Barra por Barra: funk, exportação e vanguarda

Uma conversa com alguns dos artistas presentes na compilação “funk.BR” para entender como eles sentem esse novo momento do gênero

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Barra por Barra é o espaço no qual o João aparece por aqui às sextas-feiras para falar de hip hop e de tantas outras coisas que vêm junto com a (enganosamente simples e definitivamente sedutora) ideia de “falar de hip hop”. Ritmo, poesia e opinião – com o João.

 

O funk, entre muitas outras coisas, é a trilha sonora daqueles sob a maldição de serem cronicamente online, pelo menos no Brasil. Ainda que você não queira, o ritmo vai estar lá, seja nas trends no TikTok, na presença cibernética do DJ RaMemes ou nas reviews da Pitchfork — e, consequentemente, em postagens comparando as notas que a publicação já deu para trabalhos do gênero versus o disco mais recente da Taylor Swift.

Pessoas vão até mesmo brigar pelo pioneirismo na importação do funk: de um lado, fãs da global Anitta, de outro, aqueles que relembram “Bucky Done Gun”, canção de M.I.A e Diplo que sampleia a OG Deize Tigrona. O fato é que o funk vive um novo momento de explosão da exportação, mas, dessa vez, maior — diferente dos atos isolados prévios — e mais independente do que nunca, sem as amarras de grandes gravadoras.

Como brasileiros, consumidores ou produtores de funk, não podemos nos deixar ser feitos de idiotas. É claro que é muito legal que a maior publicação especializada em música no mundo fale sobre um ou outro disco de funk, mas isso não pode ser o suficiente. Não deveria ser lá que você vai para (finalmente) perceber que seu país está produzindo a vanguarda da música eletrônica hoje.

Pode ser difícil de admitir, mas num geral, nós brasileiros somos obcecados por internet e validação externa — uma combinação perigosa. Basta ver a comoção ao redor de migalhas de atenção, como o caso recente de Vincent Martella, ator esquecido da série Todo Mundo Odeia o Chris, ou os trocentos canais de gringos reagindo a produtos culturais brasileiros da maneira mais rasa possível.

Se você mergulha no Tik Tok ou no SoundCloud, a confusão é ainda maior. Por lá, é comum ver o Bruxaria, Mandelão e outros subgêneros do funk paulista serem confundidos e definidos por gringos como “Brazilian Phonk”, como se fossem produtores brasileiros dando a nossa cara para um gênero americano. Não soa esquisito e meio colonial, para dizer o mínimo?

Por outro lado, algumas iniciativas que olham pro funk de maneira mais aprofundada e caprichosa estão começando a surgir. É o caso da compilação funk.BR, a primeira compilação internacional do funk de São Paulo, realizada pela rádio de sede londrina NTS. Com mais de 100 programas de rádio e artistas do mundo todo, a plataforma é referência global para DJs, produtores e fãs de música.

funk.BR traz ao mundo um catálogo atual do que há de mais inovador e interessante em bailes de rua e estúdios das favelas e periferias da maior cidade da América Latina. Do automotivo ao agressivo, do ritmado à bruxaria, se destaca a qualidade na curadoria dos artistas, envolvendo desde pioneiros, como DJ P7, até nomes presentes num circuito mais alternativo, como a dupla Deekapz, além de diversos DJs emergentes.

Conversei com alguns dos artistas presentes na compilação para entender como eles sentem esse novo momento do funk.

DJ P7 (DJ P7 & MC PR – “Automotivo Destruidor, P7 Vai Te Destruir”)

Como você percebe esse novo momento de exportação do funk, especialmente o de São Paulo?

Independente do meu gosto, ainda é o funk de SP que está sendo visto. Mas tem que ter uma atenção dobrada pro Ritmado, porque eu acredito que é mais fácil trabalhar com uma ferramenta que tem mais aceitação de outros públicos, diferente do Bruxaria, por exemplo. O Mandela, Mandelão, que são ritmos da Zona Norte, Zona Leste, a gente lutou muito por esse movimento. A seleção de produtores para esse projeto foi mais para um lado [Bruxaria, Submundo], até por isso acabei fazendo um Automotivo.

Muita gente lá fora não conhecia funk, então estão conhecendo Phonk e achando que é isso. Tudo que você joga [na internet] com esse nome, vai aparecer coisa nada a ver com o que a gente faz. Nem o Bruxaria, que é o estilo da Zona Sul, é Phonk. Nunca vi [Phonk] tocar em festa, nunca vi tocar na rua. O projeto foi foda, esse alcance todo, isso é muito importante pro funk. Tô muito feliz, não tô sendo ingrato, só que tem que entender que é uma cultura. Sobre o phonk – nunca, jamais, não gosto, ninguém gosta.

DJ Caio Santos (“Você Sabe”)

Fala um pouco sobre sua faixa presente na compilação: a qual subgênero ela pertence e como foi produzi-la?

A música que eu escolhi para essa compilação é uma coisa nova para mim, escolhi fazer um funk ritmado, mas no formato instrumental. Nunca lancei coisas instrumentais antes e é algo que com certeza vou explorar mais. O processo de criação foi um pouco complexo, estruturar algo sem voz é mais difícil, exige mais da criatividade para não ficar repetitivo. O processo foi basicamente assim: várias tentativas para poder chegar no que eu achava bom.

Como você percebe esse novo momento de exportação do funk, especialmente o de São Paulo?

Acho importante demais ter esse destaque lá pros gringos, mas de uma forma que eles entendam e valorizem nosso trampo aqui. Tô vendo várias pessoas tendo destaques lá fora, várias “Euro Tours” acontecendo, isso é importante, até para nossa própria valorização aqui dentro do Brasil. Sobre a compilação, acredito que a partir dela os produtores daqui vão começar a explorar a ideia de fazer música para que os gringos escutem também, mas, no momento, acredito que o pessoal ainda faça músicas pro público aqui dentro.

Paulo Vitor (Deekapz) (“Ritmado Mágico no Sumarézinho”)

Fala um pouco sobre sua faixa presente na compilação: a qual subgênero ela pertence e como foi produzi-la?

Essa faixa a gente meio que fez aos 45 do segundo tempo, porque a compilação da NTS já estava rolando. E aí a gente recebeu um convite do Jon, que é um dos caras que ajudaram a fazer essa compilação junto com o Felipe Maia e tal. A gente super pilhou porque a gente curte muito funk e a gente trabalha com muitas vertentes do funk. Pensamos em fazer um ritmado. O pessoal da Zona Norte [de São Paulo], Favela da Caixa, Jeeh FDC, eles têm essa característica de trabalhar muito com as percussões e dar um groove mesmo. [Na época] a gente estava fazendo o nosso disco num estúdio que fica no bairro Sumaré, por isso o nome.

Como você percebe esse novo momento de exportação do funk, especialmente o de São Paulo?

Acho que o pessoal lá de fora consegue fazer uma correlação do funk com a música eletrônica.  Acho isso tudo muito foda. Porém tem seus pontos positivos e pontos negativos. Ponto positivo: é um gênero brasileiro, a música nacional que está sendo reverberada. Consequentemente, outras pessoas do canto do mundo conseguem fazer e influenciar, traz o funk à tona, então isso, para o funk, é maravilhoso.

Mas o ponto negativo que eu consigo enxergar de primeira é esse lance também da inversão de valores do funk, que é justamente o que está acontecendo agora lá fora.  Para forçar uma visão de mercado e justamente “criar um estilo” — entre aspas, porque isso já está criado — para vender. O funk não é o phonk, é o funk. E aí tem subgêneros: o mandela, o ritmado, o submundo, o magrão, e assim vai.

DJ SAZE (“Uq Tenho que Fazer”)

Fala um pouco sobre sua faixa presente na compilação: a qual subgênero ela pertence e como foi produzi-la?

Costumo trabalhar com faixas mais ritmadas, procurando sempre percussões ou samples um pouco mais animados, diferente um pouco da bruxaria que usa aquela estética dark, aquela percussão um pouco mais aguda. Gosto muito da dança, da galera se amarrar.

É uma faixa que é 100% DJ Saze, então o planejamento para essa faixa foi entregar tanto a produção quanto a voz completa do artista DJ Saze, entendeu? Então eu fiz algo mais para mostrar o que eu trampo, quais são as minhas percussões, a minha métrica. Então, quem escutar esse trampo, escutar os demais, vai ver que tem muito a ver comigo. E a questão de botar a voz foi tanto de querer apresentar esse lado de caneta, mas também pela necessidade hoje que a gente tem no mercado, no qual [nem sempre] a gente consegue distribuir facilmente uma voz de um artista que já está consolidado, um GW, uma MC Pipokinha, etc.

Por conta da grande demanda deles mesmo, acaba se tornando um pouco distante daqui para a galera do underground. Então, normalmente quem tem essa liberação é alguém que já tem um pezinho fincado em alguma produtora e que acaba tendo um contato com a rapaziada que cuida dos artistas.

Como você percebe esse novo momento de exportação do funk, especialmente o de São Paulo?

Acho super interessante, bacana. Feliz demais pelo movimento! Tá andando e graças a Deus a gente vem seguindo e abrindo cada vez mais portas. Em relação aos gostos do gringo, vejo que eles conhecem muito da Bruxaria. Algo mais ritmado, puxando pra Zona Leste, uma Zona Norte não vejo tanto lá, não vejo a galera curtir tanto, mas talvez por conta de não ter chegado ainda de uma forma que a Bruxaria chegou, que um DJ Arana chegou, DJ Blake. Que lembra muito a música eletrônica que a galera se amarra.

De qualquer forma, é algo que podemos levantar a bandeira e se orgulhar e sentir que de pouco a pouco estamos lá, entendeu? Foi um projeto que eu vi ali muitos artistas, real, produtores de favela.

Posso estar errado, mas vejo muito mais do underground lá fora do que a galera que tem um trabalho feito por uma produtora. Isso é bom, cara, que o underground pise ali e crie seu um determinado espaço, porque infelizmente as produtoras têm seu monopólio, e elas chegando primeiro em qualquer espaço, obviamente é da escolha dela quem vai trabalhar ou não. É o que a gente passa muito aqui na cena de São Paulo: hoje são muitos artistas, poucas produtoras, então eles praticamente são donos do mercado. Acredito que essa mudança vai depender muito do nosso pé lá fora, entendeu? Tem mercado pra todo mundo, tem espaço pra todos.

OK, MAS E OS GRINGOS?

Em março de 2023, o pesquisador musical e jornalista independente americano Bill Differen publicou seu top 100 funks de 2023, todos eles com comentário e abarcando não somente grandes centros como Rio, São Paulo e Belo Horizonte, mas polos mais regionais como Juiz de Fora (MG) e Vila Velha (ES). A lista é extensa e parece exaustiva só de olhar. Eu mesmo tive que tirar algumas semanas para conferir (quase) tudo. Algumas das músicas do top 100 foram, sim, hits por aqui, mas a maioria é uma seleção obscura de faixas do SoundCloud que muitas vezes ficam nichadas a frequentadores de bailes, misturando montagens, set mixados e faixas deletadas no mesmo caldeirão, sinais da obsessão de Bill com o Funk.

Quero saber mais sobre o processo de criação da sua lista. Quanto tempo demorou, e quais os critérios? Foi meio viral, não foi?

Acredito que escrever e montar essa lista levou cerca de quatro meses. Quando você está lidando com algo tão gigantesco em volume, você sabe que tem que ser paciente consigo mesmo e apenas ser realista que vai levar tempo para cacete. Já que faço listas para outros tipos de música também, inicio em novembro para começar a colocar essas listas juntas (eu literalmente faço planilhas – já virou maluquice). Sempre tenho essas playlists enormes que acompanho ao longo do ano, então é só uma questão de reduzi-las, o que não é tarefa fácil. Então, além disso, sempre quis servir um equilíbrio adequado de todas as cidades que contribuem para o funk no Brasil — eu queria ter certeza de que cada fenda do funk no país está sendo coberta.

Com critérios, não há muitos fatores. Obviamente, tenho que ouvir muito ao longo do ano – eu tenho Chevy Spark, amo dirigir pela cidade ouvindo funk nessa coisa. Eu também moro no meio do nada do Texas, então os olhares que recebo de pessoas do campo são super divertidos. Especialmente quando a maioria dos meus leitores vão ser gringos desinformados, também tenho em mente quais artistas populares precisam ser introduzidos corretamente (Ex: Arana, WS, etc), então eu tento obter uma mistura de artistas bem conhecidos e coisas estranhas obscuras, porque é isso que realmente amo. Quanto à recepção, sim, eu recebi muito carinho. Surpreendentemente de muitos brasileiros, o que foi legal. Sempre fico nervoso pensando que vocês vão me achar estranhos, mas eu realmente acho esse tipo de música.

E o que lhe interessa como gringo na música produzida no Brasil atualmente? Por que você gosta tanto de funk, o que te pegou no início?

Amava Miami Bass quando criança (minha mãe tinha CDs lol), então a base estava lá. Mas eu não havia mergulhado profundamente no funk até provavelmente a pandemia – eu tinha acabado de sair da faculdade, então tive muito tempo livre e, mesmo antes disso, estava sempre mergulhando em músicas novas e diferentes e, a partir daí, acho que descobri algum mandrake e isso me fisgou imediatamente. Vendo vídeos de diferentes Bailes, especialmente os de SP na época, senti que era minha missão ir lá e experimentar pessoalmente. A partir daí, estava constantemente pesquisando sobre funk – eu sabia o que era funk carioca já havia um tempo, mas não tinha ideia do que estava acontecendo em SP e BH até por volta de 2020 (JF e outros lugares, mais tarde). Desde então, fiquei mais absorto nisso e agora sinto que não consigo parar de acompanhar — é tão diferente de qualquer outra música de clube regional no mundo, e o jeito como experimentam parece que nunca vai ter fim.

Mas quanto ao motivo de fazer isso, eu sempre quero compartilhar o funk com os outros e nunca quero que seja sobre mim (literalmente tivemos uma jornalista gringa dizendo que ela faria o “Brasil parar de fechar com a gente” porque ela escreveu duas resenhas sobre funk haha). É apenas música que merece muito mais respeito e reverência e, embora eu não seja brasileiro, só quero fazer o meu melhor para que as pessoas conheçam o funk.

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