Revisitando Meus Clássicos: Eliana Pittman – Tô Chegando, Já Cheguei (1974)

A cantora carioca revisita o período de gravação do álbum, rememora o início da carreira ao lado do padrasto, o saxofonista Booker Pittman, e compartilha seus próximos passos

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Fotos: Murilo Alvesso

 

Revisitando Meus Clássicos é um quadro no qual os próprios músicos destrincham grandes álbuns e pérolas escondidas de sua discografia.

 

“Como você conheceu a Pittman?”, questiona a voz do outro lado da linha. Durante bate-papo por telefone, Eliana Pittman revisitou o período de gravação do disco Tô Chegando, Já Cheguei (1974), rememorou o início da carreira ao lado do padrasto, o saxofonista americano Booker Pittman, e compartilhou quais são seus próximos planos.

Em fevereiro, a cantora carioca apresentou o disco Pérolas Negras, trabalho criado ao lado das amigas Zezé Motta e Alaíde Costa, com gravações de músicas de Luiz Melodia, Caetano Veloso, Martinho da Vila, Leci Brandão e Djavan. O registro surge após o trio apresentar o repertório em shows no Rio de Janeiro e em São Paulo.

“Sou intérprete, então sinto que fica cada vez mais difícil encontrar coisas boas para cantar. Por exemplo, ‘Oceano’, do Djavan, tem melodia, tem amor, fiquei feliz em registrar”, conta a artista. Com 78 anos, sendo mais de 60 deles dedicados à música, ela que também é professora de canto, vive um momento fortuito na carreira. Após ficar quase duas décadas sem gravar, Eliana lançou o álbum Hoje, Ontem e Sempre (2019), seguido do As Divas do Sambalanço (2020), com Claudete Soares e Doris Monteiro, e o Canções de Elizeth (2021), em que interpretou composições de Elizeth Cardoso.

No final do ano passado, o rapper Rico Dalasam usou um sample de “Nem Saudade”, do disco Eliana Pittman (1972), em “Vicioso”, faixa do disco Escuro Brilhante, Último Dia no Orfanato Tia Guga (2023). “Tenho certeza que vou aprender alguma coisa com ele. Estou de olho sempre no futuro, nunca no passado. Não revisito discos, não sou saudosista, não fico remoendo, quero ir em frente”, explica.

A cantora e o rapper se conheceram na Casa de Francisca em fevereiro, após o show 50 anos de Carimbó, no qual ela revisita o ritmo paraense por meio de canções que marcaram a sua carreira. A primeira vez em que Eliana gravou um carimbó foi no disco Tô Chegando, Já Cheguei (1974), unindo composições de Pinduca em “Sinhá Pureza/ Carimbó do Mato”.

Como a gravadora permitiu a ousadia no repertório? “O meu grande trunfo foi o meu pai. Booker tinha moral, então eu tinha as costas quentes, porém ainda bem que as apostas faziam sucesso”, lembra. Naquela época, era pouco comum que cantoras decidissem os próprios repertórios, já que precisavam gravar o que era sucesso na época: bossa nova, samba-canção e boleros.

Com as portas abertas, Eliana tinha voz e batia o pé no que desejava. Em 1967, ela gravou “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, samba-enredo da Mangueira. “O pessoal da gravadora falava que era música de favelado, mas eu não quero saber, não importa a origem da uma música se ela é bonita”, afirma. O seu único arrependimento foi não ter colocado a bateria da escola de samba no estúdio.

Inclusive, sua relação com o Carnaval foi se intensificando a cada ano que passava. Nascida no Rio de Janeiro, mas criada em São Paulo, ela lembra de se apaixonar pelos desfiles das escolas de samba na adolescência. Após excursionar com o padrasto ao redor do mundo, voltar para o país em fevereiro representava uma reconexão com o lugar onde nasceu.

“É o maior espetáculo do mundo. Já imaginou que loucura é arregimentar três mil pessoas? E isso sem ensaio geral”, aponta. Desde então, ela desfilou em diversas escolas cariocas – sua última participação, como Xica da Silva, foi na Mangueira. Hoje em dia não consegue mais sambar, mas acompanha as apresentações pela televisão. “Não tem nada igual a passar a madrugada na Presidente Vargas, ver aquele espaço todo preenchido de gente, é algo muito primoroso”.

 

Quando você esbarrou no trabalho de Pinduca e se apaixonou pelo carimbó?

Foi algo incrível! No início da década de 1970, eu fazia um show com Sérgio Cabral, em que o governo brasileiro custeava as viagens. A gente viajava em caravanas imensas, mas certo dia, o ônibus quebrou no Maranhão. Passamos o dia na praia do Olho D’água, então em certo momento escuto uma batida legal tocando na birosca. Como passei um tempo na Europa, sempre gostei de coisas de raiz. Perguntei de quem era o disco e descobri o Pinduca, músico do Pará. Pedi para a dona do lugar me vender o disco, mas ela não quis. Voltei para o Rio de Janeiro e aquilo ficou na minha cabeça.

Como vocês encontraram o disco do Pinduca?

A minha mãe, Ofélia, tinha um namorado em São Paulo que foi na avenida São João encontrar os discos dele. A essência musical dos carimbós é muito bacana, há um romantismo e inocência nas letras. Como possuem letras curtas, juntei três músicas no disco Tô Chegando, Já Cheguei, em que captamos a essência, não fugimos da raiz do estilo.

Era comum escutar carimbós gravados por cantoras do sudeste?

Na época, ninguém sabia nada sobre isso por aqui, tocamos em festas juninas, muitas crianças gostavam. Eu propus para a minha gravadora, a RCA, de fazer um LP só de carimbó e passasse um tempo em Belém para fazer um estudo do ritmo porque ninguém falava sobre isso na época. Eles vieram com uma contraproposta indecente, queriam que eu fosse a Donna Summer brasileira.

“Conheci vários compositores nas noitadas de samba no Teatro de Arena. Fiquei amiga de todo mundo. Não existia telefone, a gente se cruzava e eles falavam que tinham música para mim. Era muito mais livre”

Como você escolheu o repertório de Tô Chegando, Já Cheguei?

O Picolino da Portela me deu a música título. Conheci vários compositores nas noitadas de samba no Teatro de Arena. Ia para lá ficar por dentro e fiquei amiga de todo mundo. Lancei o Martinho da Vila no Teatro Opinião. Não existia telefone, a gente se cruzava e eles falavam que tinham música para mim. Era muito mais livre e bacana. “Kalu”, por exemplo, é de Humberto Teixeira, que era amigo do Booker. Ele nos agasalhou com essa música, em que canto em inglês, francês e espanhol.

Durante a década de 1960, você viajou o mundo com o Booker, porém ele faleceu de câncer em 1969. Como foi se readaptar ao mercado?

Comecei a cantar com o Booker em 1961. Em 1967, descobriu o câncer e faleceu em 1969. Nesse período, trabalhei como nunca para sustentar a nossa casa. Ele faleceu em outubro, e no réveillon eu já estava cantando em um cassino em Portugal. Morei em Paris e viajei bastante até voltar para ficar no início dos anos 1970. Viajava e voltava para gravar discos. Queria ter essa identificação com a minha brasilidade.

“Estou de olho sempre no futuro, nunca no passado. Não revisito discos, não sou saudosista, não fico remoendo, quero ir em frente”

Você cantou samba enredo, carimbó e também explorou sonoridades nordestinas. Como esses ritmos chegaram até você?

Tive um programa no Recife aos domingos. Viajei o Brasil inteiro. Todo final de semana era aquela loucura, eu tinha uma orquestra linda e fazia com gosto. Viajei com os meus músicos para todos os lugares, era tão mais fácil de viver, tinha dinheiro para tudo. Fiquei cansada nos anos 1990, após minha mãe falecer, acabei perdendo o incentivo. Nos meus 30 anos, o mundo era maravilhoso, agora estamos perdidos. A terra perdeu o eixo, tenho que rezar para segurar essa barra. Você nem imagina o que aprontei na Europa, não tinha hora para sair e voltar, hoje em dia não existe mais isso.

O que você se lembra da noite em que conheceu o Booker Pittman?

Na década de 1960, ele já era um músico famoso, que tinha trocado a América pela Europa, onde conheceu o maestro alagoano Fon-Fon (Octaviano de Assis Romeiro) e se encantou pelos brasileiros. Ele entrou no navio com a orquestra e baixou em Recife. Passou pelo Rio de Janeiro, Santos e foi fazer carreira em Buenos Aires, onde quase morreu por uso de drogas. A minha mãe tinha lido uma matéria sobre ele na revista O Cruzeiro e o reconheceu em um show do Louis Armstrong no Teatro Paramount, em São Paulo. A minha mãe, junto da sociedade negra, estava na plateia. A minha mãe, costureira e envolvida na causa negra, gostava de música, me levou para ver Josephine Baker e outros shows. Nesse dia, ela foi falar com o Booker e, de repente, sem nenhuma pretensão, comecei a cantar com ele. O grande acontecimento da minha vida, para me tornar quem eu sou hoje, foi quando o Booker saiu dos Estados Unidos e foi pra França conhecer o Fon-Fon. Eu tinha 12 anos, nem sabia que cantava, mas minha mãe se tornou nossa empresária. Abençoada a hora que Deus o encaminhou na nossa vida.

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