Zudizilla entre fins e inícios

“Esses três discos me curaram como se fosse terapia”; a trilogia iniciada pelo rapper gaúcho em 2019 se encerra com o disco “Zulu: Quarta Parede (Vol.3)”, lançado hoje (07/07)

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Fotos: @noenajera_

A quarta parede é como uma divisória imaginária que separa o espetáculo do público. Quebrar essa barreira faz com que o personagem, que vive no universo retratado no filme, peça ou quadrinho, fale diretamente ao espectador, com a intenção de misturar o real e ficcional. Essa técnica foi uma das inspirações de Zudizilla para finalizar a saga de Zulu, um personagem/alter ego que tem sua história concluída no disco Zulu: Quarta Parede (Vol. 3), lançado hoje (07/07).

Como forma de lidar com suas questões internas, traumas e aspirações, o artista pelotense desenvolveu a saga de Zulu, dividida em três volumes: De Onde Eu Possa Alcançar o Céu Sem Deixar o Chão (2019), De César a Cristo (2022) e Quarta Parede (2023) – o Volume 2, inclusive, foi reconhecido como o melhor álbum do ano de 2022 pelo Prêmio Rap Brasil. Ao longo dos discos, é possível acompanhar a evolução das problemáticas do personagem e da sonoridade de Zudizilla. “Dentro da trilogia estava planejado ter um primeiro momento em que fosse meu cartão de visita; o segundo onde eu fosse me aproximar mais do mercado; e no terceiro conseguir trazer aquilo que eu gosto com aquilo que eu faço”.

Para além da narrativa, a ópera preta de Zulu foi a forma que o artista encontrou para se entender como pessoa. A saga serviu como expurgo para frustrações e revoltas, ao mesmo tempo em que clama por coletividade, dignidade e liberdade. “Esses três discos me curaram como se fosse terapia”, reflete o artista.

“Vai ser uma despedida difícil desse personagem, mas ele só morre para minha narrativa musical e vai viver para sempre nas músicas”

Com 17 faixas, e colaborações de Don L, Luedji Luna, Tuyo, Paula Lima, Galo de Luta, Fúria, Melly, Lino Krizz e Shuna, o disco lançado hoje (07/07) mostra o conflito entre as personas internas, como nas faixas “Tempo Ruim”, “Sem Sono” e “O Preço da Guerra” – ao passo que celebra suas conquistas e parcerias e projeta novos objetivos, como em “God Bless”, “Groove ou Caos” e “Thetahealing”. A última parte da trilogia também representa o momento em que Zudizilla mais explora sua versatilidade musical, misturando elementos de hip hop, nu jazz e R&B.

Zulu: Quarta Parede finaliza a saga e abre caminhos para Zudizilla seguir experimentando. “O final da Saga Zulu não é o final do Zudizilla. Na verdade, é o início de algo que eu quero fazer e construir enquanto estética sonora”. Enquanto viajava pela Europa para realizar as primeiras apresentações do disco novo, Zudizilla falou com o Monkeybuzz sobre o lançamento e o final da trilogia.

Primeiro eu quero saber como está a vida, como está a viagem?

Cara, tô achando bem louco! Tem lugares que já passei, em alguns a galera conhece o som; em outros, o pessoal nunca tinha escutado meu trabalho e acaba entrando em contato. Estou dando prioridade para cantar as músicas novas do disco e ver a percepção das pessoas – isso tem sido bem satisfatório. Agora quero saber como vão receber meu som no Brasil. Desde que fiz o Volume 1, sabia que Volume 3 seria o meu preferido. Essa é uma trilogia que eu já tinha o tronco dos volumes definidos, sabia que no Volume 3 eu já teria experiência e expertise suficiente para ser mais sólido na proposta. É um disco em que eu produzi mais coisa e fiquei próximo da construção dos instrumentais.

É até uma coisa que eu quero te perguntar. Quando conversamos ano passado, senti você um pouco relutante sobre o Volume 2, e até me afirmou que não era um dos seus melhores trabalhos. Como você enxerga ele e o Volume 1 hoje e o que você tem a me dizer sobre o Zulu: Quarta Parede?

Eu achava que o Volume 1 tinha que ter recebido os prêmios que Volume 2 recebeu. O Volume 3 acho que é a fusão desses outros dois momentos em algo que eu realmente gosto de ouvir, produzir e que sinto a necessidade e saudade de ouvir. Eu sou esse artista, acima de tudo, eu faço coisas que sinto falta. Dentro da trilogia, eu planejava ter um primeiro momento em que fosse meu cartão de visita; o segundo, eu me aproximaria mais do mercado; e no terceiro, conseguir trazer aquilo que eu gosto com aquilo que eu faço, sem me distanciar das pessoas para não ficar cristalizado nesse lugar de artista conceitual, que é onde geralmente eu fico. De alcançar as coisas que eu alcanço sem dinheiro de ninguém. Cheguei a São Paulo sem pai nem mãe, fudido, sem dinheiro para nada e consegui chegar e estabelecer uma carreira, que eu enxergo como promissora. Para mim, é muito bom.

Mas acredito que foi essa aproximação com o mercado no Volume 2 que fez com que a galera percebesse minha potência como artista, escritor, MC e como alguém que pode ceder peças importantes de mercado. Quando eu recebi o prêmio de melhor disco do ano de 2022, foi uma surpresa até pra galera que estava apresentando, mas eu já esperava que isso fosse acontecer. Claro que sempre é uma surpresa e alegria, mas abre o precedente para entender que números não significam música e só música significa música. Eu me sinto mais maduro, mas eu ainda não cheguei ao lugar que eu quero chegar, muito por uma questão de possibilidades, ferramentas, mecânicas, logísticas e financiamento. Mas o final da Saga Zulu não é o final do Zudizilla. Na verdade, é o início de algo que eu quero fazer e construir enquanto estética sonora.

Como é essa relação entre ter que entregar pro mercado e ser sincero consigo?

Acho que isso define muito bem o conceito de Quarta Parede. A quarta parede é uma estratégia em que o personagem passa a dialogar diretamente com o espectador. Com o Zulu, consigo trazer minha vivência  falando de um lugar onde não estou, não pertenço e não estou mais, mas faz parte da minha caminhada. Essa pergunta que tu me fez… É exatamente sobre isso que o disco fala, sobre essa questão de se manter real dentro de um persona e da necessidade de ter esse persona para aquilo que o sistema e a indústria pedem. No momento, não sou o cara que tem poder suficiente para ir contra essas exigências. Adoro a galera que cria o personagem e vive ele 100%, mas é algo que não consigo fazer. Não consigo abandonar minha vivência, meus amigos e as histórias. Mas, se é preciso criar personagem, vou trazer todo espectador pra dentro desse filme. Sou um personagem e todo mundo é parte desse roteiro. Ou eu serei real e vou ver tudo de fora, do lado de todas as pessoas que curtem meu trabalho. Então, chega um momento em que as pessoas que acessam minha obra estão dentro dela junto comigo, a única diferença é que eu vivenciei a parada.

Muitas músicas já estavam prontas desde 2017, certo? Como foram as modificações que rolaram ao longo desses anos?

Eu digo que o Volume 1 saiu e estava 100% pronto, o Volume 2 eu tinha 70% escrito e o Volume 3, uns 60% pronto. Eu produzo, então, estou diariamente absorvendo novas dinâmicas. Não quero estar extremamente fora do mercado, quero ser eu dentro do mercado. Para isso, eu preciso entender e admitir que tem muita coisa importante sendo produzida e isso vai servir como material de estudo para mim. A questão de produção é um pouco mais fácil para mim, o mais difícil é materializar. Para fazer um disco de 17 faixas eu gravei muito mais. Inclusive, as pessoas que compraram o merch antes de sair o disco foram recebendo o número de rastreio junto com algumas músicas que não entraram no disco. É um processo que se faz passo a passo, apesar de eu já ter o tronco. É como se fosse um bonsai: vou doutrinando e podando para qual lado vai, quanto vai crescer e o quanto vai inflar. Adoro criar, ter ideia, adoro levar as pessoas para enxergarem o mundo a partir dos meus olhos.

O Zulu é esse personagem principal da Ópera Preta, mas ele também é um pouco da sua vivência como Zudizilla. Como o Zulu te ajudou a lidar com os seus desejos e inseguranças?

Eu assinava Piripac por causa de uma música do RZO quando fazia grafite, mas a galera sempre falava que era muito grande. O Zulu em si me deu um caráter muito grande dentro de uma questão de para qual lado eu vou levar a minha arte. Passei a pintar pessoas pretas, estudar culturas e me entender como afrodescendente. Tudo isso graças a esse personagem Zulu, que me abriu os olhos e portas para dentro de mim, pro meu autoconhecimento. Hoje em dia, sou muito mais Zulu do que Julio César, e o Zudizilla é o cara que capitaneia tudo. Vai ser uma despedida difícil desse personagem, mas ele só morre para minha narrativa musical e vai viver para sempre nas músicas. Vou continuar sendo Zulu, porque toda vez que eu descer para Pelotas, ainda vou ser reconhecido por esse apelido. A forma de finalizar esse disco pra mim está sendo minha masterpiece, é o final para os outros, mas, para mim, é só o começo. Parece que agora achei a chave da porta. Eu andei um tempão para chegar à porta e achar a chave. Agora achei, girei a maçaneta e vou ver o que tem.

“[Fazer um disco] É como se fosse um bonsai: vou doutrinando e podando para qual lado vai, quanto vai crescer e o quanto vai inflar. Adoro criar, ter ideia, adoro levar as pessoas para enxergarem o mundo a partir dos meus olhos”

Nessa nova fase, o que te deixa inseguro e com medo e o que te dá coragem e motivação?

O que me deixa inseguro é a música andar pouco. Nem sempre tem a ver com criatividade, talento e possibilidades do artista. Tem muito mais a ver com quem está por trás de ti impulsionando e o quão sociável você é. Isso me deixa com um pouco de medo porque eu sou uma pessoa tímida, não sou um cara muito sociável. O Rio Grande do Sul me fez um preto extremamente rígido e difícil de acessar, já tomei muita porrada da vida  e para não tomar mais eu acabei levantando meus escudos – e dificilmente eu consigo baixar. Eu tenho um pouco de medo de que essa minha conduta atrapalhe aquilo que eu posso ser. Mas o que me deixa feliz é que eu consigo garantir na caneta, na produção e trazer isso para vida vai me dar possibilidade de enxergar o resto da minha carreira. O que me deixa tranquilo é a possibilidade de futuro e o que me deixa com mais medo é o presente que ainda não aconteceu.

No meio disso você fala muito do desejo de ser comum. Como você definiria o ‘ser comum’?

O Zulu vive a saga do herói para tentar ter experiências normais, se permitir ao amor, ser superficial, dançar e sorrir em meio caos. Esse personagem passa por diversas situações para tentar se tornar um homem comum. E a gente sabe que sendo preto no Brasil, e no mundo racista que vivemos, para ter experiências comuns tu tem duas opções: ou batalhar muito ou assumir que a ignorância é uma benção. Essa segunda opção vai dar certo até o momento em que você vai se tornar alvo da sua própria ignorância. Mas quando eu falo de ser um homem comum, eu quero que as pessoas enxerguem que essa trilogia é que para, no final da caminhada, haja a oportunidade de desejar, amar, errar, de se permitir e curar traumas. Uma coisa curiosa, é que a voz da terapeuta em “H.E.R” é minha, sou eu falando e modulando a minha voz em um programa de inteligência artificial. Esse é um lance muito importante. Esses três discos me curaram como se fosse terapia. Então, na verdade, quem está falando comigo é o próprio disco.

O “Preço da Guerra” é uma das faixas mais tensas entre o personagem e o humano. Como foi a produção?

Eu já tinha a ideia de colocar alguém pra fazer o refrão. Essa faixa tem os dois lados, no primeiro é meu personagem e no outro o Zudizilla, que é um cara mais consciente e entende que o sistema cobra 10 vezes mais, independente do lado que eu for. Eu tenho que ter esses dois lados da consciência para que as coisas façam sentido pra mim.

Na faixa você ainda fala: “Baby, eu te amo, mas não sei se te amo”. Quero saber se foi e é difícil para você lidar com o amor?

É muito. É muito difícil me permitir ser uma pessoa amada e me permitir externar o amor, porque, quando isso aconteceu, me foi nocivo. É como se eu estivesse mostrando um grande ponto fraco. E o trecho “eu te amo, mas não sei se te amo” reforça que eu ainda tenho muita coisa para fazer, eu ainda tenho uma meta para alcançar, tem dinheiro que eu preciso ganhar, tenho uma mãe para ajudar e uma família que depende em alguns momentos de mim. São fatores que balançam no momento de expressar e sustentar o sentimento.

Agora sobre o interlúdio “Tempo”, tem a participação do Galo de Luta. Como rolou essa parceria?

O Luke, que me ajudou a produzir esse disco, estava gravando umas paradas com o Galo e fez essa ponte. Nisso, eu pedi para ele uma poesia para colocar no disco de alguma forma. Quando ele entregou, eu sabia que ia encaixar antes da música “Tempo Ruim”, justamente por os nomes dialogarem. Mas a parceria foi muito um presente do universo.

Se Zulu: Quarta Parede fosse uma cena de um filme, qual cena seria?

Nossa, seria o Birdman. Não seria só uma cena, seria todo o filme do Birdman, porque ele é um cara que há muito tempo fez sucesso, mas acabou renegado aà um teatro de segunda e durante o filme inteiro tem essa dualidade de não saber se ele é um super-herói, se interpretou esse personagem – ou se ele é apenas um cara maluco. Acho que esse lance de brincar um pouco com a galera e trazer o espectador para dentro da obra é o poder maior da arte. Não é tocar, não é o sentimento, não é falar a verdade… Tu fazer o espectador participar da sua arte é o poder máximo da arte.

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ARTISTA: Zudizilla