Revisitando Meus Clássicos: Guinga – Delírio Carioca (1993)

“Era um disco para me apresentar como um cara que também interpreta a sua obra”; o músico carioca relembra a parceria com Aldir Blanc, exalta amigos e ídolos, debate o que significa “popular” e fala sobre seu amor por música, futebol e o Rio de Janeiro

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Fotos: Careimi Ludwig Assmann

Revisitando Meus Clássicos é um quadro no qual os próprios músicos destrincham grandes álbuns e pérolas escondidas de sua discografia.

 

No início dos anos 1990, Carlos Althier de Sousa Lemos Escobar, o Guinga, preparava-se para inaugurar sua discografia – mas, àquela altura, ele já era um veterano que emprestara seu imenso talento à história da Música Popular Brasileira. A trajetória de Guinga e seu violão remonta ao fim da década de 1960, quando ele, entre 16 e 17 anos de idade, classificou sua primeira composição autoral no segundo Festival Internacional da Canção Popular (FIC).

Os anos foram passando e – além de conquistar um diploma em odontologia – Guinga seguiu ao lado de nomes como Clara Nunes, Beth Carvalho, Alaíde Costa, João Nogueira, Cartola, entre outros. Em parceria melódica com o lirismo afiado de, especialmente, Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc, o carioca de Madureira compôs canções que foram entoadas por Elis Regina e Cauby Peixoto (“Bolero de Satã”, de 1979), Ivan Lins, Ronnie Von e Chico Buarque.

Mas, em meio à ebulição criativa, houve a fase mágica e autoral que teve início com Simples e Absurdo (1991). “Eu já tava em atraso. Comecei a gravar com 41 anos e compunha desde garoto. Queria zerar esse atraso, gravar o máximo que eu pudesse e tirar a obra da gaveta”, define Guinga, em entrevista pelo telefone. A missão de engatar a nova jornada não foi fácil: rejeitada por gravadoras da época, a obra de Guinga saiu sob o selo Velas, idealizado pelos amigos Ivan Lins e Vítor Martins. “Foi um mutirão: vamos tirar esse cara do anonimato”.

Na sequência de Simples e Absurdo, em que outros artistas interpretam as canções de Guinga, veio o estonteante Delírio Carioca (1993) – dessa vez, com Guinga soltando a voz, além de contribuições de Djavan, Fátima Guedes, Leila Pinheiro, Lúcia Helena e Boca Livre. Produzido por Zé Nogueira, o repertório, baseado fundamentalmente em uma nova safra da parceria com Aldir Blanc, mescla harmonias intrincadas a raízes brasileiras, ecoa do erudito ao samba, do clássico ao popular, de Prokofiev a Luiz Gonzaga. O violão delirante de Guinga subverte expectativas, refaz caminhos – no meio do caminho –, encontra atalhos que voam para longe de escalas formais, até retornar para casa, transformado, após uma viagem febril. E dando voz à trilha pavimentada por Guinga, está a poesia destemida de Blanc – capaz de surpreender e encantar em mesma medida, unindo Manoel de Barros e Nietzsche a Nerso da Capetinga; o “sumidouro do espelho” e “bate bronha” na mesma canção.

Aqui, Guinga, com carisma e franqueza, relembra o período de lançamento de Delírio Carioca, exalta amigos e ídolos, debate o que, afinal, significa “popular” e fala sobre seu amor por música, futebol e o Rio de Janeiro.

Aldir e Guinga (1996) - Cia dos Técnicos

Você havia lançado o Simples e Absurdo dois anos antes. Como foi esse período até 1993, com Delírio Carioca? Eram composições inéditas, coisas de gaveta…?

Era praticamente tudo inédito. Porque, até então, eu só tinha gravado um disco meu. Tinha muita coisa pronta, mas eu tava fazendo muita coisa com o Aldir Blanc e já tinha feito uma obra grande com o Paulinho [Paulo César Pinheiro]. Sobrava repertório. A gente escolheu de acordo com a possibilidade de formação das faixas, em termos de instrumentistas…

Tinha um conceito amarrado para o Delírio Carioca?

A gente queria fazer um disco que contasse uma história, já que o Simples e Absurdo não é um disco que conta uma história. É um disco que me apresenta. É um disco do Guinga como compositor, mas não do Guinga como artista. Eram outros artistas cantando a minha obra em todas as faixas, e o Delírio Carioca já era um disco mais para me apresentar como um cara que também interpreta a sua obra.

E como foi começar a cantar?

Cantei porque eu precisava. Quer saber de uma verdade? Eu comecei a cantar a minha obra por duas razões: primeiro que o compositor, mesmo que não seja cantor, tem uma autoridade sobre como a obra deve ser tocada ou cantada. O cara que compõe, geralmente, é o dono daquilo e ele sabe melhor do que ninguém como é a proposta da interpretação da música. Não que eu seja um cantor. A intenção, essa é a palavra. O compositor tem a intenção perfeita da sua obra. Ele pode às vezes não ser o melhor cantor, mas geralmente é o melhor interprete da sua obra. E em segundo lugar, porque, quando o cara canta sua obra no palco, o cachê dele é maior (risos). Essa é a verdade. O compositor que fica escondido, o cachê dele é menor. Essa é a grande verdade.

Aí você foi, com a cara e a coragem, e soltou a voz…

É, para poder mostrar minha intenção e para poder ganhar melhor na hora de fazer o show.

Como era a parceria com o Aldir Blanc?

Antes eu já tinha uma obra grande com o Paulo César Pinheiro, quando fui compor com o Aldir. E o Aldir é uma estética completamente diferente da do Paulo. São dois letristas que escrevem de forma distinta. E o Aldir era um gênio, como todo mundo sabe, assim como o Paulo César também é. E eu tava motivado por ver a minha melodia com outro tipo de texto, como ela ia soar. Tava curioso. E o Paulo César e o Aldir se equivalem, são dois artistas imensos e ninguém é melhor do que ninguém. Essa era a minha preocupação: fazer uma obra com grandes parceiros.

E você que chegava com a melodia?

Sempre. Melodia primeiro e a letra depois. Gravava vocalise no violão, cantando sem letra.

Nas suas composições, muitas vezes a harmonia e a melodia se atravessam, como em “Nítido e Obscuro”…

Ali, na realidade, não havia nem preocupação com harmonia. Minha preocupação era com sair falando, como se fosse um improviso.

Guinga, eu queria muito ouvir você falar, viajar mesmo, sobre harmonia e melodia.

Eu não tenho um conhecimento formal. Não leio música, não escrevo música. Nunca estudei teoria musical. Eu faço de acordo com a minha vivência de ouvinte. Sempre ouvi muita música, sempre tentei entender o que tava acontecendo nos compositores que eu ouço. Por mais difícil que seja, você vai tentando aprender alguma coisa – e o pouco que você aprende vira muito depois. É acumulativo. Você vai convivendo com as grandes obras, algumas coisas vão ficando com você. Eu sempre convivi com grandes compositores: Villa-Lobos, Tom Jobim, Ravel, Debussy. Compositores russos, alemães, franceses, grandes jazzistas americanos, ópera…

Sempre ouvi de tudo e ouço. Sou um ouvinte inveterado. Necessito de música para viver direito. É sobrevivência. Uma necessidade física, fisiológica, espiritual, emocional. Alimenta a alma e alimenta o corpo. A música é um alimento da alma, mas o corpo depende da alma e a alma depende do corpo. Não dá para separar muito isso. A gente é uma coisa só, acredito que a gente é corpo e alma.

“Eu já tava em atraso. Comecei a gravar com 41 anos e compunha desde garoto. Queria zerar esse atraso, gravar o máximo que eu pudesse e tirar a obra da gaveta”

Na sua música tem algo como um desafio à ideia mais “teórica” de harmonia, não?

Eu vou me virando do jeito que consigo. Na realidade, não tem uma explicação formal para isso. Tem a explicação do cego – que vai tateando procurando o melhor caminho para ele não cair no buraco. Vou eu e minha bengala. Minha bengala é boa. Tá mais para varinha mágica do que para bengala (risos).

Como foi a parceria com o Djavan na faixa-título?

Não foi uma parceria, é ele cantando a minha música. Doando a sua nobre de arte de cantor e compositor à minha música. Djavan é um dos gênios brasileiros. E num ato de humildade e de solidariedade, o Zé nogueira e o Paulinho Albuquerque, amigos queridos, me levaram à casa do Djavan para que ele ouvisse a minha música e ver se ele queria cantar. E ficamos amigos, gosto muito dele. Djavan me trata com muito carinho, um grande cara. Sou amigo dos filhos dele, do Max e do João. Vejo pouco o Djavan, mas as vezes em que tivemos juntos foi de muita profundidade, de uma qualidade humana incrível.

Guinga, eu tava conversando com um amigo meu que é músico, o Rafael Campanini, e ele disse que não parece que o Delírio Carioca foi lançado há 30 anos, mas daqui a 50…

(risos) Pô, legal, que bom! Que a obra não fica datada, que ela pertence ao tempo. A todos os tempos. É o que eu penso da boa música, dos bons quadros, da boa arte. Ela é feita com um pensamento voltado para uma possível eternidade. A gente sabe que eternidade não existe, mas a gente tem que pensar na eternidade mais ou menos aplicada à existência humana. Um ser humano vive em média 70 anos? Se a música dele ficar por 200, 300 anos, já é um pedaço da eternidade.

Queria falar um pouco sobre “Par ou Ímpar”, que é um samba, samba rock, cheio de groove e que tem uma letra densa, política. Tem uma inspiração real?

Eu jogava futebol aqui no Rio e, como o futebol é democrático, todos frequentam o campo. Como Aldir diz num samba dele sobre o carnaval, onde a bailarina pode ser um meritíssimo juiz [referência ao verso “E o doutor juiz é a bailarina”, de “Vitória da Ilusão”]. Um cara não entra numa avenida porque é doutor, ele entra porque gosta de samba. O futebol e assim também. E depois de muitos anos jogando, a gente descobriu que um dos caras lá era um matador, um exterminador. Miliciano. Eu contei isso pro Aldir e ele fez essa música.

Como você sentiu a mudança desse clima político, depois do fim da ditadura militar?

Havia uma sensação de liberdade muito maior do que na década de 1970, que havia a censura. Eu mesmo uma vez tomei metralhadora no peito, militares achando que a gente tava entrando no estúdio às 11h da noite para fazer uma gravação subversiva, comunista, seja lá o que for. E a gente tava indo gravar músicas para inscrever em um festival de canção. Mas eles receberam uma denúncia de que a gente se comunicou e já achavam que era algo subversivo. Tavam esperando a gente escamoteado e, quando a gente apareceu, surgiu uma porrada de milico, segurando a gente. Quem tava até nesse episódio foi o Sérgio Bittencourt, filho do Jacob do Bandolim. Eu era menor de idade, tinha 17 anos. Me botaram no camburão, mas me liberaram por eu ser menor, mas os maiores de idade passaram a noite toda no camburão tocando violão para eles, para mostrar que não era nada demais.

“[Na harmonia] eu vou me virando do jeito que consigo. Na realidade, não tem uma explicação formal. Tem a explicação do cego – que vai tateando, procurando o melhor caminho para não cair no buraco. Vou eu e minha bengala. Minha bengala é boa. Tá mais para varinha mágica do que para bengala”

Você já era um músico veterano quando engatou essa sequência de discos nos anos 1990. A maturidade te ajudou nesse momento?

Na realidade, eu já tava em atraso. Comecei a gravar com 41 anos e compunha desde garoto. Queria resgatar esse atraso, zerar esse atraso, gravar o máximo que eu pudesse. Pra obra não ficar dentro da gaveta. E nesse ponto eu fui muito ajudado pelo Aldir e o Paulinho Albuquerque. O Betinho, o falecido Herbert de Souza. Pelas pessoas que participaram. Foram todos lá para me ajudar. Vamos tirar esse cara do anonimato. Foi um mutirão. O Ivan Lins foi um dos caras que mais me ajudaram. Ele montou uma gravadora com o Vítor Martins para o meu disco poder sair, porque nenhuma gravadora queria meu disco.

Por que você acha que isso acontecia?

Talvez não se interessassem por aquele tipo de música e quisessem outro formato. Deviam achar que a minha música não tinha apelo para o que eles gostavam. E nem eram de um estilo totalmente diferente, porque as gravadoras que nós procuramos faziam disco de música brasileira de alta qualidade. E todos viraram as costas. Nenhuma gravadora absorveu o meu trabalho. Aí o Ivan Lins e o Vítor Martins montaram a gravadora Velas para que eu pudesse ter o meu disco na rua. Só o tempo vai dizer se as gravadoras estavam certas ou erradas. Isso aí não cabe a mim, fica para o tempo e para as pessoas que, por acaso, gostam da minha música.

“Às vezes, o cara canta um troço que vem lá das origens eruditas e se torna popular. O que faz uma obra se tornar popular é você veicular para muita gente, que acaba cantarolando de tanto ouvir. O cara só vomita o que come. O cara não pode comer camarão e vomitar doce de coco”

É interessante como, no disco, tanto na forma de compor quanto nas letras, tem, digamos, um cruzamento, uma mistura entre popular e erudito…

Eu sou um cara popular. Eu nasci em Madureira, filho de um sargento da aeronáutica e de uma doméstica. Família pobre, encarando todas as dificuldades que o pobre encara. Mais popular do que isso? Por que o cara é pobre, mora longe, ele não pode ter bom gosto? Precisa fazer uma porra de uma música que vende pra caralho. Nada contra. Nada contra quem vende pra caralho, gostaria de vender muito. Mas não é porque o cara é popular que ele não pode ter requinte, refinamento. Isso nasce na alma de cada um. Você pega cara no interiorzão do Brasil com profundo requinte. Tem vários exemplos e que se tornaram até muito populares, que é o caso do Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi, Hermeto Pascoal, Milton Nascimento.

Eu não sei falar sobre isso porque o que é popular para mim, assim, digamos, não é popular pra mídia. Para mim, Ravel é popular. No meu peito. Debussy, Chopin, Prokofiev, Tchaikovsky, Borodin, Duke Ellington, Vernon Duke, Villa-Lobos. Para mim, esses caras são altamente populares. Às vezes, o cara canta um troço que vem lá das origens eruditas e se torna popular. O que faz uma obra se tornar popular é você veicular para muita gente. E muita gente acaba cantarolando de tanto ouvir. O cara só vomita o que come. O cara não pode comer camarão e vomitar doce de coco (risos). O cara caga o que come. Se você for balizar pelo que o cara caga, merda é merda, vinda do camarão ou do capim. Fede em todo lugar. Agora, o alimento pode ser do mais alto nível.

Isso até me lembra uma história que eu tive com um cliente Eu disse para ele “esse seu dente, infelizmente, você vai ter que fazer uma obturação”. E a sala de espera cheia e tinha metade da porta só, igual de saloon, de filme americano, e todo mundo ouvia o que se passava lá dentro. O cliente respondeu assim “não é possível que a odontologia não tenha a tecnologia para isso, para aquilo etc.” E eu expliquei várias vezes que tinha que obturar o dente. Aí ele falou “Que que adianta? A gente obtura e um dia qualquer vai acabar caindo…”, diminuindo meu trabalho, sabe? Aí eu falei: “Quando sair daqui, você vai pra casa? e ele disse “vou”; “Quando você chega em casa, o senhor janta?”, aí ele “sim, janto”. Eu falei: “você não devia jantar, porque você vai cagar tudo amanhã”. A sala de espera veio abaixo, todo mundo ria muito. Teve um até que falou “dá-lhe doutor!”.  Eu tinha 32 anos de idade, não tinha paciência para aturar uma porra dessa. Dei a ele o tratamento necessário. Aí que eu mostro que eu sou um cara popular (risos). Minha resposta é a coisa mais popular do mundo, não tem erudição nenhuma. Minha música é assim também, é direto ao assunto. Quem quiser achar que não é popular é porque não sabe o que é popular. É porque acha que o que é popular é o que é vulgar. Eu tenho horror à vulgaridade, que foi a consideração desse cliente comigo. Uma consideração vulgar. Vem falar o que é popular comigo? Criado na rua, 45 anos de futebol na baixada fluminense, andando de ônibus, não sei dirigir, ando a pé por esse Rio de Janeiro, conheço essas birosca toda. Criado na rua, na vagabundagem. Eu não sou vagabundo, eu quis ser doutor, ser compositor. Eu lutei por isso, mas conheço toda a vagabundagem, a sacanagem carioca. De otário eu não tenho nada. Eu sou popular. E esses babacas que dizem que minha música é difícil nunca andaram de trem, filho de avó, criado no leite com pera. Sabe porra nenhuma da vida. Soltavam pipa no ventilador. Sabem porra nenhuma do que é popular. Popular sou eu, com 73 anos, jogo bola com a rapaziada do terreirão, no campo do Chico Buarque.

Em que posição você joga?

Hoje em dia, eu jogo onde me botarem. Com 73 anos, tu não é mais dono da tua vontade. Todo mundo muito mais novo do que eu. Acima de 70, somos seis ou sete lá no campo. O resto é tudo muito mais novo. O cara te diz “vai jogar ali”, tu vai. “Sai do campo”, tu sai. “Volta”, tu volta. Tu vira uma fimose (risos).

Você nunca abriu mão do futebolzinho, né. Que nem o violão…

Eu não abro o pé, né? (risos) Não sou goleiro, pô. Adoro futebol, enquanto eu puder jogar, puta que pariu, que Deus me mantenha. Poder entrar no campo, não é nem jogar. Quando eu boto um calção, uma chuteirinha e entro no campo, já tô feliz.

Queria falar sobre “Catavento e Girassol”. É fantástica. Como foi a criação dessa?

Sei lá, o Aldir é louco. Eu mandei a melodia para ele… Na realidade, eu tinha feito em homenagem ao Henrique Cazes, aí eu falei pro Aldir: “Tem duas música aí – uma é em homenagem ao Henrique Cazes e a outra não é homenagem a ninguém”. Ele fez a homenagem na música que não era pro Henrique e depois fez o “Catavento e Girassol”. Que sorte que eu dei, né?

Foi por acaso então?

Foi.

Mandou cantarolando também?

Tudo, tudo mandava cantarolando, como se tivesse cantando no chuveiro.

E a melodia gruda na cabeça.

Então, ela é popular. Ela gruda. E nem é uma música que tocou muito no rádio, mas é minha música de maior sucesso. Ela e “Bolero de Satã”. Mas não tocou no Faustão, no Luciano Huck. Para você, ela é popular. Aí tem gente que diz “porra, que música difícil”. Mas sei lá cada um tem seu parâmetro, eu não tô aqui pra dizer o que é certo ou errado. Eu faço assim porque só sei fazer assim. Se eu soubesse fazer diferente, faria diferente.

Na letra, o Aldir sentou o dedo, né?

Porra, essa letra é uma obra-prima. Aquele “fuck you/bate bronha” já me botou em cada situação, rapaz. Uma vez fui cantar dentro de uma igreja, aí os músicos ficaram olhando com olho arregalado, aí que eu me toquei desse verso. Comecei a ficar nervoso à medida que o verso ia chegando. Na hora que ele chegou, eu falei “love you/bate low”, qualquer porra que veio na minha cabeça. (risos). Eu ia falar “fuck you/bate bronha” com Jesus Cristo na minha frente? Pessoal todo dentro da igreja, lá em Diamantina.

“Tem vezes que eu fico muito tempo sem tocar violão. Na idade que eu tô, o mais importante mesmo é viver. Eu adoro o violão, meu companheiro querido. Mas tem hora que ele compete com a própria vida e aí eu escolho viver”

E tem “Henriquieto”, que é uma música instrumental. Quais são as diferenças para compor com letra e instrumental?

Essa eu nem sei tocar mais. Vou esquecendo. Tô velho, pô. E ela é meio chatinha mesmo, dá uma mão de obra. Eu sou um compositor de canção, mas quando ela vem instrumental, eu sei por que eu não cantarolo, fico só fazendo o violão, naturalmente.

Delírio Carioca é difícil de rotular em gêneros, mas você diria que é um disco de quê?

É um disco de um cara que ouviu rádio a vida inteira, que ouvia discos, ouvia a antiga vitrola. Na época, não tinha plataforma de porra nenhuma e nem por isso as pessoas deixaram de ter informação. Achar que só plataforma que vai dar informação… Às vezes até dá excesso de informação errada. Acho que o cara que tem sede, ele procura fonte. O cara que tem fome procura comida. Não vai ser excesso que vai te dar fome. Às vezes você não tem fome nenhuma e tá dentro de um restaurante.

Fome de música é fome de música, com plataforma ou sem plataforma. Não vou deixar minha vida ser regida por essas porra de inteligência artificial, quem manda na minha vida sou eu e o mundo. A plataforma faz parte do mundo, tudo bem, mas é uma fração, não posso dar a ela essa importância. Tu entra no metrô, tá todo mundo de cabeça para baixo, tocando aquela siririca eletrônica. Dedo para lá, dedo para cá. Eu não aguento isso.

Mas o Delírio Carioca é psicodélico, né? Tem uma psicodelia ali…

Para te falar a verdade, eu nem sei o que é psicodélico. Essa palavra começou na época que eu era rapaz e até hoje eu não sei direito. Eu tinha uns amigos que tomavam ácido e diziam que tudo tava psicodélico. Eu nunca tomei ácido… O que seria psicodélico? Um excesso de imaginação, de criatividade, de cores, de possibilidades, caminhos? O que é psicodelia? Tem umas palavras que eu não sei o que significam. Casuísmo, estoicismo…

Hermético…

Hermético eu até sei, sou amigo do Hermeto Pascoal (risos). Tem umas palavras que a gente ouve a vida inteira e não sabe o que significa. Eu fui aprender o que era mitigar outro dia. Via tanto essa porra que fui descobrir. O que é psicodélico? Me explica.

Acho que é uma coisa meio lisérgica, usando outra palavra não muito explicativa também (risos).

Ótimo! Tá explicando bem pra caralho, puta que pariu (risos). Mas é tudo ligado ao LSD, né? Meus amigos tomavam isso e começavam a ver meu nariz grande, ficavam rindo. Pior é que nessa época, década de 1960, os caras tomavam ácido e pediam para eu tocar violão acompanhando o samba-enredo da Império Serrano. Era engraçado. Os caras cheios de ácido cantando samba-enredo. Não tinha nem inaugurado a Marques de Sapucaí e eles cheios de cores na cabeça (risos). Essas histórias do subúrbio, tudo que eu vi e vivi, graças a Deus me deram uma bagagem fodida para a vida.

Apesar de a gente não chegar a um consenso sobre o psicodélico, é um disco, com certeza, carioca. Como o Rio de Janeiro te inspira e te põe para cima ou para baixo?

Mas ele é psicodélico, sim. Se você parar para pensar, tem o “Saci”, o “Par Ou Ímpar”. Até a própria “Delírio Carioca”, que atira para todos os lados. Tem uma influência do Gershwin, é toda sinuosa. Sempre gostei do Gershwin, dessa sinuosidade dele. Lógico que tô longe de fazer algo do nível dele, mas não me impede de gostar.

E o Rio?

Me bota para baixo, me bota para cima, para baixo, para cima. Eu sou uma piroca carioca. Dependendo do momento, é tesão. Dependendo do momento, é brochura. Tem hora que o Rio me encanta que eu chego a chorar na rua. E tem hora que eu choro de tristeza, das coisas que eu vejo. Outro dia tava caminhando no Largo do Campinho, um domingo, 17h, todo mundo vendo jogo. De repente, sai um cara de dentro de uma vila dando tiro pra caralho. Eu pensei “Puta que pariu, só falta eu morrer aqui, assim, surpreendentemente”. Isso é o Rio de Janeiro.

Quais hábitos que você mantém há muitos anos pela cidade?

Caminhar pelo subúrbio. Sempre vou para os lados em que eu fui criado e ando a pé por lá. Nunca perdi esse hábito. Jogar futebol, de manhã ir à praia quando eu posso. Dar meu mergulho, fazer um pouco de exercício à beira do mar. Tomar meu café no botequim do Leandro, do seu Chico e do seu Raimundo. Junto com a galera. Catadores de papel, dentista, vagabundo, bicheiro. De manhã, o papo é futebol. “E aí vascaíno… Vascaindo, vai cair de novo, hein…” E eu digo “a sua mãe também, filho da puta” (risos). Aquela sacanagem de botequim, né. Mas é um botequim que não é esse botequim da Lapa, botequim para inglês ver eu não gosto não. Eu gosto de botequim vazio ou então de manhã, bem cedo, quando tem trabalhador misturado com vagabundo, eu gosto porque é uma amostragem do povo carioca. E dizem ainda que eu não sou popular. Popular é isso.

E você leva seu violão nesses passeios?

É ruim de levar meu violão, hein. Para me roubarem? Já me roubaram dois celulares.

Como é a sua relação com o violão hoje?

Tem vezes que eu fico muito tempo sem tocar. Na idade que eu tô, o mais importante mesmo é viver. Eu adoro o violão, meu companheiro querido. Mas tem hora que ele compete com a própria vida e aí eu escolho viver.

Você tem uns acordes preferidos?

Sempre tem. Todo músico tem aqueles acordes. Pega o violão e faz sempre os mesmo acordes. Uns acordes bobos que todo mundo sabe fazer. Na realidade, acorde, para mim, sempre foi uma necessidade do momento. Se eu ouço alguma música ou vem um som dentro de mim, eu fico procurando ele no violão. Não necessariamente eu tenho que conhecer o acorde. Às vezes eu mesmo me apresento a um acorde que não conhecia. Lógico que tudo existe, eu não tô inventando nada. Mas dá aquela sensação de que eu tô inventando algo. Quando eu tô com espirito de compor, eu amo ficar no violão. Igual a todo compositor, não sou diferente de ninguém. Dá vontade, aí você começa a lutar com as suas limitações, acredita na inspiração e corre atrás.

Você tem um contato legal com gerações mais novas, tipo o Thiago Amud… Como é esse encontro?

Eu tive contato com os mais velhos enquanto eu não era um compositor conhecido. Depois que eu me tornei um compositor mais conhecido, menos anônimo, eu fui procurar pelos jovens, não pelos meus contemporâneos. Os jovens é que absorveram minha música. Meus contemporâneos praticamente não conhecem minha obra, com exceção do Caetano, que é um cara que se ligou e procurou. O próprio Chico Buarque. O Milton Nascimento nem sabia quem era eu. Eu fui à casa do Milton, a Esperanaza Spalding me levou à casa do Milton. Nós três gravamos juntos uma música minha, o “Saci”, aí era para ensinar a música pro Milton. O Milton sentado lá, eu já tinha o conhecido em 1967, mas ele não se lembrava de mim. Eu me lembrava dele, lógico. Aí o Milton ficou ouvindo minha música, achou bonita e virou para mim e disse “como é teu nome?”, eu falei “Guinga”. Ele não entendeu, eu repeti e ele pareceu entender. Depois esqueceu e perguntou de novo. Aí eu falei “Guinga”, aí ele “Guinga, agora eu decorei!” (risos). Não sabia mesmo quem era eu (risos), Eu adorei isso, completamente sincero.

Você ouve bastante música em casa? Acompanha com o violão?

Pra caralho. Ouvir e entender, estudar o que tá acontecendo. Esses dias tava ouvindo Noel Rosa, Frank Sinatra, Debussy, para entender aonde ia harmonia. É assim que eu fico. Ouço Chico, Milton, Edu Lobo, Pixinguinha, Francis Hime. Tava ouvindo João Gilberto e Miucha. Jazz eu gosto de ouvir mais os standards americanos, mas eu não tenho muita paciência para improviso, não. Geralmente é meio chato. Tem alguns maravilhosos, que ficaram marcados. Mas tem uns muito chatos, que passam pela música como pretexto para improvisar. Isso eu acho muito chato. Nunca tive muito saco.

E tem coisas para sair? Anda compondo?

Tem umas músicas novas. Posso até te mostrar aqui, de brincadeira. Eu não consigo cantar, ela é muito alta. Mas só para te dar uma ideia. (Canta a música pelo telefone, violão e voz). É sobre um cara fugindo, um cara perseguido. Algum justiceiro querendo acabar com a vida dele. O nome dessa música é “Esconderijo”. A música termina e ele não morre, continua fugindo.

Coisa linda! Muito obrigado por esse papo, Guinga.

Tá bom, meu amigo. Obrigado a você pela oportunidade. Fica com Deus.

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ARTISTA: Guinga