Brockhampton: voracidade e saturação

O grupo-coletivo-boyband anunciou seu fim na última semana e sua breve (e intensa) jornada é uma crônica sobre criatividade e indústria nos dias atuais

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Fotos: Divulgação/Converse

Na última sexta-feira (14/01), por meio de uma postagem no Instagram, o Brockhampton anunciou um hiato indefinido. Aqui, vamos entender isso como o fim – ainda que não haja garantia alguma de que a turma formada por Kevin Abstract, Matt Champion, Dom McLennon e companhia não meta o Los Hermanos e volte a dar as caras por aí. E eles poderiam fazer isso, tranquilamente. Mas digo isso porque, fundamentalmente após a trilogia Saturation (lançada toda em 2017), ficou bem evidente que a garotada – primeiro de San Marcos, no Texas, depois do burburinho de Los Angeles – faz simplesmente o que quer. E porque pode fazer – não exatamente no sentido de “capaz”, mas de dotar de possibilidades materiais para tal. Procurar cantores, músicos e desginers em um fórum de Kanye West? Podemos. Juntar mais de 15 caras em uma casa e produzir sem parar? Podemos. Lançar três discos em um ano? Podemos. Parar depois de três discos sob uma grande gravadora? Podemos. Voltar daqui a um ou dois anos se apresentando antes do Travis Scott no Coachella? Vai saber. Falando apenas por mim: no fundo, talvez eu torça para que isso seja mesmo o fim. E eu sou fã, hein? Poderia fazer rodeios e dizer que “nem escuto mais tanto” ou que “foi só uma fase” – mas os números não mentem.

De acordo com o Spotify, Brockhampton foi a coisa que eu mais ouvi nos últimos 5 anos. Há que se considerar, claro, o fato de o grupo ter lançado quase 90 músicas, espalhadas em seis discos, desde 2017. Mas o caso é que eu realmente acompanhei cada lançamento com afinco. (Até ouvi, depois, o embrionário e difuso All-American Trash, do ano anterior, mas tudo começou mesmo na fase Saturation). E acho que chegou a hora de parar. Mesmo que tenha sido uma pena não tê-los visto no Lollapolooza 2020 que ainda não aconteceu. Em entrevista a Rolling Stone em 2019, Kevin Abstract havia até dito que todos os integrantes sabiam que não queriam/iriam continuar muito mais tempo como um grupo. E essa data de validade chegou depois de uma jornada que já começou intensa, veloz, lá do cume e que não necessariamente desceu ladeira abaixo, mas que passou por algumas curvas e buracos que foram deixando os pneus gastos, torcionaram a estrutura e, aos poucos, rarearam o combustível.

A trilogia Saturation foi como um período suspenso no tempo. Entre junho e dezembro de 2017, os rapazes soltaram bomba atrás de bomba: “HEAT”, “GOLD”, “SWEET”, “SWAMP”, “BOOGIE”, “BLEACH”, apenas para citar algumas presentes nos repertório dos três discos. O impulso que faltava para alavancar o grupo de um status underground para uma nova-espécie-hypada-da-web foram, inegavelmente, resenhas para lá de elogiosas de Anthony Fantano. Em pouco tempo, o coletivo angariava uma legião de fãs que o admirava e o acompanhava bem aos moldes de uma (como eles mesmos se intitulavam) boyband. Coreografias, figurinos, clipes inconfundíveis, cada integrante com uma personalidade (nos trejeitos e nos versos), gritos eufóricos nos shows, lágrimas – além de tuítes enfurecidos direcionados a críticas negativas (como o 6.5 da Pitchfork para o primeiro Saturation) e até um hate meio generalizado direcionado ao grupo. Southside One Direction. O Brockhampton parecia construir um universo próprio que, se não chegava exatamente com os dois pés na porta do mainstream, era soberano, autossuficiente e divertido (para eles e para os fãs). Tudo isso ainda era incrementado pela velocidade com que cada lançamento saía: se você se tornou fã do grupo em 2017, permanecia satisfeito e atento, afinal, nunca demoraria muito para que outro single (clipe ou disco) aparecesse na praça, renovando o apego. Mas aí veio a indústria.

Antes, acho curioso (e impreciso, ainda que inevitável) como muita gente os compara ao Odd Future e até ao Wu-Tang Clan. (O All Music Guide chega a chama-los de “similar” a esses dois grupos). Claro que também é uma banca que faz Rap, mas o Brockhampton tem um espírito muito mais de agência de talentos/reality show do que os dois citados. A união de Tyler, Frank, Earl e seus comparsas, por exemplo, me parece muito mais espontânea e involuntária. Simplesmente amigos que se juntam para fazer um som – se apenas um ou dois tiverem versos para aquela faixa, assim será, mesmo que ela saia no disco “coletivo”. No Brockhampton, o aspecto colaborativo sempre me soou mais induzido, quase como se existisse algo como um deadline e um briefing. Não me entenda mal: são amigos de colégio (com o reforço das contratações vindas do fórum do Kanye) e a criatividade corria livre na casa compartilhada, como vemos no documentário de Saturation. Mas só a existência de um filme com duas horas e meia de duração mostrando os bastidores do desenvolvimento da trilogia nos diz alguma coisa, não? Havia um alvo, eles sabiam que poderiam estar criando algo grande e já no início parecia importante apresentar a intimidade, a convivência e as personas de cada integrante ao público. E não há problema algum nisso. Eles, como dito acima, podiam fazer isso. Não são como o Odd Future, mas um produto exatamente pós-Odd Future – que colheu os ensinamentos de Tyler e companhia e os remodelou sob a luz millennial-ágil-digital-estrategicamente-familiar-sigo-de-volta. (Fantano, inclusive, chega a dizer em sua crítica do primeiro Saturation que “o Brockhampton é como o Odd Future que foi à faculdade”). E o resultado era, sim, muita música boa em uma velocidade que chegava a impressionar.

Jean-Jacques Rousseau diz que “o homem é bom por natureza, é a sociedade que o corrompe”. No clássico Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens (1754), ele desenvolve a ideia de que valores, costumes e instituições que o homem cria – e pelos quais se guia – na sociedade, o transformam em algo que a priori (no chamado “estado natural”) este homem não era. O “bom selvagem” passa a se degenerar a partir do momento em que os diversos véus da sociedade o encobrem. E eu vou dizer aqui que, especialmente no caso do Brockhampton, parece que o artista nasce feliz e a indústria o entristece. Não propriamente evocando uma ideia subversiva, anticapitalista (só um pouquinho) ou do famoso “se vendeu”. Mas os garotos foram atingidos rapidamente por uma estima pública cercada de expectativas e se enfiaram em um cenário bem diferente da antiga república de onde saiu a trilogia. Após se estabelecer como grande revelação de 2017, vieram shows nos principais festivais do mundo, a assinatura com uma grande gravadora, a acusação de assédio sexual de Ameer Van, seguida de sua expulsão, e o caótico (e um tanto esquecível) iridescence estreando no topo do Billboard 200, além de encontros com Rick Rubin e remixes com estrelas como Dua Lipa.

A avalanche, como não poderia deixar de ser, repercutiu nos álbuns seguintes, GINGER (2019) Roadrunner: New Light, New Machine (2020), que, embora contem ainda com ótimas faixas – “SUGAR”, “IF YOU PRAY RIGHT”, “BOY BYE”, “WHEN I BALL” – demonstraram que o fôlego, o ânimo e a inspiração estavam começando a diminuir. Mais do que isso: a atmosfera foi ficando cada vez mais soturna. O grupo sempre escancarou suas vulnerabilidades e esteve prontamente aberto a explorar emoções e traumas particulares, mas, depois da fase Saturation, a coisa ficou mais tristonha e desconsolada. De esfomeado e imparável, o grupo soava saturado. E tudo foi rápido demais – após o anúncio do término, um tuíte reparou que a ascensão e a queda do Brockhampton ocorreram em um período “entre álbuns” do Frank Ocean – que ainda não retornou depois de Blond. Foram como 50 anos em 5 e, na minha opinião, o Brockhampton sentiu o baque. Inclusive, ao que tudo indica, o grupo desistiu de lançar o segundo volume de Roadrunner (o suposto último álbum), que havia sido anunciado ainda para 2021.

A história do Brockhampton, ao despontar em 2017 e chegar ao fim menos de 5 anos depois, chegou a me lembrar do Faces, que durou de 1969 a 1975. À época, eles pareciam viver um sonho descompromissado e festivo – cada um cantava e compunha livremente, Rod Stewart fazia backing vocals em canções entoadas por Ronnie Lane e Ron Wood e vice-versa e tudo parecia uma celebração que passava longe das expectativas e exigências de gigantes como Beatles e Rolling Stones. Depois cada um seguiu o seu caminho tranquilamente até uma reunião quase 50 anos depois. O Brockhampton também pareceu viver um breve e intenso sonho, mas em uma época mais implacável, em que tudo é rápido, tudo é muito. Tudo é tudo a toda hora.

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ARTISTA: Brockhampton