Maglore: com um pé na frente, mas outro atrás

O vocalista Teago Oliveira fala sobre passado, presente e futuro, Lula e Beatles, revolta, esperança e TikTok – e destrincha o excelente “V”, quinto álbum da banda baiana; “Nesse disco, basicamente, a gente imaginou a mesma coisa, pela primeira vez”

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Fotos: Azevedo Lobo

Colapso contextual. É esse o termo que especialistas (nas universidades, nas redações e nos botequins) têm usado para explicar a loucura que é habitar o mundo, sobretudo o mundo virtual, nos últimos anos. Em termos mais técnicos, o apagamento das circunstâncias e contextos que acompanham as mensagens que enviamos, um processo que é intensificado e favorecido pela arquitetura das mídias sociais.

Aquela foto do cara que você achava um galã no colégio (e que agora está ficando calvo) aparece no feed na sequência de um carrossel de 10 motivos para ser a favor da legalização do aborto. A foto da sua colega de trabalho numa rave causa certo desconforto e bate um pouco errado se vista junto com mais uma notícia sobre a fome no país. Você também quer postar uma foto na rave, no festival, ou simplesmente no conforto da sua casa, mas se pergunta se é insensível mandar um #gratidão quando tudo está tão estranho. Você comenta isso no Twitter em módicos 145 caracteres e uma pessoa que não te conhece te xinga de privilegiado. A vida é uma aventura.

Quem ouve a faixa que abre o V, quinto trabalho de estúdio da Maglore, é automaticamente sugado para um frenesi de estímulos quase tão intenso quanto as scrolladas descritas no parágrafo acima, mas dessa vez de uma forma positiva. A orquestração que acompanha “A Vida é uma Aventura” nos conduz como uma sequência de abertura de filme do James Bond e os versos do refrão “A gente envelheceu / A gente superou / Cada momento em que a vida foi mais dura / A história se escreveu em um final que não chegou” desvelam um filme dos últimos dois anos: uma história de dureza, mas também de sobrevivência. Precisamos celebrar, uma escolha que pode parecer contraditória diante das nossas cicatrizes e que nem sempre pega bem na rede social, mas que não é muito estranha para quem nasceu no Brasil. “Dançar na merda”, define Teago Oliveira, guitarrista e vocalista da banda, no papo que bateu comigo sobre o lançamento dois dias depois de estrear a nova turnê na Chopperia do Sesc Pompéia, em São Paulo.

A mistura de sentimentos não fica só na faixa-título, mas acompanha todo o álbum. Quem se engana com a doçura de “Amor de Verão”, a segunda faixa, não vai saber direito o que lhe atingiu no refrão de “Talvez”, que diz “Só me reconhecer quando despedaço ao te ver partir”. Enquanto “Eles” nos enche de uma raiva salutar para encarar os próximos meses que vem aí, “Maio de 1968” lembra de uma galera cheia de sonhos que viveu algumas décadas atrás e viu boa parte deles morrer. É a mesma música que encerra um verso cheio de eventos históricos de “um mundo em bruta sinfonia” com o nascimento de alguém, dona Inácia, mãe de Lucas Gonçalves, baixista da banda, nos forçando a olhar para o milagre que é viver.

Como conciliar isso tudo? De alguma forma, V resolve essa equação. “Dizem que música é matemática e eu sempre tirei zero em matemática, só que dessa vez eu dei o troco nela.”, comenta Teago, fazendo uma referência a todos os arranjos que precisavam funcionar ao vivo para que o show desse certo (olha o contexto aí!), mas que vale como síntese de todo o trabalho. A seguir você confere a íntegra desse papo que misturou passado, presente e futuro, Lula e Beatles, revolta e esperança, TikTok e alguns amores muito antigos. Não se deixe enganar pela capa ao estilo A Hard Day’s Night ou pelas roupas combinandinhas que eles exibiram no palco (“Não sei que banda brega do caralho é essa que todo mundo tem calça branca!”), em 2022 a Maglore diz mais sobre hoje do que sua timeline do Twitter.

Teago, uma coisa que me chamou atenção quando o disco saiu foi um tuíte seu dizendo que acreditava muito nesse trabalho. Queria saber o que tem no V  que você acredita tanto.

Ele foi o mais próximo que a gente chegou daquilo que estava na nossa cabeça. Entre o nascimento da obra e a concepção dela existe uma imaginação, uma idealização do que você quer fazer. A gente não sabia que o som desse disco ficaria tão próximo do que a gente imaginava coletivamente. Os outros discos tiveram um caminho distinto do imaginário de cada um, e coletivamente a gente não conseguia pensar de forma tão homogênea. Nesse disco, basicamente, a gente imaginou a mesma coisa, pela primeira vez.

Eu também acredito na força dessas canções. São questões que informam, que chegaram num ponto muito próximo do que a gente quis dizer, no que a gente pensou [antes de fazer]. Antes de estar no papel, a gente imaginou como seriam as músicas. E a escrita e a mensagem final, como ela é interpretada pelas pessoas, também. Gosto que as músicas sejam interpretadas livremente, de cada um ter a sua sensação [que só] passa por uma concepção geral do que a gente queria. Mas quem ouve “A Vida É Uma Aventura”, por exemplo, nunca fica absurdamente longe do que eu senti quando eu a escrevi. Acredito muito na força dessas canções, no poder delas de informar e de trazer diversão, essa coisa mais lúdica de sonhar a vida.

Você falou muito dessa imagem que vocês tinham do disco, a imaginação coletiva sobre o que ele deveria ser. Se você fosse montar um quadro no Pinterest com as inspirações, as referências desse mosaico que é o V, o que teria nele?

Cara… É muito bom trabalhar com imagem porque as músicas da Maglore são muito imagéticas e o disco tem essa coisa também, tanto que a capa é cheia de cores e personagens. Se eu fosse colocar num mosaico, ele iria desde Casa Grande e Senzala [livro de Gilberto Freyre], Elite do Atraso [livro de Jessé de Souza], John Lennon, Jorge Ben Jor, Gal Costa, fotos de carnaval de Salvador, carnaval de rua dos anos 50, enfim… Acho que são essas as imagens. Tropicália, ruínas urbanas, um monte de coisa doida que vem na cabeça.

Quinto disco da banda, cinco anos sem lançar um disco, num período de cinco anos muito marcantes para o nosso país. O que mudou para você nesse tempo? O que esse envelhecimento, esse amadurecimento, significa para vocês enquanto banda?

Sempre tive uma relação esquisita com esse lance de envelhecer, muito medo de ficar velho, da aparência física mudar, de não me reconhecer, de passar por crises. Mas agora que tô envelhecendo, tô até curtindo o processo. Tem oito meses que comecei a ficar grisalho no modo hard, a cada dia que passa aparecem três, quatro fios. Já entendi que não vai demorar muito até meu cabelo ficar completamente branco.

Esse período de pandemia contribuiu pra gente olhar muita coisa. É clichezão falar, mas a gente olhou pra vida de outra forma. Tinha um bocado de coisa acontecendo na Maglore que não estávamos enxergando, ficou tudo muito automático – tocar, fazer show, etc. Quando veio a pandemia, demos uma olhada para dentro. Aqui falo por todos, não sei se todos dividem a mesma opinião, mas acho que fizemos um esforço muito grande para olhar [para dentro] e falar assim “bicho, vamo aproveitar esse tempo para tentar mudar as coisas na gente mesmo, né?”.

Quando a gente voltou a tocar, já éramos músicos diferentes. Isso aconteceu naturalmente. A vida bateu muito, as questões pessoais de cada um dos integrantes, não só financeiras, mas psicológicas mesmo, de encarar o mundo ao mesmo tempo em que o país entrava num frenesi fascista do caralho, umas coisas que não dá para entender por que vem.

Agora a gente até estuda para tentar entender de onde vem essa loucura toda, né? Mas aí quando a gente se encontrou pra tocar, já estava tocando diferente e isso mostrou o quanto a gente mudou enquanto ser humano. A criação só reforça a mudança.

Não costumo valorar muito se mudamos para pior ou para melhor, preciso de mais tempo para entender, mas sei que mudamos porque, de certa forma, conseguimos vencer algumas coisas. Não no sentido de “uhuu, venci a pandemia” – obviamente é muito importante estar vivo depois que tudo que passou –, mas falo de vencer de forma mais subjetiva. “Vencer” talvez seja perceber mais detalhes na vida, detalhes que eram ignorados. Como é bom estar no palco, como é bom tocar para as pessoas, como é bom fazer o que a gente gosta, o que a gente ama. Como é bom viver disso, ser remunerado por algo que você ama, viajar, conhecer mil pessoas, conhecer o país. Sei lá, foi uma época que a gente aprendeu a celebrar um pouco mais. Quando envelhecemos, deixamos de celebrar, ficamos mais anestesiados e acho que aproveitamos esse tempo para dar valor para as coisas da vida. Loucura da cabeça.

“Fizemos esse disco não para esquecer que existe melancolia nas coisas, mas a melancolia não foi o parâmetro que usamos. Eu escolhi enxergar um mundo melhor no disco. Acho isso necessário. Ele também aponta os problemas que a gente tem, mas diz ‘beleza, eu não vou deixar de viver a vida e de curtir’. É um comportamento genuinamente brasileiro: dançar na merda”

O V tem mensagens que são políticas, fortes. Não é um disco ingênuo, mas ele escolhe olhar para a luz. Em algum momento você sentiu que havia alguma contradição nessa forma de olhar para o atual momento? Foi tranquilo chegar a esse lugar ou rolou alguma crise, medo de ser mal interpretado ou algo assim?

É aquela questão de ver o copo meio cheio ou meio vazio. A gente até conversou sobre isso: a Maglore tem letras que são muito tristes, melancólicas. Fizemos esse disco não para esquecer que existe melancolia nas coisas, mas a melancolia não foi o parâmetro que usamos no V . Eu escolhi enxergar um mundo melhor no disco. Acho isso necessário. Ele também aponta os problemas que a gente tem, mas diz “beleza, eu não vou deixar de viver a vida e de curtir.” É um comportamento genuinamente brasileiro: dançar na merda.

Como uma otimista que passa muito tempo no Twitter, sempre fico pensando se vou ser mal interpretada por estar feliz. Concordo com você que tem que celebrar, a gente sobreviveu, né? Mas sempre tem alguém pra dizer que não é bem assim.

(risos) Vi um comentário no YouTube da banda de uma menina que reclamou que o disco estava muito feliz e isso não combinava com a personalidade dela, que faltava música [triste] como nos discos anteriores. Aí depois ela apareceu de novo e escreveu: “Gente, eu não tinha ouvido as últimas músicas! Tô na merda de novo!” A gente deixou as últimas músicas de maldade, de tristeza, no final do disco. (risadas)

Tipo um cavalo de Tróia, né?

Exatamente. (risos)

Ano passado, lá em setembro, quando o Lucas [Gonçalves, baixista da Maglore] lançou o Verona [seu segundo trabalho solo], fiquei sabendo que a Maglore também estava com o disco pronto, mas esperando para lançar em 2022. Olhando agora, já parece uma realidade muito diferente de onde estamos hoje. A gente realmente não sabia se voltaria a ver show como antes! Ainda estamos num período difícil, tenso, mas também de muita esperança e as músicas dialogam com esse sentimento, mesmo tendo sido escritas bem antes. Como você enxerga essa evolução das canções e o diálogo delas com o momento atual?

A gente sempre fez um disco atrás do outro e esse tempo foi uma das poucas coisas da pandemia que não foram ruins. Deu para cozinhar o disco. Ele não teria esse som se a gente tivesse lançado em 2020, se não tivesse pandemia. Ele não teria sol, não teria essas características, não teria essa beleza toda, muito porque estávamos num processo automático de lança-disco-faz-turnê-lança-disco-faz-turnê. Esse disco foi um freio. Opa, vamo olhar de outra forma. Muitas músicas estavam prontas em 2020, muitas músicas. Mas não é porque elas estavam prontas que elas iriam ficar do jeito que ficaram. Esse tempo foi necessário.

Luquinhas faz um monte de música, só que ele lança de determinado jeito; eu sou muito mais devagar, espero muito mais pra lançar – acredito mais nos astros, nessa coisa de momento. Acho que fui eu que travei. Tinha uma ansiedade grande de lançar ano passado, mas o som da mixagem não chegava onde queríamos, tive que estudar bastante pra conseguir agradar todo mundo. Estávamos nessa onda de “será que a gente lança o disco agora?”.

O V somos nós tentando dizer para nós mesmos que o sonho não acabou. Em 2021 a gente também estava em crise e eu não queria lançar esse disco sem ter certeza que o mundo realmente não acabou. Se o mundo estivesse mesmo para acabar a gente lançaria, mas as coisas ainda poderiam melhorar. Melhor lançar numa crescente de esperança, ele é tipo aquele empurrão final, “se joga”. Queria lançar antes das eleições porque tem a ver com ânimo também. O grande público não conhece a gente, nem foi essa a questão. Nosso poder de transformar voto é quase nulo perto dos grandes influenciadores, mas [foi algo] para nós mesmo. Teve questões de logística também — somos uma banda independente, [precisava] casar melhor com os shows. Costumamos dar dois meses [de intervalo entre o lançamento e a turnê], rola muito medo da galera não conhecer as músicas, mas lançamos e 15 dias depois a galera estava cantando. Foi um bom lançamento, legal pra gente e pro nosso público.

E como foi o processo de gravar na pandemia?

Foi o melhor clima. Fomos gravar no estúdio de Leonardo Marques [produtor musical por trás de V e dos dois outros discos anteriores da banda, III e Todas as Bandeiras], que coincidentemente é a casa dele em Belo Horizonte. Somos amigos há muito tempo, mais de 10 anos de amizade verdadeira, e estamos sempre nos encontrando quando podemos. O clima foi massa. Teve todo o cuidado por conta da Covid-19 e por isso não chamamos um trio de cordas, tivemos que reduzir o máximo possível. Infelizmente não dá para fazer isso com sopro, porque você precisa dos três tocando juntos (sax, trombone e trompete).

Pensamos em chamar um quarteto de cordas, mas depois chamamos só o Thiago Mello, que gravou os violinos do meu disco solo [Boa Sorte, lançado em 2019]. Ele mesmo foi refazendo os outros violinos depois, criando as linhas harmônicas, abrindo os sons que eu criava. Gostei muito desse disco porque pude explorar coisas que não consegui fazer tão bem quanto queria no meu disco solo. Criar os arranjos de metais, de cordas, de orquestra. Eu não tenho formação musical, não sei escrever música e não sei muito bem o nome dos acordes. Sou meio autodidata no processo de criação, mas adoro inventar os arranjos. Com esses caras, pude me dar ao luxo de cantar como seria o som. Eu quero que o trompete faça isso (imita o barulho de trompete), o trombone isso aí (imita o barulho de trombone) e os três somados dá aquela parada que a gente escuta. O violino a mesma coisa. Os caras são tão bons que eles não precisam ler. Eles escutam você fazendo e PÁ, executam. Pude brincar de criador de arranjo e foi diversão total.

Quando fica pronto você vê que o que tá tocando dentro da sua cabeça existe, funciona no mundo real. “A Vida é uma Aventura” me atormentou por mais de dois anos. Cada detalhe da música estava dentro da minha cabeça. Foi a única música onde todos os detalhes mínimos, até os (imita o barulho do violino) de violino estavam cozinhando no meu cérebro. Eu precisava colocar isso no mundo real. Por isso meu maior medo era o show. Eles não conseguem fazer isso [traduzir o som] ao vivo, precisa estar escrito. O Thiago Mello e o Cuca, do sax, fizeram isso pra mim e eu fiquei… com o cu na mão. (risos) Não sabia se ia funcionar ao vivo. Dizem que música é matemática, mas eu sempre tirei zero em matemática, só que dessa vez eu dei o troco nela.

Você já falou um pouco sobre sua experiência gravando solo, Luquinhas também já lançou bastante coisa nesse interlúdio da Maglore. O que mudou na experiência da Maglore depois que vocês tiveram essas aventuras solo? Como é o processo de distinguir o que é de vocês e o que é da banda?

Meu disco solo me atualizou de outras formas. Queria fazer isso porque precisava fazer um som sem os caras para entender por que eu não tava colocando algumas músicas na Maglore. No disco solo, entendi. Quando os caras ouviram, eles tomaram um susto. Luquinhas foi o primeiro a se apaixonar, “caralho, esse é um som que me inspira, que me motiva”, sendo que ele também já vinha fazendo outras coisas que tinham muito mais a ver com esse som do que com a Maglore. Os caras gostaram e eu consegui entender mais a diferença. Tanto é que usei elementos do disco solo na Maglore, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. É outro som. Mas foi gravado com o mesmo cara, praticamente com os mesmos microfones, Thiago Mello fazendo o violino e até o som do violino é diferente. Fui pegando experiência.

Luquinhas é um acúmulo de experiências ambulante, porque ele lança um bocado de música toda hora, ele não para. A gente até pede pra ele segurar um pouco a emoção, ir devagar, esperar para lançar o disco todo. Aí ele fala que vai lançar um disco completo, aquela música já não ia entrar em lugar nenhum (risos). Tá bom, vai lá. (risos) Eu sou fãzaço. Pra mim Luquinhas está no top 5 de maiores compositores do Brasil hoje, sem sombra de dúvidas. E está na minha banda, então tô tranquilaço. Andando de bicicleta com rodinha e as mãos levantadas.

Luquinhas foi crescendo na banda também ao longo desse tempo, né? Com mais composições e tal. Como funciona essa relação de vocês? Vocês escrevem juntos ou ele te mostra alguma coisa já pronta e vice-versa?

Sempre quis que alguém chegasse no nível de disputar single comigo no disco, obviamente de forma saudável. Sou super vaidoso, mas não tenho ego quando se trata de música. Luquinhas chegou nesse disco com algumas músicas e eu tinha umas que sequer apresentei pra banda, porque acreditava menos nelas. Acreditava mais no que ele estava apresentando. Não fiz a banda perder tempo decidindo, coisa chata. Quando a música é foda, você tem que ir aonde a música vai. E ele chegou com os dois pés na porta. O que foi natural.

O Lucas pegou o bonde andando no Todas as Bandeiras. Ele entrou na banda em 2017 e dois, três meses depois teve que gravar um disco. Não tinha como entrar esteticamente [na banda]. Ao mesmo tempo, como ele já conhecia a gente, sabia que a gente estava rumando para um lugar que era o mesmo que o dele, num embalo estético diferente. A primeira vez que tocamos juntos, falamos que não queríamos que ele só fizesse linha de baixo ao vivo, queríamos um integrante na banda e era isso que ele queria também. De 2017 para 2022, muita coisa rolou, fomos para lugares muito parecidos e foi natural essa transformação. Ele transformou a banda ao mesmo tempo em que a gente transformou ele. Tanto que ele veio num volume muito grande de criação solo logo depois de 2017. “Calma”, que ele colocou no disco, foi onde começou. Ele mostrava umas músicas e não tava legal, não parecia Maglore. Era a mesma coisa que acontecia quando eu apresentava uma música do meu disco solo e não tinha nada a ver com a Maglore. Aí ele foi pegando raiva. “Por que minhas músicas não estão entrando?” Aí um belo dia ele mostrou “Calma” pra gente. Falei: “Luquinhas, é isso aí, você entregou uma das melhores músicas do disco.”. Depois disso ele falou: “Bicho, quem são vocês? Chupa.” E foi fazendo o dele a torto e a direito até chegar nesse disco com um material foda.

“Os outros discos tiveram um caminho distinto do imaginário de cada um, e coletivamente a gente não conseguia pensar de forma tão homogênea. Nesse disco, basicamente, a gente imaginou a mesma coisa, pela primeira vez”

“Vira-Lata” passou por esse processo?

“Vira-Lata” não era boa em 2017, foi a música que ele trouxe pra Maglore quando entrou e foi uma das várias músicas que a gente disse não. Ele não estava acostumado a ouvir não, mas também se convenceu. Se a gente tivesse lançado em 2017 ia ser uma tortura mental, eu não ia conseguir dormir. Sou apaixonado por essa música há muito tempo, eu conheço essa música há muitos anos. Quando ele lançou sozinho, falei: “calma, velho, a gente vai chegar lá”. Mas ele lançou e depois não gostou, pelo menos é o que interpretei. Tanto que ele tirou do ar depois. Aí a gente pré-produziu o V aqui, descobriu a concepção de “Vira-Lata” e o safado foi lá e lançou uma outra versão, mas falou que a gente ainda ia lançar nossa versão na banda. Falei “Mas é CLARO!” (risos) Ladrão que rouba ladrão: rouba a gente que a gente te rouba de novo. (risos)

Mas a versão dele tem outras particularidades, ele encontrou depois de produzir com a gente. É ooooutra visão pra música, acho sensacional. É muito mais Minas, Beto Guedes com Bill Withers, do que a nossa. Sempre brinquei que essa música era piano, anos 1960, Beatles. Vamo orquestrar, trazer os elementos tipo “Resposta”, do Skank, uma das grandes canções brasileiras. É um dos meus sonhos, que um dia ela seja vista assim, acho que ela merece.

Desde que ouvi essa música pela primeira vez, e falo isso como um grande elogio, para mim é uma música de trilha de novela, casalzão de novela das nove.

Totalmente. Meu sonho é que um dia ela chegue lá.

Já a versão dele é mais melancólica, densa, você presta atenção na letra de outro jeito e fica meio bolada.

(risos) Sim, sim, faltou um baiano gritando.

Achei muito bonita a coincidência da música “Para Gil e Donato” ter nascido da mesma forma que uma música entre Gil e Donato, como o Gil conta no Acústico MTV dele, antes de tocar “A Paz”.

A gente que imitou eles, né? Eu estava dormindo e fui acordado por Luquinhas que estava aqui fritando, parecendo um menino de seis anos que não para nunca. Quando acordei, ele me mostrou e eu falei “Ah, meu João Donato, que isso!”, porque parece uma coisa meio João Donato, Luiz Melodia. Foi a única música que a gente fez junto nesse disco. Peguei um verso, meti uma harmonia do refrão, ele já botou um “Ver o mar”, eu falei “Interceder” e um completou o outro. Quando a gente viu [o resultado], falou “Pô, Gil e Donato!”, aí ficou a música pra eles. No disco anterior, tem “Valeu, Valeu” que a gente fez junto, mas são só essas.

Você tem falado muito sobre o mercado de hoje que tá muito focado nos artistas solo e menos na configuração de banda, algo meio personalista. Tenho visto você se aventurar um pouco na produção de conteúdo, fazendo reels no Instagram, puxando a frente da divulgação nos seus perfis – o que sempre foi parte do jogo, mas hoje é extremamente determinante. Como é esse lugar pra você?

Esse negócio de rede social estava começando a ficar tenso entre a gente. Ninguém, de fato, gosta de postar. Eu não tenho disciplina para postar e divulgar os trabalhos toda hora, não sei jogar esse jogo do jeito que tem que ser jogado. Obviamente, você colhe as consequências disso. Eu sou de outra geração. Luquinhas – o negócio dele é tocar e fazer música 24 horas por dia. Leo [Lelo Brandão, guitarista e tecladista] e Didi [Felipe Dieder, baterista] tem outra cabeça também. Não tem como a gente acompanhar. Não consigo abrir o TikTok, me sinto um senhor de 70 anos pegando um iPhone pela primeira vez. Não sei apertar os botões, e olha que eu sou gamer. A gente estava meio tenso com isso, não estava rolando. Como as pessoas vão saber dos shows se a gente não posta? Por milagre? Aí chamamos uma pessoa pra ajudar a gente, uma queridíssima, Alice. Ela começou a fazer as redes da Maglore e na primeira semana ganhamos três mil novos seguidores. O que diabo a gente tava fazendo? (risos) Tava fazendo tudo errado.

Aí comecei a ver como isso deve ser trabalhado, porque existe uma ciência. É uma assessoria de comunicação, só que, em vez de ser para a imprensa, é diretamente para o público. É uma coisa que tem que ter hoje e não entendíamos isso muito bem. Alice traz demandas, é um trabalho que não tem como fazer sozinha, então ela começou a mostrar vídeos [de referência] e fui tentar. Me descobri vlogger nesse meio tempo e a galera começou a mandar muita mensagem querendo mais. Eles falam que sou muito bom nisso, mas eu não queria ser não (risos). Mas tem que fazer.

Agora você curte ou é uma coisa que você faz porque tem que fazer?

Não tem nada na minha vida que eu não faça sem dar um jeito de me divertir. Consigo me divertir fazendo, dou risada olhando a minha cara falando besteira. Mas se me perguntar se quero que isso seja meu trabalho, aí não. É parte do trabalho, eu faço, mas não seria um vlogger. Tem gente que tem essa profissão, de passar o dia conversando com os outros na internet, fazendo vídeos, memes, piadinhas… não sei se tenho paciência ou disciplina pra isso. É difícil pra caralho, véi. Antigamente eu falava mal, mas hoje eu sei o trabalho e é muito grande. Tem que informar, entreter, garantir continuidade, criar… criar conteúdo é muito difícil, velho.

Outra referência que me chamou atenção no V foi Wilco. Sinto que vocês falam de um lugar parecido com o do Jeff Tweedy. O Ode To Joy (2019) tem muito essa mistura de brisas existencialistas, morte, um país desgraçado, mas também doçura, amor, esperança. Essa conexão foi acidental ou uma referência que você quis trazer de forma mais intencional?

Wilco é uma banda que todos da Maglore amam. Yankee Hotel Foxtrot, Sky Blue Sky, até Star Wars que não é tão unânime. Não existe a intenção de imitar ninguém não, mas vendo os arranjos que saíam a gente dava uma olhada pro outro e dizia “haaaa, eu sei de onde tá vindo isso aí” (risos). Mas continuava, porque era natural. Uma hora a gente entendeu: caralho, é o Wilco. Chegou a hora. Nos discos passados não tem nem um pouco de Wilco, mas nesse dá pra ver. Engraçado que o V tá pronto há muito tempo e ele dá uma pincelada no passado trazendo pro presente, uma música mais clássica com orquestração, meio Sinatra-Jorge Ben e eles lançaram o Cruel Country agora em 2022 que é bem isso também. O Wilco não é uma referência pra gente, mas nesse disco estava muito conectado. Acontece. São coisas que não se repetem na vida.

Queria saber como foi a experiência de estrear o V no palco e explorar as sonoridades que ele apresenta ao vivo. Quais foram as impressões agora que a estreia passou?

O primeiro show a gente tem muito cuidado de marcar, tem que ser especial pra gente. Se não fosse aqui [em São Paulo] teria que ser em Salvador. Foi a primeira vez que tocamos ao vivo com cordas e não sabíamos se ia ter volume junto com a guitarra de Lelão, que é alta pra caralho. Era muita incerteza. Depois que dei o acorde final e subi pro camarim, senti que podia dormir dois dias. Tava numa piração de tudo que poderia dar errado. Surpreendentemente, não lembro muito do show e eu não estava bêbado. Tava em outro lugar.

Mas de um jeito bom?

Muito bom. A droga foi muito boa, a que eu não usei. (risos)

Chamou atenção vocês estarem com as roupas coordenadas. Foi a primeira vez que isso acontece? Queria saber se essa escolha representa um momento de banda diferente.

A gente fez isso em 2017 no Todas as Bandeiras, no lançamento a gente tocou de preto e branco. Nesse disco, Lelo teve a ideia de usar as cores do disco e as cores da bandeira da Bahia, vermelho, azul e branco. Obviamente todo mundo disse sim. A gente comprou três camisetas, todo mundo tinha uma calça branca por sorte, não sei que banda brega do caralho é essa que todo mundo tem calça branca. Desempoeirei a calça branca e ficou legal. Acho bacana, as bandas de antigamente usavam muito, né? [roupas parecidas] Até já pensei em todo mundo tocar de terno, mas hoje em dia está meio batido demais, ainda mais terno e gravata, é um negócio que não vai ficar bonito. Mas é legal se vestir assim. A gente nunca ligou muito, nunca se importou. Mas um começou a se vestir muito parecido com o outro por convívio.

Você tem persona de palco?

Tenho não. Eu sou eu. Usaria essa roupa na rua, talvez não a calça branca, mas a camisa sim. (risos)

“Você tem todo o direito de ficar em silêncio e de não dar cara a tapa, mas sinto essa obrigação porque minhas músicas sempre falaram [de política]. Agora é um momento crucial, talvez o ano mais importante desde a redemocratização. Essa eleição é a mais importante de todas. Eu votaria numa pedra. Eu votaria numa pedra para tirar o governo”

Também sobre o show, você comentou no Twitter que perdeu seguidores por falar do Lula no final. Queria entender o que rolou. Tem a galera que fala que não pode misturar arte e política, tem quem acha que se não falar de política não vale. Onde você se enxerga?

Só posso falar por mim. Jamais criticaria um artista que não quer se posicionar, mas talvez eu não admire um artista que não dialoga com seu tempo. Acho que hoje, se você está no Brasil, vai fazer um show no Brasil a meses de uma eleição que tem um cara dizendo que não vai obedecer a urna eletrônica, que não vai obedecer resultado de eleição, com um filho que convoca um monte de gente a ser voluntário armado, num momento de truculência onde a gente está tomando tiro porque defende partido… Acho que você ser um artista que se comunica seja com cinco, 10 pessoas num palco e não fala nada, desculpa, mas você está sendo omisso. Você tem todo o direito de ficar em silêncio e de não dar cara a tapa, mas sinto essa obrigação porque as minhas músicas sempre falaram [de política] desde o primeiro disco. Agora é um momento crucial, talvez o ano mais importante desde a redemocratização. Essa eleição é a mais importante de todas. Eu votaria numa pedra. Eu votaria numa pedra para tirar o governo. As pessoas falam que eu sou petista e de certa forma eu sou mesmo, se for comparar com o resto. Mas eu votaria numa pedra se o Lula não fosse candidato, eu votaria em qualquer outro que não fosse Bolsonaro. É nesse lugar que me encontro.

Às vezes as pessoas não esperam que o artista faça isso e às vezes perde seguidor, perde contratante. Muitos contratantes olham [o que a gente faz] e acham que não dá pra chamar. Esse é o ônus de se posicionar. Mas se eu puder fazer uma pessoa mudar de ideia, prefiro que cancele meu show, que eu perca seguidor.

A gente gosta de política, desde que sou adolescente e discutia com meus amigos almofadinhas no colégio sobre liberalismo econômico. Toda noite eu tinha que assistir aquela baboseira de Manhattan Connection para debater com os meus amigos ricos, filhos de empresário, sendo que meu pai é professor e minha mãe é assistente social. Sempre, sempre, sempre, sempre fui apaixonado por política, sempre acreditei pra caralho e os caras também. É natural isso vir nas músicas e nas músicas de Luquinhas está vindo cada vez mais. Como a gente é uma banda independente, não tem como fazer canção, contar história sem falar de política. Estamos desde 2010 rodando o país, vendo um monte de coisa de política pública, política cultural… É impossível não escrever sobre isso. Tem gente que diz que a gente é profético mas não é, só estou observando o que está acontecendo e escrevendo sobre isso. Se você estivesse escrevendo, também iria acertar.

No Vamos Pra Rua teve o lance dos 20 centavos e lembro que eu já estava sacando para onde a coisa tava indo, a cooptação [do movimento]. A gente fez um show no Studio RJ e uns amigos muito engajados estavam lá postando sobre o show e eu fiz uma declaração dizendo que não estávamos fazendo politicagem com nenhum movimento [por conta do nome do álbum]. Pegou super mal, porque na época a galera acreditava que era um movimento genuíno [as Jornadas de Junho], o nome do disco era “Vamos Pra Rua”, mas a gente queria tirar o nosso da reta estava sentindo para onde [a coisa] ia. A gente nunca tinha entrado a fundo na política por ter receio de ser usado. Teve quem disse que a gente fez o disco pra surfar na onda das manifestações, sendo que ele foi lançado em maio. O lance é estar observando a sociedade. Observar a sociedade com a terapia em dia ajuda a ver para que buraco a gente tá indo.

Para encerrar de um jeito leve, outra referência que chama atenção no V são os Beatles. Está no design da capa, nas roupas, na cabeleira de vocês, temas, sonoridade e até na conexão de momentos históricos. Queria ouvir de você como foi trazer algo tão robusto para esse som, mas não daquele jeito óbvio, que já fizeram mil vezes. Rola uma responsa, um medo de ser clichê?

Posso ser um pouco arrogante, mas a gente não teria tanta tranquilidade de mostrar a referência, que tá na capa do disco, bem óbvia, sem as músicas que temos. Com essas músicas a gente pode, confio nelas e sei que elas são de verdade, sei que não estou tentando imitar o John Lennon no meu quarto. Existe uma diferença entre usar um artista como referencial e usar para chegar num lugar quando você ainda não sabe o que quer. A gente ama Beatles e sabe que é uma coisa batida usar Beatles, mas tem tanto tempo que não aparece [referência de Beatles] que quisemos relembrar um pouco. Todo mundo tem medo, mas vamo lá, velho. Vamo brincar de Beatles também. Essas músicas não foram feitas para imitar os Beatles não, elas foram feitas de verdade.

Agora que você tá virando Tiktoker já pode falar igual os jovens que vocês tankaram os Beatles.

(risos) Caralho, aí a gente não vai tankar o Twitter, vai ser foda.

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ARTISTA: Maglore