Gabarito D’Angelo

Uma saga paciente e brilhante: como D’Angelo lançou três clássicos – em três décadas diferentes – e nada mais

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Fotos: Steve Eichner

Depois de uma grande estreia, qual é o tempo ideal para um próximo álbum? Há um tempo ideal? Na história da música pop, encontramos diversos casos de artistas que, após entregarem um clássico já logo no primeiro lançamento, vivem à sombra do disco de estreia. Essa espécie de fardo pode se perpetuar mesmo após a construção de uma carreira sólida, como aconteceu com Nas, Strokes e até o Guns N’ Roses. Ou o álbum pode se tornar um clássico solitário de uma obra interrompida por diferentes motivos, casos de Jeff Buckley, Lauryn Hill, Sex Pistols e Arthur Verocai.

Há, contudo, aqueles artistas que, já consagrados e distantes da estreia, são capazes de engatar uma sequência arrasadora, como Stevie Wonder e Gilberto Gil nos anos 1970, PJ Harvey na década de 1990, ou ainda as trincas inicias de Kanye West e Kendrick Lamar nesse milênio. Não há uma fórmula ou uma dinâmica pronta e segura para aprimorar uma discografia. Acertos são seguidos de fracassos (e vice-versa) e o que foi um tiro no alvo em anos anteriores pode ser impiedosamente descartado, a depender do humor da indústria, do público e da crítica.

D’Angelo, nesse sentido, é um dos casos mais peculiares. Despontando em meio à explosão do Gangsta Rap e à escalada de hits dançantes do R&B Pop nas paradas, ele soltou um disco que puxou toda uma leva de novos artistas e revigorou as possibilidades do Soul no meio dos anos 1990. Na sequência, se enfurnou por cinco anos em um estúdio – acompanhado de outros prendados músicos – para soltar mais um clássico. Sumiu por quase 15 anos e voltou com mais um. Três discos, três clássicos. Cada álbum como um evento particular, capaz de conservar e superar o que já havia sido feito por ele e dialogar com o contexto em que foram lançados.

Destrinchamos a história de D’Angelo e seus três clássicos. Uma saga paciente e brilhante, de respeito à inspiração e, sobretudo, ao tempo.

Brown Sugar (1995)

Antes de Brown Sugar apresentar D’Angelo ao mundo em 1995, ele era apenas Michael Eugene Archer, nascido em 11 de fevereiro de 1974, em Richmond, na Virginia. Filho de um pastor da Igreja Pentecostal – e criado em uma família inteira protestante –, D’Angelo, além de ser intensamente influenciado pelo Gospel desde cedo, aprendeu a tocar piano sozinho ainda muito criança. Em pouquíssimo tempo, ele já sabia que queria ser músico. Mais do que isso, D’Angelo, já na adolescência, demonstrava habilidade de ser um líder, um comandante que fica à frente de uma banda.

Em 1991, Michael Archer & Precise – nome do grupo que o acompanhava – venceu um festival de calouros no Harlem, em Nova York, por três semanas consecutivas. Foi o empurrão definitivo para, aos 18 anos recém-completados, largar a escola, abandonar Richmond e se jogar de vez no mundo mágico da Big Apple. Em pouquíssimo tempo, a ideia vingou: uma breve empreitada pelo grupo de rap I.D.U. (Intelligent, Deadly but Unique) rendeu uma fita demo, que chegou aos ouvidos dos agentes da EMI e D’Angelo (sozinho) firmou um contrato com a gravadora em 1993.

Sua primeira contribuição de sucesso foi como compositor/arranjador/produtor de “U Will Know”, do coletivo Black Men United, em 1994. Quem formava o B.M.U.? Um time de astros do R&B da época formado por nomes como Boyz II Men, R Kelly, Usher, Brian McKinght, Tony! Toni! Tone!, além de Ice-T, Snoop Dogg e Lenny Kravitz. A faixa, carro-chefe da trilha de A Face da Verdade (1994), chegou ao Top 5 da parada de R&B da Billboard e comprovou que D’Angelo não estava para brincadeira: aos 20 anos de idade, ele havia composto um hit – algo como um “We Are The World” do R&B noventista – para um filme estrelado pelos jovens Jada Pinkett Smith, Forest Whitaker e Booken Woodbine.

Agora, era a hora de um disco. Na metade dos anos 1990, não havia muito espaço ou alguma tendência escondida que apontasse para um R&B mais orgânico, aos moldes de discos dos anos 1970 de Marvin Gaye, Donny Hathaway ou Al Green. Havia, claro, amostras de talento e brilhantismo, como TLC em CrazySexyCool (1994), Mary J Blige em My Life (1994), e Boyz II Men em II (1994). Para não falar dos hits estrondosos e dançantes de Whitney Houston. Mas esses e outros artistas, ainda que, em certa medida, influenciados pelo R&B “clássico”, estabeleciam diálogo bem mais íntimo com o universo Pop ou faziam uso de batidas, timbres e elementos digitais e representavam algo como uma ramificação “menos rimada e mais cantada” da proposta do Hip Hop, tão em evidência na época. Era a famosa Golden Era: Tupac e Notorious B.I.G. eram dois dos maiores astros americanos; Nas havia acabado de chocar o mundo com Illmatic (1994); Wu-Tang Clan e A Tribe Called Quest formavam bancas disparadoras de rimas e beats envolventes. Não era bem o momento para um revival. De certa forma, D’Angelo concordava e discordava.

Amante ferrenho do Hip Hop e sintonizado aos sons do período, D’Angelo queria remodelar o som do R&B, colocando-o, sim, em contato com a modernidade, mas bebendo de tons clássicos. Para isso, ele precisava convencer a gravadora. Juntando composições feitas, segundo o próprio, “deitado na cama em Richmond” e novas ideias inspiradas em Nova York, ele entregou uma demo – gravada em apenas quatro canais – para a EMI, como quem diz: “olha só o que eu sei fazer”. A demo surtiu efeito imediato e D’Angelo recebeu passe livre.

Gravado entre 1994 e 1995, Brown Sugar foi essencialmente comandado por D’Angelo, mas contou, também, com um trio fundamental de músicos/produtores: Bob Power – multi-instrumentista de mão cheia que já havia trabalhado com De La Soul, A Tribe Called Quest e colaboraria com The Roots e Erykah Badu –, Ali Shaheed Muhammad – produtor e integrante do próprio ATCQ – e o fantástico Raphael Saadiq – fundador do Tony! Toni! Toné! e figura onipresente do R&B dos anos 1990 em diante. A trinca, que trazia justamente a bagagem do Rap e do R&B de excelência da época, se harmonizou à sede de um jovem músico de talento excepcional, fã de Prince, Curtis Mayfield, Jazz e Gospel. E o principal: doido para gravar um disco.

“Marvin Gaye e LL Cool J em partes iguais, o músico consolidado e o cara mais cool no salão” foi assim que a Pitchfork definiu D’Angelo à luz de Brown Sugar. E D’Angelo comprovou que a analogia não era exagero. Seu primeiro disco unia o R&B dos anos 1970 a certos temperos do Hip Hop e, mais do que isso, sua própria persona abarcava, de uma só vez, a aura de um soulman prendado e a atitude – e o figurino – de um rapper dos anos 1990.

A faixa-título, primeiro single do projeto, demonstrava toda a fusão com um clipe em que D’Angelo toca em um típico clube de Jazz, mas de atmosfera Hip Hop, esfumaçado, despojado, jovem. Com falsetes contagiantes no refrão, rhodes preciso, flow irresistível nos versos, “Brown Sugar” caiu nas graças do público jovem, mas também impressionou os music nerds mais exigentes. A canção, produzida por Ali e D’Angelo – que colocou suas vozes em todas as partes, dos agudos aos barítonos – chegou ao 5º lugar da parada R&B/Hip Hop da Billboard e é o cartão de visita perfeito para o disco. E para o tal Neo Soul, termo cunhado, pela primeira vez, por Kedar Massenburg, produtor executivo do álbum. A princípio, todos acharam que a “Brown Sugar” falava sobre uma mulher, mas, com o passar do tempo, soube-se que era uma ode à maconha – uma blunt açucarada.

Com linguagem orgânica, mas longe do virtuosismo excessivo ou do revivalismo pálido, o repertório todo do disco aglutina referências clássicas e, ainda assim, consuma diálogo com os sons dos anos 1990, de maneira criativa, original e com apelo pop. “Smooth” é quase um Jazz contemporâneo, baseado em baixo, guitarra e piano, somados a uma bateria enxuta aos moldes do Rap, e “When We Get By” reverbera as linhas de piano suingadas de Ray Charles, enquanto D’Angelo viaja amparado pela elasticidade de sua voz. O mesmo acontece em “Higher”, que encerra o disco em altíssimo nível, em uma louvação tanto espiritual quanto platônica, cheia de coros e rhodes se combinando a órgãos, em um Gospel moderno.

Entres os singles, além de “Brown Sugar”, “Cruisin’” repagina – e, com o perdão da irresponsabilidade, supera – a canção de Smokey Robinson em arranjo encorpado e harmonia riquíssima, munida de novas notas. “Me And Those Dreamin’ Eyes Of Mine”, com guitarra magnífica de Bob Power, traz uma bateria intencional e cirurgicamente atrasada (aqui, feita por D’Angelo), que antecipa a levada rítmica que caracterizaria Voodoo (2000) – ali, pelas baquetas de Questlove. E “Lady”, com um baixo simples e certeiro assinado por Raphael Saadiq – uma das linhas preferidas de Thundercat, como ele contou a Pitchfork –, tem andamento perfeito para algum rapper desferir suas rimas, mas, no lugar, D’Angelo alterna falsetes, coros sobrepostos e versos descompromissados. A faixa, que ganharia um remix de DJ Premier com rimas de AZ, chegou ao Top 10 do Hot 100.

Brown Sugar é um lembrete de onde o R&B esteve e, se o gênero quer ressuscitar sua relevância criativa como uma fênix renascendo das cinzas, para onde ele deve ir”, disse a crítica da Rolling Stone na época. E o disco acabou, de fato, puxando o bonde do Neo Soul: artistas como Erykah Badu, Jill Scott, Alicia Keys, Anthony Hamilton e Maxwell seguiram o caminho desbravado por D’Angelo. Maxwell, inclusive, disse ao jornalista Nelson George que o sucesso de Brown Sugar foi decisivo para que a Columbia lançasse seu excelente disco de estreia, Urban Hang Suite (1996). Aos 21 anos, D’Angelo comprovou que era possível modernizar o Soul carregando suas características fundamentais e, ao mesmo tempo, trazer frescor a um movimento, espírito e momento da música negra. Brown Sugar ainda foi disco duplo de platina e recebeu quatro indicações ao Grammy. E agora? D’Angelo ousou e acertou o alvo. Era hora de seguir a todo vapor, certo? Mais ou menos. Ele sumiu do show biz por cinco anos – mas por uma ótima causa.

Voodoo (2000)

Durante os cinco anos que separaram o aclamado disco de estreia e o sucessor, D’Angelo abraçou uma de suas facetas mais preponderantes, ainda que menos conhecidas: a de um nerd. Mas um nerd, obviamente, musical. Há diversos depoimentos por aí que indicam o espírito excessivamente audiófilo de D’Angelo – Erykah Badu, Questlove e Faith Pennick (autora de um livro dedicado a Voodoo) já o descreveram como um nerd music hardcore, daqueles que, reza a lenda, sabe de cabeça todos os set lists da carreira de Prince. Pois então, entre 1996 e 2000, D’Angelo se refugiou no lendário Electric Lady Land, estúdio idealizado por Jimi Hendrix em 1969, na região downtown de Nova York. Para, a princípio, ouvir repetidamente discos de Stevie Wonder, Marvin Gaye, Curtis Mayfield, Funkadelic, além dos próprios Prince e Jimi Hendrix. Mas ele não fez isso sozinho – já que ele não apenas ouvia os discos, como executava intermináveis jam sessions acompanhando as composições de seus ídolos.

Entre os músicos mais essenciais para a construção de Voodoo, Questlove, sem dúvidas, está na linha de frente. O baterista do The Roots, que disse ter gastado uma nota em vinis ao lado de D’Angelo na época, esteve nas sessões do disco literalmente durante anos e foi decisivo para o aspecto rítmico tão marcante do trabalho. Influenciado por J Dilla, que costumava desligar o metrônomo para criar a percussão de suas produções, D’Angelo queria uma bateria arrastada, livre, descompromissada, perfeitamente fora do tempo. A batalha com Questlove não foi simples. O baterista, com bom humor, disse em entrevista ao Red Bull Music Academy que tinha receio de que seus amigos músicos rissem de seu “amadorismo” ao ouvir o disco e que D’Angelo atrasava o andamento das produções “por trás” do atraso pedido a Questlove. Uma sobreposição de atrasos. “Ele dizia para eu usar a Força, mas eu nunca assisti Star Wars”.

Além de Questlove, que, com o passar do tempo, captou exatamente o que D’Angelo queria, músicos como Pino Paladino (baixista cujas colaborações vão de The Who a Nine Inch Nails, B.B, King a John Mayer Trio), James Poyser (também integrante do The Roots e presença recorrente pelos estúdios de artistas de R&B, Rap e Pop há mais de 20 anos) e Roy Hargrove. O último merece uma menção especial. Hargrove foi um trompetista prodigioso do Jazz, dono de uma vasta produção lançada a partir dos anos 1990, que aliava experimentações e Hard Bop tradicional. Era um dos nomes do Jazz contemporâneos mais conectados ao universo do R&B/Rap recente. Em 2003, o RH Factor, grupo liderado por ele, lançou o disco Hard Groove, com participações de Common, Q-Tip, Erykah Badu e do próprio D’Angelo. Ele morreu em 2018, aos 49 anos, vítima de um ataque cardíaco.

O time que passava pelo Electric Lady no fim dos anos 1990 para apreciar as jams só crescia: Raphael Saadiq, DJ Premier e até gente como Eric Clapton, Rick Rubin e Chris Rock apareciam por lá. E, claro, a turma que ficou conhecida como Soulquarianas. Havia outros dois discos (clássicos) sendo gravados no estúdio naquele período: Like Water For Chocolate, de Common, e Mama’s Gun, de Erykah Badu. Além de Questlove, que trabalhou nas três produções, nomes como Bilal, Mos Def, Q-Tip e Talib Kweli também faziam parte do coletivo rotativo, cujo nome foi uma homenagem aos aquarianos D’Angelo, J Dilla, Badu e Questlove.

Havia uma atmosfera mágica no ar. As colaborações, trocas constantes de referências e habilidades, a mera presença de tantos talentos no ambiente e o desejo de renovar a música negra com os clássicos debaixo do braço moveram todos esses personagens em um momento muito particular e moderno da música dos anos 1990. E todo esse astral contribuiu para que D’Angelo executasse um salto criativo comparável ao que Stevie Wonder deu de Music Of My Mind para Talking Book – ou, em ares mais recentes, Kendrick Lamar de Good Kid, M.A.A.D City para To Pimp A Butterfly.

SOULQUARIANS para a revista Vibe, em 2000: Talib Kweli, Common, Mos Def, James Poyser, Erykah Badu, Questlove, D'Angelo, Q-Tip, Bilal e J Dilla

O que impressiona em Voodoo, já à primeira audição, é que ele não é um derivativo de Brown Sugar (algo que D’Angelo poderia ter feito tranquilamente). As faixas são longas, fogem de estruturas convencionais – de verso, ponte, refrão – e, tal qual o espírito da gravação do álbum pedia, soam como imensas sessões de improviso, com alta carga de imprevisibilidade. E há uma característica que percorre todo o repertório: a economia. Ou melhor, a precisão. Ainda que encarne uma jam session, Voodoo não é extravagante ou cheio de virtuoses desmedidas e excessos. Cada elemento – dos metais às teclas, das cordas aos coros – desponta na hora certa, oportunamente, pintando sua parte em uma paisagem impecável guiada pela(s) voz(es) de D’Angelo. Ele une o canto e a fala com habilidade ímpar e sobrepõe camadas de maneira harmônica e arrebatadora, colando todas as discretas loucurinhas a seu redor.

“Playa Playa”, que tem contribuição de Angie Stone – ex-companheira de D’Angelo, com quem tem um filho –, abre o repertório com um baixo ganchudo, espesso, que, aos poucos, é invadido pelo ataque do trompete de Roy Hargrove. “Devil’s Pie”, produzida por DJ Premier e a única “não-orgânica” do disco, e “Left & Right”, com versos de Method Man e Redman, são as investidas Hip Hop (bem-sucedidas) do projeto. Com guitarra das mais inspiradas de Raphael Saadiq, “The Line” condensa muito do que é Voodoo: uma introdução com um coral belíssimo, entre o Gospel e o doo wop, que subitamente desemboca em uma base orgânica de boom bap soturno, safado. A letra explora as dúvidas – existenciais e espirituais – que invadiram D’Angelo após a fama.

A dívida com Prince aparece camuflada e exposta: “Chicken Grease” é um termo cunhado pelo Purple One para descrever um estilo funkeado de tocar guitarra (como a imortal intro de “Kiss”), e a fabulosa “Greatdayndamornin’ / Booty” reverbera o estilo de Funk-Atmosférico típico do clássico Sign ‘O’ the Times (1987) – na segunda, a voz de D’Angelo se assemelha de maneira assombrosa com a de Prince, em alguns momentos. Ainda há espaço para certas influências latinas em “Spanish Joint”, com Hargrove e o guitarrista Charlie Hunter roubando a cena. Em uma versão demo da faixa, é possível notar como o piano de D’Angelo serviu de diagrama para todos os outros instrumentos – ele foi como um maestro de um time A+ em Voodoo.

O romantismo dá as caras em “Send It On”, “Feel Like Makin’ Love” (versão quase minimalista do hit setentista de Roberta Flack) e, claro, em “Untitled (How Does It Feel)”. Enfim chegamos a “Untitled (How Does It Feel)”. O terceiro single do disco, composto em parceria com Saadiq, é um R&B lento, cheio de pausas, supressões e expectativa, criando uma tensão sexual das mais poderosas já ouvidas na música moderna. Uma canção que se equipara a grandes love songs de Prince, como “Do Me, Baby” ou “Slow Love”, e que transformou D’Angelo – um rapaz tímido e, como dito acima, nerd – em um sex symbol, elevando sua personalidade a outro nível no show biz. Muito por conta, também, de seu clipe: D’Angelo, ao que parece, nu, cantando diretamente para a câmera. Para Faith Pennick, o clipe de “Untitled” serviu como uma resposta incidental a todos os vídeos de Rap da época que, de forma recorrente, objetificavam as mulheres. “D’Angelo encarnou a Thug Fantasy de toda uma geração de mulheres”, diz ela.

Beyoncé já disse que Voodoo é o “DNA da Black Music” e que “Untitled” inspirou sua canção “Rocket” decisivamente; Solange define o disco como “a igreja que todos vamos para louvar a religão do Soul” e uma influência fundamental para A Seat At The Table (2016); Thundercat já disse que, após Voodoo, todos os bateristas queriam soar como Questlove. O entusiasmo também chegou até a crítica: o disco entrou em praticamente todas as listas de melhores do ano em 2000 – incluindo o primeiro lugar da Time – e levou o Grammy de Melhor Álbum de R&B. Além disso, passou duas semanas no topo do Billboard 200 durante um ano em que as paradas foram dominadas por nomes como NSYNC, Limp Bizkit, Eminem e Nelly.

É difícil entender os motivos para o que aconteceu depois do lançamento de um álbum como esse. Há quem diga que a pressão midiática e os holofotes (que tinham mais a ver com seu abdômen sarado do que com sua música) por conta de “Untitled” ajudaram a tirar D’Angelo do eixo. Há quem diga que ele também se desanimou por alguns críticos classificarem seu disco como “R&B Alternativo” ou “Contemporâneo” – como alguém que diz “eu desisto”. O caso é que, mesmo após lançar um dos melhores discos de R&B desde a Era de Ouro de Prince, D’Angelo praticamente sumiu. Por quase 15 anos – incrementando ainda mais a mística em torno de Voodoo.

Black Messiah (2014)

Após entrar – literalmente, já que Voodoo foi lançado em janeiro de 2000 – no novo milênio em grande estilo, D’Angelo realizou uma turnê do disco e retornou para Richmond. À época, além dos efeitos de “Untitled” – seu antigo empresário, Dominique Trenier, contou à Spin que D’Angelo, de fato, ficou desanimado por ser lembrado como “o cara pelado naquele clipe” –, o músico enfrentou o suicídio de um amigo próximo, um término de relacionamento, o rompimento com empresários e a gravadora. Foi quando ele desenvolveu problemas com álcool – e com a polícia: ele foi preso por distúrbio da paz, posse de armas e maconha e também por dirigir embriagado. Em 2005, uma foto de quando ele foi preso apareceu pela web e gerou burburinho por conta de sua aparência, bem diferente daquela da época de Voodoo.

Àquela altura, um novo álbum de D’Angelo começou a se tornar lenda. Mas, mesmo em meio ao caos, as sessões de composição-produção-gravação-piração continuavam. Russell Elevado – magnífico engenheiro de áudio responsável por Voodoo – disse, no período, também à Spin, que o novo trabalho soava como “Parliament/Funkadelic misturado com Prince, misturado com Beatles e tudo isso sob uma energia Jimi Hendrix”. E nós só descobrimos que ele tinha razão no final de 2014. Mas, antes disso, entre raras aparições em shows e na mídia, D’Angelo colaborou com J Dilla e Common, em 2006, na maravilhosa “So Far To Go”, presente em The Shining, disco póstumo do inigualável produtor de Detroit, além de dar canja em discos de Q-Tip, Common e Snoop Dogg.

Um novo disco parou de ser um sonho distante dos fãs apenas seis anos depois, em 2012, quando, durante algumas datas pela Europa, D’Angelo apresentou quatro músicas inéditas, posteriormente incluídas em Black Messiah (2014): “Sugah Daddy”, “Ain’t That Easy”, “Another Life” e “The Charade”. A primeira, carro-chefe do disco, faria parte de uma performance, no mesmo ano, no BET Awards, selando de vez o retorno. E, curiosamente, apresentada junto a um trecho de “Untitled”. D’Angelo, com quase 40 anos, fazendo um show na TV pela primeira vez em mais de uma década – os traumas haviam passado. O público, incluindo as irmãs Knowles (em pé), foi ao delírio.

“Sugah Daddy” é uma bomba Funk das mais contagiantes – mas, ainda que tenha sido o primeiro single, não caracteriza com justiça Black Messiah. A grande diferença de BM para os outros dois clássicos é a evolução de D’Angelo como guitarrista. Aqui, ele, no geral, trocou o piano, seu instrumento nativo, pela guitarra e o resultado é uma união efervescente, bem mais amalucada, que até reverbera (como sempre) Prince (& The Revolution) e Sly & The Family Stone, mas é um tanto inclassificável. Algo como um Funk N’ Roll. Acompanhado da espetacular banda The Vanguard, D’Angelo aparece mais excêntrico e barulhento do que nunca, mas transforma essa psicodelia cacofônica em um repertório cheio de alma e criatividade. E em Black Messiah, ele se debruça mais do que nunca na temática do racismo estrutural. Com as guitarras como protagonistas e o Soul como norte, “1000 Deaths” – com contribuição de Q-Tip e Kendra Foster, backing vocal da Vangurd e presença constante pelo repertório – e “The Charade” exploram a violência policial, o medo e o legado dos direitos civis (“All we wanted was a chance to talk / ‘Stead we only got outlined in chalk / Feet have bled a million miles we’ve walked / Revealing at the end of the day, the charade”).“É sobre as pessoas se rebelando em Ferguson, no Egito, no Occupy Wall Street e em todos os lugares onde a comunidade deu um basta e decidiu mudar as coisas. Black Messiah não é um homem. É um sentimento que, coletivamente, todos somos este líder”, D’Angelo escreve nas notas do encarte do disco.

A guitarra também comanda a experimental e hipnótica “Prayer” e um violão com influências de flamenco guia a deliciosa “Really Love”, com um jogo de cordas grandioso encorpando a boa e velha sobreposição de vozes de D’Angelo. Ainda há espaço para a excelente surpresa do Delta Blues “The Door” – provavelmente a canção mais destoante de todo seu catálogo –, que chega a remeter as linhas melódicas country de Paul McCartney na fase Ram (1971). Inclusive, D’Angelo, que já tocou “She Came In Through de Bathroom Window”, disse, em entrevista ao Red Bull Music Academy, que Beatles e Prince são os melhores exemplos de como expressar excentricidades em um formato pop).

Como Black Messiah foi desenvolvido durante mais de 10 anos, colaboradores frequentes de D’Angelo, como Questlove, Pino Palladino e o finado Roy Hargrove, também aparecem pelo repertório, contribuindo para que o groove sempre estivesse no mais alto nível. “Another Life” é um inebriante e lindíssimo fechamento que bebe do Gospel e “Betray My Heart” é daquelas canções que crescem aos poucos, engrossam o caldo a cada compasso. Daquelas que D’Angelo comprovou saber fazer tão bem desde “Spanish Joint”.

Retorno triunfal, Black Messiah estreou no topo da parada de R&B dos Estados Unidos, acumulou nota 95 no Metacritic com 30 críticas somadas, levou o Grammy de Melhor Álbum de R&B, e acabou de ser incluído na nova lista de 500 Melhores Álbuns de Todos Os Tempos, da Rolling Stone. Um clássico, mais um dele. E lá se vão seis anos sem um novo disco de D’Angelo. Onde será que ele está? Eu chutaria que dentro de um estúdio. Onde, para ele, entrar é sagrado – e sair mais ainda.

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ARTISTA: D'Angelo