Barra por Barra: justiça para Nas

Ou como o rapper do Queens me ensinou (quase) tudo que sei sobre rap

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Fotos: Danny Clinch/Mariana Poppovic (design)

 

Barra por Barra é o espaço no qual o João aparece por aqui às sextas-feiras para falar de hip hop e de tantas outras coisas que vêm junto com a (enganosamente simples e definitivamente sedutora) ideia de “falar de hip hop”. Ritmo, poesia e opinião – com o João.

 

 

Em novembro do ano passado, Nas lançou o terceiro disco da (até então) trilogia King’s Disease (2020, 2021 e 2022). Entre tantas boas músicas nesses projetos, uma em especial me pegou de guarda-baixa. “First Time”, 14ª quarta faixa do terceiro volume, propõe uma simples pergunta: qual foi a primeira vez que você ouviu Nas? Let me take a trip down to Memory Lane…

Quando eu tinha entre 14 e 15 anos, minha mãe decidiu me colocar em um cursinho preparatório para o Ensino Médio. Eu saía do Colégio de Aplicação (federal e público) que eu estudava, almoçava no Restaurante Universitário, e partia direto para esse curso. Ofertado por uma escola particular conceituada na cidade, o curso era frequentado em sua por alunos desta mesma escola. Brancos, sem nenhuma consciência de classe, ignorantes porque a vida permite e com nada a ver comigo. Até o outro moleque preto de lá tinha essa energia esquisita. Nas exceções que confirmavam a regra, conheci Renan e Matheus. Ambos já eram amigos de antes desse cursinho, e faziam Muay Thai juntos — uma atividade que nós três compartilhávamos à época e que foi o primeiro elo da união. O segundo foi o rap.

Renan era uma figura engraçada e de imagem e gostos oponentes. Ele parecia um membro perdido do Bonde da Stronda, mas gostava muito de Facção Central, que nem eu e o Matheus. Já o Matheus curtia rap nacional, era muito fã de Filipe Ret, mas de nós três era o que mais ouvia rap internacional — principalmente Drake, Lil Wayne e o pessoal da OVO. Convivemos basicamente nesses nove meses que foram o curso, mas com uma amizade que parecia de mais tempo que isso. Entre as aulas, ficávamos na varanda do curso (que era numa sobreloja) vendo as meninas passarem no centro da cidade, conversando sobre rap e criando um acervo extenso de piadas internas até rolar no chão de rir, literalmente. Houve vezes que comprei o salgadinho que costumávamos comer naquela época achando que era saudade do salgadinho, mas era saudade da época — que não pode ser embalada em nenhum saco plástico de cento e poucas gramas. Eu e Matheus nos aproximamos mais, e um dia ele colou na minha casa depois da aula.

“Você não conhece Nas? Você precisa ouvir Illmatic!” — e a partir deste momento, os sons dos trilhos do trem e o diálogo de “Wild Style” acompanhado pelo verso de Nas em “Live at the BBQ” ficariam tatuados na minha cabeça para sempre. Quando chocou Nova York com as rimas “Verbal assassin, my architect pleases/ When I was twelve, I went to Hell for snuffin’ Jesus” Nasty Nas tinha só três anos a mais do que eu era quando o ouvi pela primeira vez.

Conheci o freestyle “Live at the BBQ” quando Illmatic já estava decorado de cabo a rabo. Este quem me apresentou foi Everton, meu melhor amigo há 10 anos — e o maior fã de Nas que eu conheço. Com ele aprendi que o disco de estreia do garoto do Queens é a bíblia e a gênese do rap moderno, o álbum responsável por fazer tudo mudar nos anos 1990. Foram incontáveis as tardes que passamos ouvindo esse disco, debatendo rap e fazendo freestyle sobre as batidas do panteão de produtores de Illmatic — Large Professor, Q-Tip, DJ Premier, Pete Rock. Um laboratório onde aprendi muito mais do que no curso preparatório para o vestibular. Foi com Everton também que eu descobri que, em algum momento, Nas teve uma treta épica com JAY Z. Para meu amigo, a vitória dessa luta de titãs está no Queens; para mim, no Brooklyn (nossa maior divergência até hoje). Pessoas que nos mostram novas músicas são importantes.

JAY Z e Nas fizeram as pazes já há algum tempo, mas na época, a birra partia muito de uma coisa de fã não correspondido, uma vez que era um desejo de Jigga ter um verso de Nasty Nas em Reasonable Doubt, lançado dois anos depois de Illmatic. Em “Takeover”, diss de JAY Z para Nas lançada em 2001, ele diz que seu opositor lança um disco bom a cada 10 anos — uma afirmativa que por muito tempo marcou a carreira de Nas. A tentativa de repetir Illmatic o perseguiu, e seus próximos quatro álbuns referenciam o primeiro: quando não na capa, no nome. It Was Written (1996) foi um bom disco, cheio de clássicos, e Nas só repetiu o feito sete anos depois, com a dobradinha Stillmatic (2001) e God’s Son (2002), dois discos bastante subestimados, apesar dos suas falhas aqui e ali. Depois, mais um jejum de 10 anos até o lançamento de Life Is Good (2012). O 12º disco de estúdio de Nas conta com participações de Rick Ross, Mary J. Blige e Amy Winehouse, na chique “Cherry Wine”. De produção ousada e experimental em diversos momentos, Life is Good aborda paternidade negra, dores de um divórcio, entre outros temas que o tornam um sensível registro do envelhecimento e amadurecimento de um homem negro nos Estados Unidos.

Entre a quase uma década que separa Life is Good do início de King’s Disease, Nas comemorou os 20 anos de Illmatic, lançou um documentário do disco, narrou a série The Get Down (2016-2017) e se meteu naquela confusão de projetos de sete faixas produzidos por Kanye West — um trabalho feito nas coxas por parte de Ye e com rimas antivaxx redpilladas do rapper do Queens. Vencedora de Grammy, King’s Disease é o reencontro de Nas com suas melhores e mais lapidadas qualidades — guiadas principalmente pelo estilo místico e intrigante de sua narrativa. Uma grata surpresa na carreira turbulenta e repleta de altos e baixos do veterano, que volta a fazer boas escolhas de produção, trabalha conceitos interessantes e únicos (como de “First Time”, música que inspira esse texto) e nos relembra com constância de fazer justiça em seu nome como um dos maiores músicos de rap de todos os tempos. Obrigado, Nasir Olu Dara Jones.

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ARTISTA: Nas