove da música – o groove e a alma”

O disco é uma homenagem a algumas lendas pretas da música brasileira. O sample de “Tudo Que Você Podia Ser”, do Clube da Esquina, em “Tijuana Frogs” é quase imperceptível, mas está lá. Aliás, fala da tua relação com desenhos animados antigos.

Cara, na verdade, o disco não é uma homenagem a lendas pretas. A gente só fez o disco, cara. A gente queria fazer música e a gente sampleava, assim como o Q-Tip, do A Tribe Called Quest, sampleou James Brown, Roy Ayers. A gente sampleou algumas coisas de música brasileira estava até com medo de ser processado. A gente deu uma mega de uma maquiada nas músicas, nos samples, entendeu? Alguns não dá para perceber, outros dá, mas eram samples, eram ideias que eu tinha, outras ideias que o Xerxes tinha e a gente foi fazendo. A gente nunca fez com o intuito: “Ah porque a gente tá fazendo pra negrada, a gente tá fazendo pros brancos, a gente tá fazendo pro playboy”. Não, cara. A gente fazia a música pra gente e para tocar na pista, esperando que as pessoas reagissem também com essas músicas, que tivesse uma reação fantástica na pista, assim como eu tocava as músicas dos outros artistas, como eu sempre toquei. Nunca fiz música nesse esquema, entendeu? Homenagem, essas coisas. Faço música porque eu gosto, e aí acho samples interessantes e coloco lá, independente de o artista ser branco, negro, amarelo. Eu gosto de música, né? Música une pessoas, eu não sou dessa vibe.

A minha relação com o desenho animado é muito grande, porque eu passava a maioria do meu tempo assistindo desenho animado. Por exemplo, desenhos da Hanna Barbera, eu sei quase todos, e eu falo “quase todos” porque teve alguns desenhos que não passaram aqui no Brasil, só passavam nos Estados Unidos, mas todos que passaram no Brasil eu conheço. A minha relação com o desenho animado sempre foi muito forte, principalmente por causa da música, porque a maioria desses desenhos dos anos 1940, 1950 e 1960 era jazz. O groove da música me fascinava, e lógico, a sequência, como a música interage com o desenho. Isso sempre me fascinou, inclusive esse sempre foi um sonho que eu tive – de fazer música para desenho animado. É um sonho que eu sempre tive, mas eu não estudei música para isso. Tem que estudar música mesmo, né, ler partitura e isso e aquilo. Eu não sei ler partitura, então é difícil, mas a minha relação com o desenho é muito boa. Eu adoro, adoro desenho animado, assisto até hoje.

Você tem ideia de qual foi a reação ao teu disco na gringa naquela época? Mais especificamente na cena de drum ‘n’ bass?

Mais ou menos, mais para não do que para sim – porque no final das contas a gente ficou meio pressionado para lançar logo o disco. Aqui no Brasil a galera que distribuiu o disco não sabia vender o disco, porque eles não sabiam vender pra galera que consumia música eletrônica. Era uma galera da antiga, lendas que vendiam os discos, os caras são muito legais. Eu pirava nas histórias que os caras contavam, várias histórias bacanas de artistas, de discos. Ficava mais conversando com os caras sobre artista do que “Como que tá meu disco? Tá vendendo?”, sabe? Eu e o Xerxes fizemos muita amizade com os caras porque a gente sempre foi muito curioso com o que acontecia no passado. Mas acho que o disco aqui virou ok, né? Por causa de “LK”, mas as outras músicas as pessoas não sei se entenderam, se deram muita bola. Parece que é muito óbvio, por exemplo, ter o sample de “Realce”. Parece ser muito óbvio, mas ao mesmo tempo não é, porque as pessoas não sabem. Muita gente não sabe, entendeu? Não sei como que foi lá fora. Lá fora o disco foi bem, justamente por causa de “LK”, porque tocava muito em todas as rádios, a maioria dos DJs tocava a música. Então, cara, a música bombou. Era um single, a música era o carro-chefe e o disco virou, mas não vendeu, assim, para ganhar disco de ouro, essas coisas. Mas nas vendas, por considerar um disco underground, acho que foi bom, acho que foi ok.

Só para dar o tom do quão influente é o teu trabalho: o meu pai te viu tocar na Toco. Ele falava que a galera não dava muito valor pro drum ‘n’ bass, jungle e outros sons vindos da Inglaterra para cá, mas que ele amava. O que tu pensa dessa questão geracional em torno da música?

Cara, legal, acho muito bacana essa conexão, sabe? Seu pai escutou e gostava, viu como foi a cena desde o começo, né? Eu já tocava rave music desde 1991, porque eu já queria coisas diferentes, queria escutar coisas diferentes. Sempre fui fascinado pelo diferente. Eu nunca gostei do mesmo. Gostava do que tocava na rádio nos anos 1980, né? E aí tinha os DJs que levavam músicas fodas, programas dos DJs. Já nos anos 1990 era ruim, a rádio era ruim e a maioria dos DJs só queria tocar música comercial, pop music. Eu não me conectava com essa galera. E aí o que acontece: começa a acontecer, em 1988, o Verão do Amor, lá em Ibiza. Começam a chegar alguns discos diferentes aqui no Brasil e outros DJs. Outros DJs começaram a gostar desse tipo de música, começaram a mostrar, como Renato Lopes, o Mau Mau, Paulinho Shing, o Luizinho, que tocava no Victória Pub. Já era uma galera diferente. Nessa época, o Mau Mau já tocava, mas ele dançava, né? Ele tinha um grupo chamado Dance Division que era foda. Então, cara, eu sempre corri atrás do diferente, né? Digo que eu sempre remei contra a maré. Às vezes dá certo, às vezes não dá certo, às vezes a gente paga um preço alto, entendeu? Principalmente aqui no Brasil, né? Porque aqui no Brasil tudo é house, house, house, house, techno, techno, techno, techno, sabe? Não tem nada de diferente, sabe? Quando você apresenta alguma coisa de qualidade, às vezes a massa não se identifica, sei lá. Então, acho que eu sempre fui um batalhador. Não é fácil chegar aonde eu cheguei, não é fácil fazer o que eu faço, entendeu? Muita gente acha que é muito fácil, mas não é não. É difícil pra caramba.

Hoje tem gente nova produzindo esse som bem rápido e groovado. Tem alguém que você gosta de ouvir da nova geração?

Cara, tem gente fazendo música boa no mundo inteiro. O Brasil tem muita gente fazendo música boa, L-Side tá arrebentando no mundo inteiro, tá fazendo collab com muita gente, Urbandawn tá aniquilando, o Chap, que é o Alibi, tá morando já em Viena, tá fazendo muita coisa legal, o Jann tem um projeto com o Clayton que é o Basshunters, tá fazendo música também, faz uma linha mais de Jump Up, DJ Andy, Leo Dirtbag e por aí vai. Acho que tem bastante gente fazendo música, tem o Dunk que é o João, faz muita música também, o João tá assinando um monte de selo. Aí tem o Black Ops, tem o Cable, o Daniel, ele assina como Scorsi, então ele faz EDM, mas faz d&b também. Tem muita gente fazendo música, muita gente no Brasil inteiro, e isso é legal, isso mantém a cena viva. A gente só precisa de um pouco mais de festas, na verdade, mas eu tenho gostado bastante das músicas. Ah, o Level 2, não posso esquecer, o Pedrinho, que aniquila. O Unreal também. Cara, muita gente boa, eu nem consigo lembrar de todos agora.

O Chico me falou que tá escrevendo sua biografia agora. Qual o legado que você quer deixar através desse registro da tua história?

Eu só li o prefácio, não li o resto [risos]. Preciso ler de novo porque a gente vai escrever sobre certo período. Eu conheço o Chico desde que ele tinha 13, 14 anos. A gente se conheceu na loja de disco, garimpou muito disco junto, compramos muita revista junto também, revista gringa. A gente descobriu muita música junto. Então foi um período, para a gente, de ouro. Se fosse hoje, cara, metade, metade não, 90% de quem se diz DJ ia desistir, porque não era fácil conseguir disco. Importar o disco, conseguir achar revista, comprar revista, traduzir, comprar o release no escuro, né? Você comprava o disco e não sabia o que era. Paga e, se não for bom, não tem como devolver. Então, era muito difícil.

Acho que esse livro vai mostrar que ser DJ não é ficar na cabine girando knob, entendeu? É muito mais do que isso. Eu tenho um puta amor, uma puta paixão, uma puta dedicação pela minha profissão, sabe? Igual agora, todo mundo: “Você não quer tocar back to back (b2b)? Não quer tocar b2b?” Mas nem fodendo, não quero tocar b2b com ninguém [risos]. Eu não gosto de tocar b2b. Meus b2b que eu fiz foram pouquíssimos. Não tenho pretensão de fazer b2b, entendeu? Eu fiz com o Laurent Garnier, que foi maravilhoso, fizemos em Londres, no Japão e no Brasil. Fiz b2b com o DJ Zinc uma vez, no Homelands, que entrou para a história. Todo mundo comenta desse set até hoje. Fiz uma vez com o Calibre, na minha noite, que foi incrível. Fiz uma vez com o Andy C, que eu não gostei, achei ruim. Eu gosto de tocar porque acho que tem muita música nova, tem muitos artistas, principalmente agora, muito artista, muita música. Pô, e tá difícil, né? A gente tem que mostrar tudo para as pessoas. Não tá sendo fácil. A gente não tem uma rádio que nos apoie, não tem nada, sabe? Não tem um veículo de comunicação, por isso que eu continuo fazendo as lives. Então, é isso, cara. Mostrar para as pessoas que ser DJ é muito mais que um post no Instagram.

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ARTISTA: Dj Marky

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