SINAPSE: marcha para o Oeste

Vera Sola, “Peacemaker” e a fúria

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

FÚRIA

Vera Sola e o Faroeste

 

Escrevi recentemente sobre o novo álbum de Danielle Aykroyd, uma musicista – e filha do ator blues brother Dan Aykroyd – que, na sua carreira musical, incorpora a persona artística Vera Sola. A personagem Vera Sola é uma figura sisuda e dramática, de sotaque interiorano e que está sempre perambulando solitariamente por paisagens rurais igualmente dramáticas e melancólicas, de planícies verdejantes e montanhas que se elevam por trás de um horizonte delineado por nuvens escuras.

O segundo álbum de sua carreira traz o título sugestivo Peacemaker, invocando uma figura justiceira, que trata de resolver seus problemas com as próprias mãos. Na faixa Instrument of War”, sobre um violão dedilhado, ela canta para o deus da guerra:

“Lord make me an instrument of war

Lord pack me my pistol bring me my sword

Load me up with landmines

Bury me in concubines

Take me downtown where the bullets are”

O imaginário do Velho Oeste do qual Vera Sola faz parte está na formação da identidade estadunidense. Trata-se de um momento de expansão histórica que, como todo processo de colonização e dominação, apagou a geografia de um país para construir uma nova narrativa sobre ela. Enquanto os Estados Unidos começavam a transformação de jovem república em direção à potência mundial, cenários como as Cataratas do Niágara e o Grand Canyon representavam a magnitude da empreitada humana em direção ao Oeste.

Não é à toa, por exemplo, que as figuras do mocinho e do bandido, essa dualidade básica que configura os cowboys de chapéu branco versus os de chapéu preto, concretiza uma visão de mundo: hoje em dia, os super-heróis do cinema americano exploram justamente a herança da mesma narrativa, incorporando essa fantasia em cenários onde os vingadores mascarados lutam sozinhos contra os vilões que ameaçam a sociedade.

No entanto, se por um lado as paisagens da expansão americana eram emblemáticas dos ideais de uma nação, por outro deixavam claro a pequenez humana diante das forças terríveis da natureza. Nas narrativas do Velho Oeste, essa sombra da dominação se manifesta várias vezes na figura da mulher injustiçada diante de um homem terrível.

Na faixa “Get Wise, creio que não por acaso, é possível ouvir ecos da clássica “Bang Bang (My Baby Shot me Down)” que, acredito, não representa apenas uma referência estética, mas todo o imaginário por trás da persona de Vera Sola. Originalmente gravada por Cher em 1966 – e composta pelo seu então marido Sonny Bono –, a música conta da brincadeira de duas crianças, uma menina vestida com o chapéu branco, e um menino, de preto, que sempre termina com a mesma resolução: ela morta e ele vencedor. Alguns versos adiante, com ambos já adultos, a situação se torna metáfora para um relacionamento abusivo.

A música teve uma espécie de renascimento quando Tarantino a usou a versão de Nancy Sinatra como trilha sonora para o filme Kill Bill, dando uma interpretação literal à música num filme sobre a odisseia de uma mulher em busca de vingança. Nos filmes de exploitation de Tarantino, a vingança é um grande tema, explorado como catarse social e como uma reparação simbólica.

A mitologia clássica está repleta dessas imagens, caso, por exemplo, das Fúrias da mitologia romana, ou das Erínias, na grega. De acordo com a escritora Elizabeth Flock, que recentemente escreveu sobre o tema no livro The Furies, a questão é que existe “uma qualidade mítica na raiva de uma mulher injustiçada que atravessa culturas”, assim como aquilo que Flock considera ser a sua fonte: a dominação masculina. As mesmas características que tornaram as Fúrias repulsivas para os homens do passado as tornam impressionantes para as mulheres de hoje – um símbolo da agência feminina face à opressão e à dor. No caso do Faroeste, uma opressão que se manifesta como a marcha para o Oeste em si.

Para encerrar, uma nota de rodapé: quando escrevi minha resenha sobre peacemaker, falei dos filmes Sangue Negro e o derivativo Ataque dos Cães, cujas imagens me lembraram aquelas levantadas para os clipes de Vera Sola. Curiosamente, em ambos a presença oprimida não se manifesta na figura de uma mulher, mas na de homens ainda jovens, franzinos e sensíveis, que são oprimidos pela mesma força patriarcal no seu rito de passagem em direção à masculinidade tóxica. De qualquer forma, trata-se do mesmo arquétipo em ação.

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ARTISTA: Vera Sola

Autor:

é músico e escreve sobre arte