Uma noite com Irmãs de Pau e MC Lalão do TdS no Baile da DZ7

Convidamos três artistas que têm o funk como linguagem primordial de seus trabalhos para conversar sobre a forte presença LGBTQIA+ nos bailes funk

Loading

Fotos: Pétala Lopes/Monkeybuzz

“É a regra do baile”, afirma MC Lalão do TdS, de 26 anos, “Antes, quem gostava de funk tinha que ir no baile para escutar esse som. Hoje em dia, o funk toca em todo canto, mas, ainda assim, existem alguns olhares para quem é funkeiro como se fosse marginal. No baile isso nunca existiu. O baile funk é o lugar onde as pessoas se respeitam — até porque quem frequenta o baile e é todo breque sofre preconceito em outros lugares e não quer trazer o preconceito para esse espaço. Eu acredito que não seja consciente, mas é uma postura das pessoas”. Larissa Manoel começou a frequentar as festas de funk nas ruas de Taboão da Serra aos 15 anos. Na época, as festas se chamavam fluxos e eram itinerantes, ao contrário dos bailes de hoje em dia, que acontecem sempre no mesmo lugar. No entanto, tanto fluxos quanto bailes se orientam pela mesma ideia: engajar a juventude em uma disputa cultural da rua e aproveitar o êxtase de ouvir música nova em alto e bom som, geralmente através da aparelhagem automotiva.

Se em 2018 anunciava-se o auge do baile Helipa LGBT, em 2022 é difícil encontrar um baile nichado para o público em São Paulo. No entanto, uma caminhada em um sábado à noite por um dos maiores e mais simbólicos bailes da cidade, o Baile da DZ7, em Paraisópolis, aponta que não ter um baile LGBTQIA+ não significa que as pessoas LGBTQIA+ não estejam nos bailes. É som de preto, de favelado e de travestis, bichas, mulheres trans, homens trans e pessoas não-binárias também.

Convidamos a MC Lalão do TdS e as Irmãs de Pau, três artistas LGBTQIA+ que têm o funk como linguagem primordial dos seus trabalhos, para irem ao Baile da DZ7 com a gente e conversar sobre como a cultura de baile funk influenciou suas produções autorais. Quando chegamos, à meia-noite, o som já estralava, mas os grupos ainda estavam esparsos, então decidimos ficar um tempo no Baile do Bega, que acontece na rua de baixo. Por volta das duas da manhã, os grupos ficavam mais próximos uns dos outros, deixando somente um corredor no meio da rua como forma de passagem. A DZ7 é um baile jovem, com muita gente entre 18 e 21 anos, e reúne pessoas de todo canto da cidade. Com um cavalo branco na mão, passamos pela fachada do Bar das Coleguinhas, dançamos na frente de uma picape com um paredão de som na sua traseira e vimos um guarda-chuva preto com o logotipo rosa da Barbie sendo balançado para o alto no ritmo do funk que tocava. Às três da manhã, o baile estava cheio e a noite só começava.

No dia seguinte à publicação dessa matéria, completam três anos do caso mais letal de intervenção policial em um baile funk na história do Brasil, conhecido como massacre de Paraisópolis. Foi quando a Polícia Militar paulista cercou as saídas do Baile da DZ7, pressionou a juventude com bombas e ameaças de morte, impediu comerciantes de socorrerem os feridos e executou nove jovens. Passar por essas mesmas ruas hoje e vê-las cheias de gente que dança, dá risada e brinda é, no mínimo, uma subversão à mancha de sangue que a repressão policial tentou deixar nesse território. De alguma forma, o Baile da DZ7 continuar acontecendo — e continuar sendo o maior baile funk da cidade na maior comunidade de São Paulo — é um recado que essa geração reverbera: a juventude não será domesticada e seu prazer acontecerá sob seus próprios termos.

“Eu acho que nosso disco de estreia tinha que ser de funk”, diz Isma Almeida, de 24 anos, DJ e metade do duo criativo Irmãs de Pau. “Eu gosto muito da sinceridade do funk. Não é um tipo de música que tenta falar em entrelinhas e, por isso, é a linguagem musical em que eu me sinto mais confortável para falar sobre as minhas questões. A gente canta muito sobre vivência travesti porque para chegar na cena a gente tinha que falar sobre isso. É a partir do funk e por isso eu amo o funk, vou cantar Funk até o final.”

“Gosto da sinceridade do funk. Não é um tipo de música que tenta falar em entrelinhas e, por isso, é a linguagem musical em que eu me sinto mais confortável para falar sobre as minhas questões. A gente canta muito sobre vivência travesti porque para chegar na cena a gente tinha que falar sobre isso” – Isma Almeida

Isma conheceu Vita Pereira, de 26 anos, quando participavam de uma ocupação secundarista de uma escola em Barueri, São Paulo, no começo da década passada. Elas já se conheciam antes, do coletivo LGBTQIA+ da escola, mas foi durante a ocupação que seus vínculos se estreitaram. Mais tarde, as duas prestaram vestibular para pedagogia e passaram, mas em universidades diferentes. Enquanto Vita foi para Araraquara, no interior de São Paulo, Isma foi para Uberlândia, no interior de Minas Gerais. Curiosamente, as duas se tornaram DJs e agentes culturais que movimentaram as paisagens sonoras de suas respectivas cidades — e, quando decidiram individualmente promover suas próprias festas, tanto Isma quanto Vita decidiram fazer um tipo de baile funk.

“No circuito independente, as pessoas começam a bombar na sua quebrada e depois em outros lugares. A gente bombou em outros lugares de São Paulo, do Brasil, fora do Brasil e hoje em dia poucas pessoas da nossa quebrada consomem nosso som” – Vita

“Eu fiz o Baile da Cuceta porque eu fui para Uberlândia e sentia falta dos bailes daqui”, conta Isma. “Eu procurei mil parcerias na cidade e o objetivo era o mesmo de um baile da quebrada de São Paulo: fazer a galera da quebrada se divertir, consumir de forma barata e sem precisar ir pro centro.” Como Isma estudava na faculdade de Uberlândia e morava em uma região central, ela se viu cercada por festas caras. Assim, a urgência era que o Baile da Cuceta não virasse uma festa universitária, mas justamente se mantivesse como uma forma de lazer acessível e diverso, em que dance hall e vogue pudessem ser mais explorados sonoramente.

Já a Travada, investida de Vita, surgiu como uma resposta à exclusão de mulheres trans dos line ups das festas de Araraquara e com o propósito de criar um espaço criativo multidisciplinar, em que o funk e o vogue fossem, juntos, o carro-chefe da festa. “A Travada cresce muito no sentido de pertencer a um não-lugar”, define. “Aqui tinham muitas festas na cidade, mas as festas LGBTQIA+ eram muito G e a gente nunca era chamada para performar ou tocar. Então, a gente decidiu criar nosso próprio espaço. A Travada desde seu começo teve trans free, pra pensar na acessibilidade do público à festa, e para além da entrada, a Travada sempre teve mulheres negras e mulheres trans tocando.”

“Eu nunca vi o baile como um espaço em que eu não pudesse estar. Hoje eu vejo o funk como a chama que me mantém em pé” – MC Lalão do TdS

Em 2020, tanto o Baile da Cuceta quanto a Travada precisaram pausar suas atividades por conta da pandemia de Covid-19 e, assim, surgiu entre as duas amigas a ideia de produzir um projeto musical juntas, como forma de dar continuidade à produção criativa que já vinha se desenrolando em paralelo. O funk paulista tem preponderância em Dotadas (2021), disco de estreia do duo, mas é a combinação do funk com o vogue de “Picumã y Próteses” e “Femme Queen” que entrega a ferocidade do disco e aponta a proximidade entre os gêneros, um estudo que as DJs e MCs já vinham elaborando nas suas propostas regionais. E é nessa inventividade que está o melhor do baile funk: uma festa para ouvir música e em que se espera sempre música nova – logo, torna-se um laboratório criativo pulsante.

O sucesso das Irmãs de Pau, de outros artistas transexuais periféricos, e a tradição do respeito no baile funk não significam que as periferias estão isentas de transfobia. “No circuito independente, as pessoas começam a bombar na sua quebrada e depois em outros lugares”, pontua Vita. “A gente bombou em outros lugares de São Paulo, do Brasil, fora do Brasil e hoje em dia poucas pessoas da nossa quebrada consomem nosso som”.

“A quebrada é muito ampla. Fora daqui eu estou desbravando o mundo, sendo valorizada por um milhão de pessoas e a galera da minha quebrada não me respeita”, desabafa Isma, “Eu nunca consegui fazer um show aqui em Itapevi, onde eu moro. E eu amo a internet por causa disso. A gente conseguiu se projetar através da internet. Porque os meninos que me zoam aqui na quebrada e insistem em me chamar pelo meu nome de registro, não tem a menor noção que eu tenho uma conta no Spotify com quase meio milhão de reproduções. Acho que se eles tivessem noção saberiam que eu estou representando a nossa quebrada para o mundo.”

Para Vita, a presença em peso da comunidade LGBTQIA+ nos bailes funks hoje é uma consequência da valorização da comunidade periférica que aconteceu nos últimos anos, especialmente quando São Paulo ainda contava com várias ações de fomento à cultura. Quando Vita e Isma começaram a sair para festas na adolescência, era quase mandatório ir para o centro da cidade porque era o lugar em que aconteciam as festas LGBTQIA+. Hoje, essa exclusividade caiu por terra. “Venho observando a noite de São Paulo e, hoje em dia, eu vejo que os editais e ações auto-organizadas tiveram efeito: a juventude começou a se organizar e a valorizar os bailes que já aconteciam nas suas comunidades, ou ainda criando mais festas periféricas”, diz Vita.

“Eu nunca vi o baile como um espaço em que eu não pudesse estar”, conta Lalão, “Mesmo na época do Helipa LGBT, eu não achava que a gente precisava desse baile, sabe?  É óbvio que num role LGBTQIA+ todo mundo se sente mais confortável, mas a gente pode ir onde a gente quiser.” Essa ideia da Lalão de tornar coletivamente o baile funk um espaço diverso, em vez de criar novas alternativas do zero, tem muito a ver com as suas ambições como artista: “Eu acredito que a minha imagem não existe no mercado e vai chegar pras outras minas que são iguais a mim. Elas vão saber que elas podem fazer o que elas quiserem. O que eu sou, meu corpo, minha sexualidade, minha cor, não vão impedir nada. Eu posso fazer o que eu quiser e chegar onde eu quiser porque eu sou capaz e vou pra cima; o funk consciente é a minha forma de falar tudo isso”, diz.

A rima e a escrita sempre acompanharam Lalão na sua trajetória. E se escrever era um refúgio, rimar era uma brincadeira, entre amigos ou dentro de casa, competindo com o irmão dela para ver quem vai lavar a louça. Foi só em 2016 que um amigo começou a chamar sua atenção para o seu talento com música e ela decidiu investir no funk. Hoje MC Lalão do TdS canta funk consciente e já conta com uma colaboração com a produtora musical BADSISTA em “Princesa do Gueto”.

“O funk consciente salvou minha vida”, conta Lalão, “É a mesma pegada do rap: de ouvir muito e começar a pegar uma visão, sabe? O funk me salvou porque eu ouvia muito quando eu estava afundada em droga, tentando parar de usar e o funk veio como uma ferramenta nesse momento. Foi uma época em que eu não conseguia fazer nada, a não ser escrever. Eu tinha decidido ficar dentro de casa, não sair mais, então eu virava a noite na abstinência escrevendo música.” O funk foi um divisor de águas para Lalão. Quanto mais ela se identificava com as letras, mais ela desejava trazer sua visão e sua voz para o mundo. “Nesses três meses, o funk me mostrou como é boa a vida, como eu consegui vivenciar coisas limpa, por mais que tenha sido mínimo. Hoje eu vejo o funk como a chama que me mantém em pé. Eu tenho outras ferramentas que me mantêm limpa, mas a arte me mantém viva.”

Na contramão do senso comum que associa o funk e o baile funk ao uso abusivo de drogas e criminalidade, Lalão encontrou no funk uma ferramenta de sobriedade, trabalho e, para além disso, um sonho. O funk é o projeto de uma vida inteira de muita gente. O baile funk é a manifestação cultural mais potente do país, uma prática que sobrevive década após década, frente à repressão do Estado. E nas caixas de som, o baile funk é de onde saem tendências que vão emplacar no mainstream alguns meses depois – algo como um teste criativo do bom gosto popular para DJs e produtores musicais. Socialmente, o baile tem como base o respeito e aponta para o futuro junto com uma juventude que é plural, cisgênera e transexual também, hétero, lésbica, gay e assexual. É uma juventude moldada pela sua autonomia de tomar a rua e, portanto, com a chance de tomar o mundo.

Loading