SINAPSE: terapia do grito

Kim Gordon, Yoko Ono e quando acontece o que simplesmente deveria acontecer

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

PRIMAL SCREAM

Kim Gordon, Yoko Ono e o grito

 

Depois de ouvir e escrever sobre o novo álbum de Kim Gordon, The Collective, um trabalho cheio de ruídos e detritos sonoros, me peguei pensando no primal scream. Não me refiro à banda escocesa de rock alternativo, famosa pelo seu clássico álbum Screamadelica, mas, sim, ao método terapêutico de onde a banda emprestou o seu nome. Uma “terapia do grito” que alcançou popularidade justamente porque conseguiu penetrar no mundo do rock nos anos 1970.

A Terapia Primal é uma psicoterapia criada por um sujeito chamado Arthur Janov, que argumentou que a neurose é causada pela dor reprimida do trauma infantil. Janov acreditava que as terapias da fala lidam principalmente com o córtex cerebral e áreas de raciocínio superior e não acessam a fonte da dor nas partes mais básicas do sistema nervoso central e que, portanto, sentimentos reprimidos seriam liberados através do grito de forma mais eficaz. O seu livro The Primal Scream, publicado no começo dos anos 1970, ganhou grande popularidade devido ao fato de que inúmeras celebridades, incluindo Yoko Ono e John Lennon, participaram deste tratamento não convencional. O casal, em parceria na Plastic Ono Band, usou a terapia primal tanto para elaborar suas letras (nas músicas “I Found Out”, “Isolation” e “God”, por exemplo), quanto na produção em si – “Mother” talvez seja o exemplo mais famoso. Nela, John Lennon grita as dores de sua infância: “Mother you had me / but i never had you / Father, you left me / but i never left you”.

Yoko é consagrada no mundo das artes plásticas e da performance e, dentro desse campo, muitos de seus trabalhos têm a ver com o grito. De acordo com a musicóloga Shelina Brown, “as vocalizações extremas de Yoko Ono são expressões culturais revolucionárias que constituem respostas viscerais aos movimentos políticos e práticas contraculturais dos anos 1960 e início dos anos 1970”. Nas performances vocais de Yoko Ono, o grito funciona como ato de abjeção sonora e traz à tona um corpo marginalizado – de mulher asiática – que negocia e desafia suas próprias fronteiras liminares dentro de um contexto sociopolítico. Dentro do mundo do rock, por exemplo, provou o quanto o grito de uma mulher incomoda.

“Mother” é uma música que dói na profundidade da alma. Penso na aceitação do grito de John Lennon em comparação à rejeição usual dos gritos de Yoko, em especial nos círculos conservadores da música. Se Janov considerava o grito como uma maneira de quebrar a repressão de suas emoções, rompendo o disfarce de sujeitos sociais adultos controlados, Yoko Ono explorou o seu grito para exprimir a repressão dentro do meio musical.

De volta a Kim Gordon: em uma matéria para o New York Times, ela se surpreende porque soa cool uma mulher de 70 anos fazer a música que faz, apesar de sua história. The Collective é um álbum com produção que tangencia o hip hop – o beat da faixa “BYE BYE”, por exemplo, tinha sido feito originalmente para Playboi Carti. Kim Gordon é cool para uns porque experimenta com o hip hop, mas incomoda outros justamente pelos mesmos motivos. Em “Kool Thing”, música do Sonic Youth, outra famosa interação de Kim Gordon com o mundo do rap, ela canta: “Hey, Kool Thing / are you gonna liberate us girls / From male white corporate oppression? / Fear of a female planet?”.

Kathleen Hanna, das bandas Bikini Kill e Le Tigre, põe uma chave nessa história: “o que Kim está fazendo é totalmente, absolutamente normal. O que não é normal é quando mulheres ou pessoas marginalizadas de outras formas param de fazer arte. Não estamos testemunhando um milagre, estamos testemunhando o que acontece quando aquilo que deveria acontecer simplesmente tem a permissão de acontecer”.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte