SINAPSE: muito além do jardim

“Gardeners World”, Alvin Curran e os ruídos da natureza

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

O MUNDO DOS JARDINEIROS

Monty Don, Alvin Curran e a natureza

 

Graças a alguma artimanha algorítmica, meu YouTube foi recentemente inundado por episódios aleatórios do Gardeners World, clássico programa de jardinagem da BBC. Ao invés de questionar o porquê desse acontecimento, simplesmente aderi à sugestão e comecei a assistir esporadicamente alguns dos episódios. Como muitos programas ingleses, Gardeners World tem ritmo ansiolítico e nenhum propósito evidente – nenhuma competição, nenhum prêmio em dinheiro envolvido, nenhum aparente oportunismo – a não ser o de difundir a arte da jardinagem pelo mundo.

Nele, vemos Monty Don, um senhor inglês calçado com suas galochas, acompanhado de seu cachorro, em meio a flores exuberantes e coloridas. Os seus jardins obedecem a uma típica organização inglesa: plantas separadas cada uma em seu bloco, tudo sempre muito organizado, podado, controlado. Nas paisagens perenemente frias e chuvosas da Inglaterra, as plantas exibem um verde quase fluorescente. Fico na dúvida se o que vejo na TV é algum filtro, que deixa tudo mais saturado, ou se as cores dos jardins de Monty são realmente assim por causa de sua habilidade como jardineiro. Monty é tipo um Bob Ross da jardinagem: um guia espiritual, desvelando segredos da natureza, que mostra tudo exatamente como é – uma dália é uma flor majestosa, bela por si mesma –, mas deixa a entender que tudo parece ser uma metáfora para algo mais existencial.

É claro que me interessei também porque  eu mesmo cultivo um jardim desde o fim de 2022. Estamos na época da chuva, o que deixa as plantas sempre mais felizes e viçosas por aqui, e também me faz simpatizar com Monty, sempre molhado com suas tesouras de poda na mão. No entanto, nossa semelhança acaba por aí. Sou um mero iniciante na arte do cultivo, aprendendo por tentativa e erro, numa região tropical do mundo. As plantas que Monty cultiva com sofreguidão, um mero arbusto de manjericão por exemplo, dentro de estufas que preservam o calor e a umidade, aqui brotam com alegria e sem dificuldade. Outras, ao contrário, são nativas da Europa e adaptadas ao frio e, por aqui, exigem muita adaptação genética e malabarismos dos agricultores para sobreviverem – caso da maior parte de nossas hortaliças, por exemplo.

Outra diferença fundamental é a visão de mundo por trás de um jardim europeu, a organização, o controle, o desenho sempre seguindo uma ideia antropocêntrica e iluminista de harmonia. Meu jardim é selvagem, fala por si mesmo – e eu, um mero condutor de seus processos naturais. Lagartas e besouros, que comem parte da plantação, são inclusive bem-vindos e fazem parte do balanço do sistema. Até mesmo animais maiores e mais vorazes, como uma lebre que recentemente tem feito de seu hobbie escavar as batatas doces durante a madrugada, tem o seu lugar.

É muito bom estar no jardim trabalhando com música nos fones de ouvido. No entanto, o jardim possui a sua própria trilha sonora: pássaros, abelhas e até mesmo o farfalhar das folhas com o vento já formulam um tipo de experiência que não necessita de nenhum aditivo. Apesar disso, recentemente, resolvi submergir num labirinto ainda mais intrincado, que é estar no jardim ouvindo uma música feita de sons do jardim.

Conheci o trabalho do compositor Alvin Curran recentemente, músico experimental que mescla instrumentos clássicos convencionais, eletrônica e gravações de campo. Em Songs and Views from the Magnetic Garden, o artista mescla sons vindo de um jardim em sua música. Água corrente e pássaros gorjeando, mais que meros panos de fundo e ornamentos, são elementos constituintes de sua composição. Há algo de realmente magnético na proposta, uma música ambiente elevada ao quadrado, num processo de feedback com aquilo que a circula.

Ele escreve: “em meados da década de 1970 comecei a formular ideias e projetos que levavam à produção de música fora das salas de concerto – muitas vezes em locais grandes, abertos e naturalmente belos. Portos, rios, lagos, cavernas, pedreiras, campos e matas, fontes sempre prontas de minha inspiração musical, tornaram-se agora meus novos teatros musicais. [… ] sou um viciado em sons da natureza”.

Engraçado perceber essa analogia, a jardinagem enquanto uma tentativa de organização da natureza e música enquanto uma organização de ruídos. Entre flores, animais, hortaliças, lagos e cachoeiras, Curran simplesmente contextualiza uma música que já estava lá.

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ARTISTA: Alvin Curran

Autor:

é músico e escreve sobre arte