Revisitando Meus Clássicos: Ed Motta – Dwitza (2002)

Depois de uma sequência de sucessos radiofônicos, o músico carioca “se libertou” e lançou, aos 30 anos, um trabalho aventuroso e majoritariamente instrumental; “Minha vitrola e minhas composições tinham um espectro maior do que o estereótipo do cara que faz música para dançar”

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Fotos: Daryan Dornelles

Revisitando Meus Clássicos é um quadro no qual os próprios músicos destrincham grandes álbuns e pérolas escondidas de sua discografia.

 

­Em 2001, Ed Motta tinha apenas 30 anos de idade – mas já era um veterano. Seu primeiro disco, acompanhado da banda Conexão Japeri, havia saído em 1988, quando Ed sequer era maior de idade e, na sequência, vieram expansões sonoras azeitadas por soul, disco, R&B e funk em Um Contrato Com Deus (1990) e Entre e Ouça (1992). É verdade que já havia existido o hit “Manuel” logo de cara, mas especialmente a partir da segunda metade dos anos 1990, as composições do músico carioca invadiram as rádios com os pés na porta: Manual Prático para Festas, Bailes e Afins (1997) e As Segundas Intenções do Manual Prático (2000) emplacaram sucessos como “Fora da Lei”, “Vendaval” e “Colombina” e, no mesmo período, Ed interpretou canções para filmes da Disney como Tarzan e A Nova Onda do Imperador. Ed era pop – mas não era bem isso o que ele queria.

Ao renovar contrato com a Universal, o músico tinha direito a receber um adiantamento expressivo, mas, no lugar disso, preferiu trocar a cláusula: o acordo foi poder gravar um disco instrumental-vocal com o mesmo orçamento e divulgação de um trabalho comercial. “Eu estava com 30 anos, mas já me sentia cansado de tanta luta, tantos percalços. Me lembro que a chegada do ano 2000 me apavorava, eu tinha certeza que ia morrer depois de conseguir gravar o disco dos meus sonhos”, escreveu em uma publicação no Facebook, no final de 2020, relembrando o período. O disco dos seus sonhos? Dwitza, que Ed, como revelou em entrevista ao Estadão, esperava lançar desde 1994.

Com inspirações distintas, que vão do jazz ao samba, passando por trilhas de cinema e valsa, Dwitza, segundo Ed conta, chegou para mostrar que sua vitrola e suas composições tinham um “espectro maior do que o estereótipo do cara que faz música para dançar”. Os dois discos anteriores haviam trazido sucesso radiofônico, mas na sua visão, tolheram seu ímpeto criativo e artístico mais genuíno. Dwtiza, portanto, representou o momento de se libertar das amarras comerciais do pop e da lógica mercadológica de compor. Com um time espetacular de músicos e sob a batuta harmônica-melódica intransferível de Ed, o repertório é intrincado e elegante, suave, mas grandioso. Múltiplo e, ao mesmo tempo, coeso. O scat singing de Ed brilha em meio a temas compostos com precisão, ainda que abertos ao groove e à linguagem particular impressa por cada músico da seleção. Há espaço ainda para duas canções com letra, escritas por Ronaldo Bastos e Nelson Motta – incluídas, segundo Ed, “talvez por medo”. “E que eu adoro”, completa.

Aqui, Ed Motta destrincha as intenções e a importância de Dwitza para sua carreira e, sobretudo, para sua liberdade enquanto artista. Do papel fundamental de Edna, sua companheira há mais de 30 anos, à revolta (na época) por letras “valerem mais” do que composições; de como funciona o Ed produtor às referências do scat singing.

 

Você vinha de dois álbuns com sucessos radiofônicos e, então, soltou o Dwitza, um disco mais aventuroso e, digamos, menos pop. Como foi esse período depois do Segundo Manual que desembocou no Dwitza? 

Quando renovei meu contrato, no lugar do adiantamento de royalties, pedi um disco com orçamento de disco pop, mas com compromisso primordial a arte, e não o mercado.

Dá para dizer que na época você já era praticamente um veterano no meio musical – mas você tinha apenas 30 anos. Como era o Ed Motta com 30 anos?

Verdade, eu comecei muito novo. O primeiro disco gravado com 15 anos (lançado com 16, ano seguinte). Com 30 anos, eu tinha 15 anos de experiência no estúdio, produzindo, arranjando e compondo.

Minha vitrola e, consequentemente, minhas composições tinham um espectro maior do que o estereótipo do cara que faz música para dançar. Eu adoro, mas o interesse pela música é esteticamente vasto. Eu precisava realizar o registro dessas composições com a sonoridade que a cabeça pedia.

Vi um texto seu no Facebook falando sobre Dwitza em que você cita a Edna como fundamental para o processo de feitura do disco. Qual a participação dela?

O nome Dwitza é um apelido da Edna que inventei. Tenho milhares de apelidos para ela ao longo de 33 anos de convívio. “Lindúria” e “Madame Pela Umburgo” também são private jokes com a Edna. Ela tem uma inteligência rara e humor ácido que são uma eterna surpresa a cada dia.

Além da musicalidade em ebulição dos instrumentos, Dwitza traz destaque para a voz e o scat singing. Como é essa técnica e o uso dela no disco? Você cantarolou junto aos temas ou fez as harmonias primeiro (no piano?) e, em seguida, desenvolveu as melodias?

Nessa época, eu tinha uma raiva imensa de letra de música, ficava possesso com a chancela de pseudo-sabedoria que a letra sempre carregou, enquanto um grande tema, uma composição conseguiam se comunicar com uma audiência bem menor. Isso se reflete em números. Então, era minha militância gravar um disco sem letra. E, ainda assim, talvez por medo, incluí canções com letras que adoro. Eu pensava que alguma rádio tocaria, eram músicas com linguagem popular. Mas fazer esse disco é uma afronta ao status quo do mundo do disco. O nível de ônus é alto, mas dignidade não tem preço.

Faço as músicas sempre com um instrumento. Antes, o violão. Nos últimos 20 anos, o piano. Melodia e harmonia surgem simultaneamente, uma coisa chama a outra – o próximo acorde, a hora de voltar para o A, fazer uma ponte, uma introdução, o final, etc.

Há artistas que você considera como referências fortes para o seu scat singing?

No Dwitza, a grande influência foi a dupla Jackie & Roy e o disco A Wilder Alias. Esse disco me impulsionou para o conceito de Dwitza. Mas Eddie Jefferson é meu predileto.

“Minha vitrola e, consequentemente, minhas composições tinham um espectro maior do que o estereótipo do cara que faz música para dançar. Eu adoro, mas o interesse pela música é esteticamente vasto. Precisava realizar o registro dessas composições com a sonoridade que a cabeça pedia”

“No Carrão eu Me Perdizes” é uma homenagem a São Paulo. De que forma, apesar de ser carioca, a capital paulista te inspira?

“Se há governo sou contra, se não há sou contra também”. Escuto essa frase desde menino com certo sorriso no rosto. Então, como existem milhares de canções de exaltação ao Rio (que eu também fiz e a Guanabara merece), fiz algo sobre São Paulo que sempre foi uma audiência extremamente leal e respeitosa por toda minha carreira.

De que forma “Um Dom Pra Salvador” é uma homenagem a Dom Salvador e qual a sua opinião sobre o legado e o lugar dele na história da música brasileira?

O acorde quartal, que uso no começo do tema, aparece em vários momentos da história do jazz e consequentemente em um dos precursores do gênero no Brasil, maestro Dom Salvador. O Abolição é eternamente moderno.

Dwitza é um disco com um time impressionante de músicos. Como se deram as escolhas para essa seleção? Eram, no geral, instrumentistas com os quais você já tinha intimidade e sintonia? Houve um “vestibular”?

A base era minha banda na época. Gravamos a maioria das faixas em trio: [Renato] Massa na bateria, Alberto [Continentino] no baixo, e eu, no Rhodes e Wurlitzer. Os overdubs foram colocados em seguida. A escolha de músicos nos meus discos é estritamente musical. É uma sorte poder trabalhar com amigos, mas não é o que rege o principal. O resultado que eu preciso é o principal, cada detalhe precisa fazer sentido com meus conceitos, preceitos e preconceitos. O crivo é alto [risos].

(Foto: Milton Montenegro)

“A escolha de músicos nos meus discos é estritamente musical. É uma sorte poder trabalhar com amigos, mas não é o que rege o principal. O resultado que eu preciso é o principal, cada detalhe precisa fazer sentido com meus conceitos, preceitos e preconceitos”

“Lindúria” é uma das minhas preferidas do disco. Sinto que há um pouco de Steely Dan nela. Estou certo? E o solo do Paulinho Guitarra é espetacular. Como foi a criação dessa?

“Lindúria” eu fiz para Edna voltando de um jantar de aniversário dela. Blues jazzy tune. Paulinho gravou esse solo todo de primeiro take, o estúdio levitou, me lembro. Um dos grandes momentos desse disco.

Além de música, Dwitza é inspirado em programas de TV e histórias em quadrinhos. Como outras formas de arte te inspiram na hora de compor? 

Bastante trilha de cinema e série de TV, isso é o que mais escuto em casa junto com jazz. Depois que passei a escrever as letras, eu consigo colocar o universo que sempre me interessou dos filmes noir, etc.

Em “A Balada do Mar Salgado”, você realiza um dueto com Leila Maria. Seu processo é muito diferente ao compor melodias com outro artista? Como foi com ela?

Leila Maria, grande cantora, cantou comigo, mas não compôs. Eu sou o único compositor desse e de todos que gravei. A exceção irônica é “Manuel”, essa não é minha. Eu só gravo o que componho, e como espectador da música costumo dar atenção diferente para um artista que compõe seu repertório. O intérprete, por melhor que seja, repete, melhora ou piora o que alguém já criou.

Jazz, samba, psicodelia, valsa, música clássica, trilhas de filme – ao longo da audição, ouvimos menções a muito gêneros. Você considera Dwitza um disco de quê?

De amor e respeito pela música numa gama imensa. A música é um modo de olhar, um modo de vida.

Eu li um comentário de um fã estrangeiro sobre Dwitza que disse que, em termos sonoros, esse é o “disco mais brasileiro do Ed Motta”. Achei curioso. O que você acha? E Dwitza foi um divisor de águas na sua carreira internacional?

Eu fiz sambas bem estilizados, urbanos em Dwitza. Teve uma aceitação muito boa dos clubes ingleses. As músicas tocam até hoje em muitas festas e rádios especializadas.

Existem momentos do disco em que parece haver influência de João Donato. Qual foi a importância do Donato na sua vida?

Imensa. A forma rítmica de tocar piano dele mudou minha vida musicalmente. Abriu um horizonte de opções depois de escutar e conviver com o Donato.

No mesmo texto do Facebook sobre o disco, você disse que “Até hoje nenhuma frase do pensamento humano me emociona mais do que uma sequência de acordes, vivo por causa da música, meu sentido de existir”. Mas fiquei curioso: quais são letristas/canções/poesias que mais chegam perto do êxtase que você sente com a música?

As letras de Stephen Sondheim e do Donald Fagen. Muitas imagens, personagens, citações. Brilhante.

Quais os aprendizados e o legado de Dwitza para sua carreira? No que ele te transformou?

Num artista internacional. A partir desse disco, passei a excursionar por muitos países com minha música. Passei a fazer quatro tours internacionais a partir do disco AOR.

Três indicações de discos de outros artistas para quem é fã de Dwitza.

Jackie & Roy – A Wilder Alias (1974)

Stephen Sondheim – A Little Night Music (1973)

Weldon Irvine – Spirit Man (1975)

Um vinho e um prato para saborear enquanto Dwitza toca no som.

Eu, sinceramente, não gosto de fazer nenhuma atividade com música, exceto caminhar. Quando bebo meus vinhos, nunca tem nada tocando. São prazeres distintos pra mim. Uma coisa de cada vez [risos].

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ARTISTA: Ed Motta