SINAPSE: tipografias alienígenas

As partituras de Cornelius Cardew, Sonic Youth e a página 183 de “Treatise”

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

PÁGINA 183

Cornelius Cardew, Sonic Youth e a tipografia

 

A obra mais conhecida do compositor britânico Cornelius Cardew se chama Treatise e é um marco da música vanguardista dos anos 1960. Trata-se de um colosso de 193 páginas que é uma partitura musical composta de linhas, curvas, símbolos e diversas formas geométricas e abstratas que ignora de propósito as convenções da notação musical. Não existe uma chave para interpretar os símbolos contidos na partitura, que se cruzam, giram, ou espiralam, formando desenhos sinuosos e tipografias alienígenas.

Embora seja convencionalmente encarada a partir de uma perspectiva musical, Treatise não deixa nada a desejar enquanto uma composição visual, alinhada ao design gráfico e à tipografia. Não por acaso, quando Cornelius Cardew tinha 26 anos de idade, tornou-se editor assistente de arte na Aldus Books, onde desenvolveu uma profunda apreciação pela “eloquência de linhas pretas simples” produzidas através da caneta tinteiro e do Letraset nas páginas em branco.

É interessante perceber como, para Cardew, o processo de escrita é mais importante do que a informação em si. É por isso que, para cada músico que interpreta suas partituras, uma versão completamente diferente é produzida. De acordo com o próprio Cardew, “um instrumentista que ler 200 páginas de um material assim, inevitavelmente formará suas próprias associações musicais. Tais associações pertencem naturalmente ao músico. É por isso que hesitei em falar sobre como deve soar a minha música. O que espero é que, ao tocar esta peça, cada músico abra mão de sua própria música e a ofereça como uma resposta à minha partitura”.

A página 183 de Treatise, por exemplo, conta com essa versão feita por Mark Nagy e Neil Jendon, que soa como blip blops eletrônicos de um cientista maluco. Já essa versão da Sonic Youth, gravada na compilação Goodbye 20th Century (SYR4), os delays de guitarra a transformam em algo cósmico e misterioso.

Há algumas edições da SINAPSE escrevi sobre o trabalho radical de Julius Eastman, cuja partitura chamada Buddha tem o formato de um ovo e pode ser interpretada de várias maneiras. Para Cornelius Cardew, vale a mesma conclusão a que cheguei naquela ocasião: em geral, uma partitura tem o propósito de orientar a execução de um músico. Aqui, no entanto, a liberdade de notação tem a função, ao contrário, de confundir. Melhor dizendo, apenas instiga ainda mais a criatividade daqueles que se propõe a interpretá-los.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte