Anelis Assumpção: protegida, salgada e corrosiva

Com o disco “SAL”, a artista apresenta possibilidades de correção da hegemonia da indústria musical, celebra o talento de mulheres negras e tempera a canção brasileira como ninguém

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Fotos: Camila Tuon/Betania Dutra

O disco vencedor do Prêmio APCA 2022, da Associação Paulista de Críticos de Arte, na categoria “Produção”, não teria sido lançado se não fosse pela disposição de Anelis Assumpção de encarar uma campanha de financiamento coletivo, e de completar a meta não atingida com suas próprias reservas pessoais. Ser uma das agentes culturais mais brilhantes da música contemporânea brasileira não é sinônimo de segurança financeira para o exercício de seu ofício artístico. Ainda mais enquanto artista independente. Sobretudo, mulher negra.

SAL (2022), quarto álbum solo da cantora, compositora, escritora e percussionista paulistana, vinga pelo devir da vida; devir que é herança genética e ancestral da comunidade preta pelo mundo e que se manifesta em tudo que ela é capaz de criar, produzir e concretizar. O imperativo da morte não parte dessa cultura. Vivemos apesar dela, buscando possibilidades de existências mais suaves, salubres e coloridas, mas sabemos bem ser e realizar mesmo em condições adversas.

A obra convoca o ventre. Essa é uma das partes do corpo a qual o disco mais convida a balançar – seja pelo suingue irresistível de “Rasta”, pelo poder espiritual dos tambores de “Sinhá Sereia”, ou pela suavidade sinuosa de “Sangue Mioma”. É por onde filhas-mães nascem e gestam. Por onde corpos com vulva avisam do óvulo não fecundado, do corrimento, do sangue, do mioma, do gozo. Por onde sexo, trauma, crescimento e envelhecimento se entrelaçam.

Um dos melhores lançamentos da música brasileira em 2022 é fruto da teimosia taurina. É empretecimento em renúncia ao embranquecimento. É pacto de coletividade em contraponto ao individualismo endêmico. É união avessa à rivalidade. Em Tudo sobre amor: Novas Perspectivas, a professora, escritora e intelectual pública bell hooks  nos diz que “não há lugar melhor para aprender a arte do amor que numa comunidade”. E conclui: “O amor que criamos em comunidade permanece conosco aonde quer que vamos”. O mais presente registro de Anelis coloca isso em prática, ao se fortalecer na comunhão, na comunidade e na interdependência pelo afeto.

Levando a sério a máxima de “quanto mais amor, mais espaço”, que canta na faixa “Pouso de Ave Rara”, a artista povoa SAL com uma constelação de convidadas para as composições e coproduções. No primeiro time estão Thalma de Freitas, Marcelle, Marina Peralta, Céu, Liniker, Mahmundi, Josyara, Marina Luz, Iara Rennó, Ava Rocha, Tulipa Ruiz e Gustavo Ruiz; destaque para a composição de Serena Assumpção (1977-2016), irmã de Anelis, em parceria com Pipo Pegoraro. Josyara, Céu, Thalma e Mahmundi também sentam na cadeira da produção, junto de Luedji Luna, Jadsa, Maíra Freitas, Larissa Luz, Zé Nigro, Beto Villares e Curumin.

Anelis Assumpção é onipresente, atuando como diretora da obra, assinando a composição e coprodução de quase todas as canções. O projeto reconhecido pelo Prêmio APCA 2022 é baseado no trabalho de mulheres negras. Sim, aquelas mesmas que são esnobadas no Grammy ou nos line-ups de festivais, mesmo quando a headliner é uma mulher negra referência do neo soul.

O disco e seu ecossistema nos guiam nessa entrevista com a artista, que fala ainda sobre as mulheres no mercado fonográfico, seu amor pelo azul e sua relação com seu ventre.

Anelis, em que momento você percebeu que seu quarto disco estava a caminho?

Eu acho que ele começou a querer acontecer, talvez, no final de 2020, primeiro ano da pandemia. Fiquei muito tempo inconformada, achando, assim como todo mundo, que a gente ia normalizar a volta da vida mais rápido do que foi. Quando a pandemia iniciou, eu tinha muitos shows do [disco] Taurina (2018) marcados, tinha uma turnê fora do Brasil. Conforme foi se desenhando um mundo onde não ia voltar nada de onde tinha parado, comecei a escrever mais, por conta de estar em casa, mais disponível pras minhas próprias pesquisas. E SAL começou a acontecer. Acho que todo mundo se sentiu um pouco assim, né? Precisando achar onde canalizar a energia criativa.

Comecei a entender as lives e perceber que as potências das trocas podiam continuar acontecendo de uma forma que a gente não conhecia. E era uma sensação mais ou menos parecida com estar na televisão.  Você não tem muita ideia do alcance real, né? Foi muito massa porque quando a gente começou a fazer live, fui percebendo que o público desses shows que foram derrubados estavam lá, além dos que nem estavam nas possibilidades de shows. Você pensa muito sobre a rede, e o disco foi provocado por essa ideia, por essa necessidade e essa realidade que tava acontecendo de existir através de criações coletivas, de encontros não presenciais. Comecei a compor virtualmente com as mulheres; algumas estavam em outras cidades, outras na rua de cima [da casa de Anelis].

Parte do disco foi financiado via crowdfunding. Esse tipo de financiamento é bem desgastante. Você já havia realizado algum anteriormente? Ter decidido fazê-lo impactou sua autoestima e segurança de alguma forma?

Para o primeiro disco da DonaZica, Composição (2003), não existiam as plataformas de financiamento, mas organizamos um mailing e apresentamos um sistema de cotas com unidades dos CDs para quem quisesse ajudar com os valores que apresentamos. Foi uma pré-venda. Mas foi a primeira vez que fiz um financiamento coletivo através de uma plataforma, propriamente dita, depois de muito ir atrás de marcas e tentar com projetos de leis, como ProAC.

Eu não fui aprovada em nenhum edital, na-da. Eu me inscrevi em uns 12. Então, falei: “Ah, bixo, eu não posso ter medo. Eu já fiz isso antes”. Essa roda é assim mesmo, ter feito uma vez um projeto de lei com a Natura foi um impulso, deu uma grande virada na qualidade técnica do que eu conseguia produzir por ter um patrocínio, mas óbvio que isso não ia garantir a estabilidade de ter apoios e patrocínios o tempo inteiro. Pensei: “É, voltei algumas casas, vou fazer um financiamento”. Era fazer o financiamento ou fazer um empréstimo pessoal, vender um carro, enfim. Mas esse disco tinha que sair;  tem uma hora que começa a ficar desesperador, porque o disco quer sair.

É muito, muito desgastante. Tem uma parte do trabalho que é ficar ali todo o dia “se vendendo”, dizendo “olha como eu sou legal”, “olha como o que eu tô fazendo é importante”, “olha que lindo que é”. E me dava um pouco de angústia porque o disco nem tava pronto. Além de ter que inventar subprodutos, é camiseta, é não sei o quê, cuidar dessas entregas, enfim. Tudo isso desgastou a minha relação com a minha equipe e me desgastou muito. Mas acho que o financiamento coletivo é uma possibilidade incrível de existência no mercado. Entretanto, também acho que o momento em que a gente pôs esse financiamento no ar foi muito disperso, tinha bastante coisa acontecendo politicamente, Copa do Mundo… E a gente acabou ficando um pouco refém da mídia social.

Depois eu fui entender que o Instagram também lê a plataforma de financiamento coletivo como uma rede social, logo, uma concorrente. E minha única plataforma de força pra divulgar algo meu é o meu perfil no Instagram. A gente começou a perceber que todas as postagens relacionadas ao financiamento eram muito baixas. E talvez esse também tenha sido um dos motivos pra não termos batido 100% da meta, a própria plataforma [de financiamento] alega essas mesmas coisas.

E como você se sentiu ao não bater a meta?

Ah, me senti muito, muito frustrada. Fiquei tentando entender… “Será que não faz nenhum sentido? Eu não tô vendendo camiseta e moletom, não é esse o meu trabalho… de repente virou isso?”. O dinheiro que eu recebi [do financiamento] não é só pro disco, também vai ser pra produzir o que eu prometi que ia entregar. Ele foi uma ajuda, claro, mas tive que fazer o que tava evitando e comecei a pegar meu dinheiro guardado, minhas reservas pessoais.

Mas não mexeu com minha autoestima porque eu gosto muito da ideia da coletividade. De poder existir de um jeito democrático, de um jeito que você só vai consumir se você gosta, se você quer. O financiamento é meio esquerdista, né? Você pode publicar o seu livro, você pode financiar uma pesquisa científica sua, pode sustentar diversos jornais e coletivos jornalísticos que existem através do financiamento coletivo. Gosto da ideia das pessoas quererem entrar em um coletivo, apoiar um projeto porque se identificam.

“O disco foi provocado por essa necessidade e essa realidade de existir através de criações coletivas, de encontros não presenciais”

E SAL, por acaso, estabelece alguma relação com a canção “Milágrimas”, letra-poema de Alice Ruiz, interpretada por seu pai, Itamar Assumpção?

[Me lança um olhar intrigada] Acho que sempre vai ter, de alguma forma, pelas esquinas do inconsciente. A Alice, obviamente, é uma das primeiras mulheres que me ensinaram a escrever. Tenho certeza que ela me influencia na hora de organizar a palavra, o pensamento pro texto, seja pra um poema ou um refrão. Parte desse lugar de ter lido muito a poesia dessa mulher. Eu tive esse privilégio de conviver com Alice, de vê-la escrevendo.  Mas em nenhum momento pensei em “Milágrimas” e SAL como uma inspiração direta. Essa canção é mais doce, mas também tem esse lugar de “deixa eu te dar a mão aqui, vai?”, “a gente vai dar um jeito, juntas, pra você sair dessa merda” (risos). Talvez tenha essa intersecção também com SAL.

Pergunto pela lembrança do trecho “sinta o gosto do sal, do sal, do sal”.

Imaginei que isso fosse acontecer. O release do disco tinha o título, “SAL”, e as aspas “sinta o gosto do SAL”, mas pedi pra tirar por achar que daria confusão.

“É muito prazeroso escutar a soma das sonoridades de cada instrumento e, atrás daquele instrumento, tem um corpo, é quântico mesmo. E é tão bonito quando amalgama. É físico. A música não é uma partícula isolada. Quanto maior a orquestra, mais emocionante é o som que ela produz. Tudo isso sempre me interessa. É uma parte da coisa, não a coisa toda. É impossível e chato ser a coisa toda”

Faz sentido, mesmo. Anelis, parece dar muito mais trabalho fazer um disco com tantas parcerias. Mesmo assim, o coletivo parece se impor ao seu fazer artístico. Por quê?

Cara, acho que eu não consigo fazer de outro jeito, não. É meio viciante. Acho que tem a ver com a minha personalidade; tem a ver em como eu acredito em tudo, com a forma que eu educo os meus filhos, como oriento e crio pessoas com um pensamento de que elas são uma parte de um todo, que, lá fora, a gente tem uma engrenagem que precisa funcionar, sobre como é que a gente se adapta, mesmo discordando de algumas regras.

É muito prazeroso pra mim quando a gente tá ensaiando e eu começo a escutar a soma das sonoridades de cada instrumento e, atrás daquele instrumento, tem um corpo, é quântico mesmo. E é tão bonito quando amalgama, sabe? É físico. A música não é uma partícula isolada. Quanto maior a orquestra, mais emocionante é o som que ela produz. Tudo isso sempre me interessa. É uma parte da coisa, não a coisa toda. É impossível e chato ser a coisa toda. Eu não consigo não abrir, abrir e abrir pra cada vez mais gente…  É a taurinice, né? Bate a cabeça, mas volta no mesmo ponto, “já passei isso aqui antes, essa parada é meio difícil, por que eu voltei pra cá?”, (risos).
Tem a ver com o próprio bicho, touro e vaca não andam sozinhos nunca. Acho que nesse quesito eu sou muito taurina. É muito importante pra mim dividir as incertezas, dividir as certezas, os conceitos… é claro que a minha música tem uma característica que é minha, mas porque eu também consigo trabalhar com pessoas que respeitam isso, que ouvem e assimilam as minhas características, transformam isso em musicalidade, impulso. É o mais importante e sempre vai dar mais personalidade ao disco. Tem muita subjetividade. E a gente tá deixando ela de lado demais, sempre focando muito no sucesso.

E o que é o entendimento do sucesso do mundo contemporâneo? É você ser uma pessoa liberal. Ganhar mais, não criar vínculos, ficar extremamente prática e profissional, criar volume de trabalho…O mercado é tão cruel. Acho que estamos em um dos momentos mais gélidos porque a gente vê o esvaziamento do pensamento crítico, da arte como uma potência, um braço da educação, da formação de um povo. Tá muito triste. Então, é mais legal seguir triste acompanhado de muita gente, por mais trabalhoso que seja (risos).

Cada faixa de SAL é coproduzida por pessoas diferentes. Como você distribuiu as composições e conduziu o andamento dessa obra tão múltipla e tão coesa?

Algumas produções e composições se cruzam. Compus uma música com a Josyara [“Pouso de Ave Rara”] e a convidei pra produzi-la. A minha música com a Thalma [“Violeta Blue”], convidei a Céu pra produzir porque, musicalmente, é uma melodia muito bluesy, que é uma ambiência, um lugar de sonoridade, expressão e pesquisa da Céu. Ela era a pessoa mais adequada pra produzir. Já a minha música com a Céu [“Benta”], que a gente compôs juntas, eu achei que dar pra Luedji produzir seria mais interessante pra trazer uma outra maternidade, de uma mulher que tava recém-chegada na minha vida, e que é mãe.

Foi rolando muito intuitivamente. A Thalma que produziu a “Mandeiro” porque, talvez, ela tenha sido a pessoa com que mais eu tenha trocado sobre esse disco. Foi uma coisa bem de irmã mesmo, muito pareadas de assuntos, então chamei pra produzir a música que é da minha irmã no disco.

A direção foi toda minha, fiquei ali conduzindo as pessoas, as compositoras, as autoras, nem todo mundo tava envolvido cantando no que tá produzindo, nem todo mundo que compõe participa da faixa, essas escolhas foram vindo porque elas precisavam fazer sentido.  Quando chamei a Céu pra produzir o “Violeta [Blue]”, ela fez um arranjo com vocais que a princípio era só pra ela criar uma ambiência harmônica, e depois a gente achou que ia ficar muito mais bonito se fossem os vocais em vez de instrumentos naipeados que dessem essa sensação de abertura. Isso fez com que a música tivesse a cara dela e a minha. Jadsa veio com uma picância, pra trazer uma coisa mais azeda pra uma canção que tava muito soft.

Fui fazendo essa direção, talvez essa parte tenha sido um pouco mais cansativa. Em alguns momentos, não tinha muito com quem dividir as dúvidas, né? Eu dividia com cada produtora, tava dividindo com a Céu as nossas questões com Violeta [Blue], mas as minhas questões eram em relação a onde Violeta tá no disco, como eu posiciono a tonalidade das outras coisas que vão se cruzar com essa dentro do álbum. Pra esses lugares, às vezes, eu só tinha eu mesma pra me bastar nas perguntas e respostas.

E como você busca exercer o papel de diretora?

Entender a minha capacidade de dirigir não é mais difícil pra mim. O que é difícil – e talvez eu precise entender como economizar energia – é que a pessoa que dirige tem que estar muito certa do que ela quer. Acho que é um exercício que faço de visualizar, antecipar as possibilidades da ordem do disco, de uma cena, agora que eu tô na fase do show. Acho que vou ficando cada vez mais experiente em criar as possibilidades antes, sozinha, fazer esses desenhos mentais pra dizer: é isso que eu quero. Pra conseguir chegar e falar que é o que quero.

Quando a gente tá certa, a gente orienta e dirige bem, e as pessoas que são dirigíveis gostam disso. Eu adoro ser dirigida em fotografia, na televisão, eu aprendi a ter escuta pra alguém que sabe o que quer de mim. Essa é a coisa. Quando eu dirijo muita gente, eu tenho que saber o que eu quero de cada pessoa. O que cada um pode dar, como eu posso puxar mais um jeito que eu sei que a pessoa tem. Uma hora você tem que saber quando chega de opiniões. Que vai ser do jeito que você tá dizendo, que é a forma como você quer. Acho que quanto mais a gente sabe o que quer, mais a gente dirige bem quem tá trabalhando junto. O problema de uma direção talvez frouxa, mais falha, seja a própria dúvida do trabalho, né?

SAL tem uma aura sensual, úmida e dolorida. Quando penso no cerne do disco, a figura de um ventre me vem à cabeça enquanto símbolo capaz de mobilizar, ao mesmo tempo, vida e morte, sabor e remédio. No seu momento presente, como tem sido sua relação com o seu ventre?

No momento presente, presentérrimo, eu estou sangrando (risos). Eu tô até meio molinha, sangrei bastante de madrugada. Mas é uma relação que nunca é fixa, né? Talvez eu esteja num momento em que eu consegui relaxar e respeitar um pouco mais a própria natureza do meu ventre. Eu tive um problema muito chato e grave em que eu tive que ir ao hospital toda a menstruação pra tomar reposição de ferro ou bolsa de sangue, porque eu tinha hemorragias. Fiquei muito tempo investigando o que era, como tratar… Tinha fase de melhora, mas comecei a ficar com medo; medo de menstruar, de não poder sair de casa. Era de um nível de eu entrar num táxi e quando eu chegava no lugar, o banco do carro do cara tava todo manchado de sangue. Podia acontecer, mas também podia não acontecer. Fiquei investigando até num lugar mais abstrato. O que é que eu tenho? Por que meu útero está ferido? O que é essa ferida? O que elas são? Como eu trato elas? A ferida, mesmo, do âmago, não a cauterização da matéria. E acho que são feridas incuráveis, na verdade, não são só minhas; são da minha mãe, das minhas tias, da minha irmã que morreu. Isso começou a acontecer de um mês pro outro e durou quatro anos. Cheguei a marcar quatro cirurgias que eu não pude fazer, por conta da pandemia, por ter pego Covid e, depois, H1N1. A minha ginecologista me falava: “Cara, seu corpo realmente não quer ser operado, né?”. Então, hoje, te respondendo, eu tô um pouco mais em paz com o meu ventre e comigo mesma.

Você teve um mioma, foi isso?

Eu tenho ele ainda, mas ele tá quieto (risos), sei lá o que aconteceu. Ela [a médica] acha que nasceu outro em cima, e que isso que tá segurando, como se estivesse tapando o buraco aberto do primeiro, que é [do tipo] intramural.

Eu tô um pouco mais em paz, menos assustada daquela rotina, e agora tentando encaixar e entender. Eu vou fazer 43 anos, eu ainda penso se eu vou ter um bebê… Vou ter esse gás ou não? Por outro lado, eu passei por essa experiência duas vezes, amamentei… Talvez seja a primeira vez que eu vá pensar sobre planejar a maternidade de alguma forma. Tô nessa fase, entendendo isso… Tá tudo velho, né? Será que eu tento depois de tudo isso? Meu útero está super machucado. Será que meu corpo aguenta um filho dentro? (risos). Muitas perguntas…

“No momento em que o disco ficou pronto, eu fui invadida por um sentimento de satisfação que não tinha a ver com alívio pela realização, por ter parido meu disco. Era uma satisfação em poder criar a abertura de novas possibilidades de existir no mundo”

Muitas! Anelis, queria puxar para as suas composições, que estão mais sinestésicas do que nunca. As cores são mencionadas em muitos momentos, viram adjetivos para experiências. E você também escreveu que Kika Carvalho, artista autora da obra que é capa de SAL, “persegue o azul” assim como você. Quais eram suas investigações poéticas e visuais pra essas composições? Qual o papel do azul em tudo isso? 

[Abre sorriso e ri] O azul é a minha cor favorita, acho que eu o persigo mesmo, num sentido quase… ancestral? É uma coisa que vem desde que eu sou muito pequena. E acho que todo mundo tem relações assim com cores ou com coisas, formas, cheiros, e eu escrevo e uso o azul como uma palavra, uma possibilidade de uma palavra que, sim, pode ser um adjetivo, pode ser um gosto. Eu gosto da ideia da cor como um complemento quando eu tô escrevendo. Não só o azul, mas ele é o que aparece mais, quando eu vejo, ninguém chamou e já tá ele lá (risos). Mas também porque eu acho que tem muitos azuis, né? E a história sobre a descoberta do azul também é muito interessante, me apaixonei muito. Eu comecei a separar as músicas do SAL a partir de uma compilação de textos e poemas escritos que eu tinha pra um livro que ia se chamar “Azul”, mas aí eu desisti do livro e fiz o disco (risos).

Através de seu disco, você coloca em prática uma subversão na indústria da música brasileira ao centrar a direção e produção musical na mão de mulheres, sobretudo mulheres pretas. Que transformações essa experiência, agora finalizada enquanto disco, causou em você?

Eu acho que ela vem causando ainda, mas no momento em que o disco ficou pronto, em que eu consegui olhar e falar “caralho,deu certo”, eu fui invadida por um sentimento de satisfação que não tinha a ver com alívio pela realização, por ter parido meu disco. Era uma satisfação em poder criar a abertura de novas possibilidades de existir no mundo. Eu não tô inventando isso, essas mulheres são produtoras. Elas estavam inseguras, elas se puseram em dúvida também, porque a gente está sendo estimulada a se boicotar, a ter a síndrome da impostora, porque a gente não tá naturalizada ainda pra ocupar esses lugares e esses cargos com segurança, com respaldo. Foi muito satisfatório poder perceber que a gente precisava mesmo fazer isso junto, fazer isso de uma forma mais horizontalizada, antes de ocupar esse espaço de fato e de direito em projetos “lá fora”, porque “lá” não vai ser horizontalizado.

É importante poder mostrar pras pessoas que eu posso fazer uma trilha de uma série da Netflix, que a Josyara ou a Jadsa podem fazer a trilha de um filme. Esses núcleos são absolutamente masculinos, quem faz os singles das pessoas que estouram, os jingles de publicidade, as trilhas sonoras de filmes e séries. É um mercado gigante no Brasil que é ocupado 100% por homens, 98% brancos. Como eu vou ser uma excelente produtora se eu nunca tive a oportunidade de produzir?

A satisfação em entender que todas as mulheres que produziram comigo nesse disco, em níveis diferentes, em linguagens diferentes de produção, são altamente capazes de encarar a trilha sonora da próxima novela das 9 ou assinar a curadoria musical do espetáculo do Rei Leão, sabe? Cada uma delas já faz esse trabalho [de produção] em sua própria obra, por isso que elas me chamam a atenção e que quis que elas trabalhassem no meu disco, porque elas sabem produzir muito bem. E a gente precisa dar oportunidade. Não tem outro jeito.

Inclusive dar oportunidade de fazer mal feito. Várias vezes eu vou escrever mal até eu escrever bem. Eu preciso ter oportunidade. É muito difícil. Isso que a gente nem saiu da etapa de se firmar como compositora! Melhorou, mas ainda é um grande tabu escrever. Eu não sou convidada pra compor pra intérpretes grandes, por exemplo, apesar de compor e produzir ser minha profissão. E ela não precisa ser o tempo inteiro carregada da minha subjetividade artística. Eu sou perfeitamente capaz de escrever uma canção pra Pabllo Vittar cantar. Me fala qual o tema, sabe? Pra onde você quer ir? A gente vai falar de quê? Eu sento e escrevo. Eu sei fazer isso, estudo isso, me dedico a isso, minha pesquisa é essa. É muito louco porque a gente tem que ficar firmando ainda o lugar de compositora, e, agora, então, de produtora. Mas vai acontecer. Esse disco me deu muita alegria, mesmo, porque só a mulheridade  é a única energia possível pra eu fazer o disco que eu fiz. Só, mais nada (risos).

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