Do Negrume ao Baile da Mimosa: a expressão das narrativas negras pelas rádios

Conversamos com Nathalia Grilo e Mbé sobre suas investidas em rádios online, da nacional Veneno à londrina NTS

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Fotos: Vitor Granete/Daisy Serena

A Nathalia Grilo de seis anos de idade que andava pra lá e pra cá com o walkman que seu pai lhe dera de presente jamais imaginaria que a Nathalia Grilo do presente, de 35, teria um programa de rádio tão ousado e profundo como o Negrume, na Veneno. Da cantora e compositora sul-africana Sathima Bea Benjamin à lenda do jazz estadunidense John Coltrane, o programa da pesquisadora e curadora baiana radicada no Rio de Janeiro propõe um mergulho na música espiritual negra a partir da imaginação africana e dos descendentes de África pelo mundo.  Desde 2016, Nathália também promove, ao lado de Roberto Barrucho, o Festival Mulambo Jazzagrário, uma forma de homenagear a vida e obra do músico Fernando Grilo, companheiro de Nathália que faleceu precocemente por uma negligência médica durante uma viagem à Recife, a qual tinha como objetivo tocar junto com Naná Vasconcelos. “Eu decidi iniciar um tributo a ele com um show entre amigos, o que nos próximos anos foi perdurando e se tornou um festival. Em 2023, vamos para nossa sétima edição”, conta Grilo.

Foi através da produção do Festival Mulambo Jazzagrário que Nathália conseguiu elaborar e dar sentido ao luto; por outro lado, esse trabalho também estimulou sua pesquisa sobre música instrumental negra dentro e fora da África, bagagem sonora que hoje compõe o cerne do Negrume. “A gente não leva a produção experimental para as quebradas porque nas quebradas já existe muita música experimental — nós somos a janela”, afirma Grilo. “O festival é uma forma de proporcionar para esses músicos um lugar legal, com estrutura e respeito, em que eles possam tocar — até porque não são músicos que chegam, em sua maioria, nas grandes casas de shows, como a Blue Note. E, além disso, nós proporcionamos esse espetáculo ao público que muitas vezes não pode se deslocar até a zona sul do Rio de Janeiro para consumir esse tipo de música”.

“Narrativamente, eu desejo ligar a imaginação de musicistas das décadas de 1960 e 1970 com as narrativas mitológicas originárias do continente africano. Para isso, tento unir mitos originários e fabulações de pensadores atuais com essa sonoridade do jazz espiritual” – Nathalia Grilo

Com foco na produção instrumental periférica, o Mulambo Jazzagrário é um festival que promove encontros inesperados e fantásticos da vanguarda brasileira, chegando a ter o pianista Amaro Freitas e o músico experimental Mbé no mesmo line-up, em 2021. Este último, por sua vez, também está usando rádios online como plataforma para contar histórias negras brasileiras. Ao lado de Leyblack e CabezadeNego, Luan Correia, de 26 anos, artista por trás do projeto Mbé, produz o programa MIMOSA ou “Baile da Mimosa 2022: a piroca vai cantar”, como a locução anuncia na rádio londrina NTS. Idealizado pelo CabezadeNego, vulgo do artista Luiz Felipe Lucas, o programa surge como uma retomada do seu desejo de ter frequentado os bailes funk cariocas durante a infância e adolescência e finaliza a residência artística do trio no Laboratorio de sonido de Etopia. MIMOSA será apresentado ao público de três formas: como sets nas rádios, como um disco de estúdio que está em finalização e, por fim, como um show–baile, que passa tanto pelas músicas do disco quanto por clássicos do funk. O propósito da MIMOSA em todos seus formatos, no entanto, é o mesmo: contar histórias negras brasileiras por meio do funk carioca.

Enquanto o Negrume tem uma proposta meditativa e nenhuma preocupação em entreter uma pista de dança, a curadoria da MIMOSA vai em direção oposta: se o som faz as pessoas dançarem, está dentro. A diferença deixa nítido que essa história negra brasileira registrada nas rádios online é plural e pode tomar forma de quaisquer propostas. “Narrativamente, eu desejo ligar a imaginação de musicistas das décadas de 1960 e 70 com as narrativas mitológicas originárias do continente africano”, elabora Grilo, “Para isso, eu tento unir mitos originários e fabulações de pensadores atuais com essa sonoridade do jazz espiritual”. A palavra é fundamental para o Negrume, desde as breves inserções de locução de Nathália até a forte presença do formato de poesia falada, spoken word ou jazz poetry, na sua seleção musical do programa. “Até agora foram três episódios, acho que encerro o jazz espiritual agora, e pretendo ir para uma espiritualidade mais brasileira e de outros lugares da África também. A minha proposta é a cada três episódios dar uma virada de chave sonora e, no geral, a minha ideia é que o programa seja uma imersão na espiritualidade”, revela.

Na primeira temporada, Negrume apresenta uma atmosfera etérea e sublime da arte negra, traz mitos originários com densos questionamentos dos filhos da diáspora forçada africana e arremata com uma perspectiva de surrealismo negro. Fora das rádios, o programa prova seu alicerce em uma visão sensorial de música: ao lado do Jazztopia, que é um projeto do podcast Balanço e Fúria, de Rodrigo Corrêa, Negrume foi para escolas como uma proposta de aproximação da juventude com o Jazz. “A turma chegou super agitada e saiu tranquila”, relembra. “Então, o Negrume tem mesmo esse efeito de trazer também a serenidade, mesmo que venha a partir do caos sonoro. A ideia é que a gente traga espiritualidade para os processos criativos artísticos e que proporcione para esses artistas outro olhar para seu fazer criativo”.

“A ideia é trazer dentro da linguagem do funk os ritmos originalizados e popularizado pelos negros no Brasil até a virada do funk e mostrar as influências que ficaram. Isso vai desde o som do terreiro ao maxixe, do samba ao soul, do miami bass à tamborzada e ao TikTok” – Mbé

Com set publicado na rádio londrina NTS através do programa da cantora Lafawndah, MIMOSA é uma surra de funk carioca. Para quem acompanha o trabalho de música experimental de Mbé, o novo projeto é surpreendente porque carrega intenção sonora discrepante do disco ROCINHA (2021). Ainda assim, o artista pontua algumas similaridades no modo de fazer de cada projeto. “Eu sempre tive a influência do funk na vida”, conta Correia, “Desde que nasci, o funk é o principal gênero do meu bairro, é o som que toca na vizinhança, é o som das festas, no busão indo pra aula. O ROCINHA também vem com a sua influência do funk: seja na forma com que trabalha os samples, na forma com que relata o bairro, quando demonstra as belezas do cotidiano favelado e quando faz denúncias. Vejo a faixa ‘Aos Meus’ como um bom exemplo disso. Acho que todo artista periférico quando se depara com outros artistas periféricos consegue enxergar as semelhanças nas suas vivências… E quando você é um artista periférico negro isso toma outra dimensão. Então, eu, o Leyblack e CabezadeNego, a gente só deixou as nossas influências escoarem dentro do estúdio.”

Apesar de ser uma mudança radical, MIMOSA não abandona a pesquisa antropológica que Mbé inicia no seu disco de estreia. “A ideia é trazer dentro da linguagem do funk os ritmos originalizados e popularizado pelos negros no brasil até a virada do funk e mostrar as influências que ficaram”, elabora Correia. “Isso vai desde o som do terreiro ao maxixe, do samba ao soul, do miami bass à tamborzada e o tik tok.” A maior referência de rádio para Correia é hoje o programa Música Negra do Brasil, do Bernardo Oliveira, o co-produtor de ROCINHA e diretor do selo de música experimental QTV. Já para a produção de Negrume, Grilo baseou-se no nacional Afrological, dos pesquisadores e produtores musicais Edbrass e Romulo Alexis, e no Rio Doce, do Caio Rosa, que vai ao ar na NTS. “Eu brinco que o Negrume é uma seita porque nosso slogan é a estética radical da escuridão sônica”, conta Grilo. “O programa se propõe a sondar a obscuridade do fazer musical negro, que é o que mais me interessa: essa coisa mais profunda, oculta, que não está na superfície, que pouco se revela e precisa de uma vontade para mergulhar nela”.

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