SINAPSE: estranhamente familiar

Deana Lawson, Blood Orange e o clipe de “Beat It”

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (sempre às quartas-feiras).

 

FOTORREALISMO

Blood Orange, Deana Lawson, Michael Jackson e a memória

 

O trabalho da fotógrafa americana Deana Lawson produz um clima de espontaneidade que pode enganar aquele que o vê. Focada em captar “o estilo de vida e as referências culturais da diáspora africana” nos cidadãos dos Estados Unidos, as imagens produzidas por Lawson exibem uma sensação de intimidade, capturada quase sem querer pelo olhar atento da artista. A verdade, no entanto, é outra: seus cenários são calculados e seus personagens encenados. Não é por isso, no entanto, que deixam de ser genuínas.

No ano passado, a artista teve uma exposição no Brasil. No texto da curadoria lia-se que “ainda que meticulosamente encenadas, suas fotografias são imagens profundamente íntimas, em geral baseadas em desenhos e esboços que ela realiza antes da sessão fotográfica propriamente dita. Apesar desse cuidadoso processo de preparação, o resultado está longe de ser previsível, já que grande parte das fotografias é feita em interiores domésticos onde Lawson acaba de entrar pela primeira vez, criando assim uma sensação voyeurística, mas também estranhamente familiar”.

Na intersecção entre o mundo da fotografia e o da música, um bom exemplo do trabalho de Lawson é a fotografia da capa de Freetown Sound, álbum de Devonté Hynes, artista inglês mais conhecido pelo seu codinome Blood Orange. Na imagem, cujo título é Binky e Tony Forever, vemos um jovem casal abraçado dentro de um quarto. Um rapaz está sentado na cama, sobre um cobertor de textura sintética e cor de açafrão. Na parede, atrás deles, é possível ver um poster do Michael Jackson da era “Beat It”.

No clipe de “Beat It”, Michael aparece inicialmente deitado em sua cama, num quarto muito parecido com o da fotografia de Lawson. É um contraste estranho, de um momento de intimidade do cantor, revirando na cama, antes de sair para interferir em um duelo de gangues.

Na fotografia de Lawson, o pôster de Michael Jackson, a roupa de cama e o figurino de Binky são decisões espontâneas da fotógrafa, que as coloca em cena de última hora, por impulso. É só depois, com o processo finalizado, que a artista se dá conta de uma tentativa de acessar um lugar familiar, vindo das memórias de infância. Ela diz: definitivamente, quero jogar com o senso de familiaridade do espectador ou com a memória desses tipos de espaços, então acho que usei isso como material”.

Vale lembrar que o título do álbum de Blood Orange é uma homenagem à cidade de Freetown, em Serra Leoa, onde nasceu o pai de Hynes. No meio do caminho entre um espaço político e um de intimidade, o músico encontra um lugar comunitário, de compartilhar emoções coletivas. Seja sampleando um dialeto africano ou evocando a tonalidade das baladas de Michael Jackson, Freetown Sound une-se artificialmente às suas inspirações para acessar uma memória real.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte