O homem invisível

Você é fã de várias músicas que não existiriam sem ele, mas o seu nome, você não conhece. Aqui, uma retrospectiva da brilhante parceria entre Ludwig Göransson e (ninguém menos que) Childish Gambino

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Sueco, 34 anos, de cabelos longos esvoaçantes, xará de Beethoven, longe das conexões mais badaladas do hip hop e com uma carreira iniciada em meio à correria e ao “toque de caixa” das trilhas sonoras da TV. Como – em pouco mais de cinco anos – Ludwig Göransson se tornou um dos produtores musicais mais quentes de Hollywood, levou os prêmios mais desejados do Grammy e do Oscar, é presença comentada para o próximo álbum de Kanye West e ainda senta na mesma mesa que Hans Zimmer e Terence Blanchard?

A saga musical de Göransson começou discreta, distante do estrelato, e seguiu um caminho convencional: o do estudo. Depois de aprender o básico de composição com seu pai e de se formar no colegial em Estocolmo, ele se mudou para Los Angeles para estudar Trilha Sonora de Filme e Televisão na USC (University Of Southern California). Lá, virou assistente de Theodore Shapiro, seu primeiro mentor artístico e compositor responsável por trilhas de filmes como Marley & Eu (2008), As Loucuras de Dick e Jane (2005) e Trovão Tropical (2008).

“Onde eu estou na minha carreira agora, não tenho tempo de parar e pensar se estou inspirado ou não. Não importa, porque há muita coisa para fazer sem se questionar. Apenas sente e comece a trabalhar.”

Talvez por influência de Shapiro, os primeiros trabalhos autorais de Göransson foram em comédias. Em 2009, ele compôs a trilha do seriado Community, pérola da NBC criada por Dan Harmon, que, posteriormente, ficaria mundialmente conhecido pela animação Rick & Morty. As canções e vinhetas compostas para o programa já mostravam seu talento para criar uma atmosfera marcante a partir da música. Entretanto, como o próprio Göransson afirmou em entrevista ao portal WhatCulture na época, a demanda do mercado sempre acaba sendo um obstáculo para a tão desejada inspiração. “Eu não acredito que você precisa estar sempre inspirado de verdade. Onde eu estou na minha carreira agora, não tenho tempo de parar e pensar se estou inspirado ou não. Não importa, porque há muita coisa para fazer sem se questionar. Apenas sente e comece a trabalhar.”

Durante a época em que compôs para Community, Göransson também passou a assinar a trilha de outras produções de comédia, como a injustiçada Happy Endings e a bem-sucedida New Girl, estrelada por Zooey Deschanel. Mas, foi a série criada por Dan Harmon que promoveu o encontro decisivo para a sua carreira. Göransson, entre uma composição e outra, iniciou uma amizade com Donald Glover a.k.a. Childish Gambino (ou “Troy”, para quem assistia a Community).

Na época, Glover era apenas – mas já – um ator/roteirista/escritor rapper tentando achar seu lugar ao sol no showbiz. Em meio a roteiros para 30 Rock, shows de stand-up comedy e o trabalho em Community, ele seguia tentando engatar a carreira como rapper lançando mixtapes que ainda não haviam conseguido fazer barulho. O contato com Göransson foi o embalo que Glover precisava e o resultado da primeira parceria foi Culdesac (2010), o projeto que, apesar de questionável, colocou Childish Gambino no mapa. Com sample de “Melt My Heart to Stone”, faixa do álbum de estreia de Adele, o principal êxito da mixtape foi “Da Ya Like”.

Ainda que desde o início tenha angariado fãs, é inegável – mesmo que às vezes seja um tanto esquecido por aí – que Gambino demorou um tempo considerável para conquistar a crítica e atingir o patamar no qual se encontra atualmente. Por um período, ele manteve uma condição de underdog do Hip Hop, não era tão levado a sério como MC e o conteúdo de suas letras era invariavelmente questionado. Seu trabalho seguinte, Camp (2011), também produzido por Göransson, chegou a levar a nota 1.6 em uma impiedosa resenha da Pitchfork e nota 2, de Anthony Fantano, do canal Needle Drop. O interessante da evolução de Gambino e da fase estelar que ele engataria principalmente na segunda metade da década é que ela coincide, também, com a “hora e a vez” de Göransson. Os dois agregaram (multi) talentos e as obras que produziriam em parceria acabaram tornando-se decisivas para o status que ambos desfrutam atualmente.

Antes de produzir Because The Internet (2013), primeiro “grande” álbum de Gambino, Göransson assinou trabalhos que o colocaram de vez na rota da produção mundial, enquanto também se dedicava a outras trilhas sonoras para a televisão. Entre eles, vale mencionar as parcerias com o Haim em “Forever” e “Better Off”, destaques do celebrado disco de estreia do trio, Days Are Gone (2013), e “Interlude (That’s Love)”, de Chance The Rapper.

A virada

Com Because The Internet, a dupla Gambino X Göransson começou de fato a colocar a cabeça para fora do mar do underground e cair nas graças da crítica musical. Além de ter sido indicado ao Grammy de Melhor Álbum de Rap, o projeto evidencia um crescimento criativo – tanto do cantor quanto do produtor – em singles de peso como “Sweatpants”, “The Worst Guys” e “3005”. Gambino parece mais à vontade para mandar suas rimas e o amigo sueco, da mesma maneira, mostra que o período ao lado de Glover refinou sua produção para o Hip Hop e o R&B. Em entrevista ao Hip Hop DX em 2014, Göransson contou que, ao ouvir o que Gambino imaginava – e já havia rascunhado – para o disco, teve que “elevar seu jogo” de produção. Uma demonstração de que a sintonia dos dois parte muito dessa ideia de estímulo mútuo entre os diferentes talentos colocados sobre a mesa.

Com o fim de Community em 2015, Göransson encontrou tempo (e inspiração) para trabalhar em uma trilha sonora longe das exigências mercadológicas dos seriados. O resultado foi a epopeia sonora em Creed (2015), o primeiro filme do spin off – e sequência – do clássico Rocky. Ele já havia trabalhado ao lado do diretor Ryan Coogler em Fruitvale Parade: A Última Parada, em 2014, e repetiu a dobradinha no blockbuster que, como o antecessor, também é estrelado por Michael B. Jordan. Ainda que influenciado, como não poderia deixar de ser, por Bill Conti, compositor da lendária trilha de Rocky, Göransson modernizou os tons épicos da história do boxeador com sua bagagem de sampleador – adquirida produzindo para Gambino e adentrando o universo do Rap.

Além de conduzir uma orquestra com mais de 100 instrumentos e um coral de 24 integrantes, ele inseriu beats e graves típicos das produções de Hip Hop e recortes a partir de diversas gravações de academias de boxe. “Lord Knows/Fighting Stronger” transita entre elementos dos dois mundos e ainda traz a participação de Meek Mill e Jhene Aiko.

Após, em 2014, ter retomado a parceria com Gambino em “Sober”, Göransson se juntou novamente ao amigo para o álbum que, definitivamente, colocaria o cantor e o produtor em outro nível: Awaken, My Love! (2016). O ponto mais alto da discografia do rapper aponta caminhos tão diferentes que chega a ser bastante impreciso continuar colocando Gambino somente dentro da definição “rapper”. Indicado ao Grammy de Álbum do Ano, AML é uma viagem por Jazz, Soul e Funk e que bebe das fontes de Funkadelic, Prince, Sly & The Family Stone e seja lá o que entrou no caldeirão de influências da duplinha dinâmica durante as sessões de estúdio. “Me and Your Mamma”e “Baby Boy” são alguns dos destaques do repertório cujo indiscutível ápice é “Redbone”.

Composta a partir de uma jam de Gambino na bateria e com elementos – ainda pouco creditados – de “I’d Rather Be with You” , da Bootsy’s Rubber Band, “Redbone”, além dos falsetes certeiros e irresistíveis, mostra todo o arsenal musical de Göransson. De diversos sintetizadores a violões de nylon e guitarras cheias de reverb, de harmonias encavaladas a sobreposições de texturas graves e agudas, “Redbone” é mesmo o pacote completo de um produto orgânico e ao mesmo tempo comercial. O vídeo abaixo, feito pelo Genius, deixa claro o trabalho de formiguinha de Göransson ao dar frescor à psicodelia setentista sem perder o groove na faixa que chegou ao topo da parada de R&B da Billboard e arrebatou o gramofone de Melhor Canção de R&B Tradicional no Grammy, além de ter sido uma das indicadas a Canção do Ano.

Depois dos triunfos no Grammy e do sucesso de Awaken, My Love!, Glover foi aprontar mais uma das suas maravilhas em Atlanta e Göransson recebeu um convite de Ryan Coogler para uma colaboração dos sonhos: a trilha sonora de Pantera Negra (2018). O primeiro filme do herói da Marvel (e o 18º da Marvel Cinematic Universe) foi a maior bilheteria do cinema norte-americano no ano passado e contou com Kendrick Lamar como o curador do repertório de canções originais. Para compor a trilha sonora da jornada do Príncipe de Wakanda, Göransson viajou até a África e mergulhou em todas as sonoridades possíveis do continente. “Eu rapidamente percebi que não havia outro jeito de criar a trilha sem viajar até a África, imergir naquela cultura e aprender com os músicos de lá”, contou em entrevista a Complex. Para o tema de Killmonger, o anti-herói (pero no mucho) protagonizado por Michael B. Jordan, o sueco agregou as técnicas que vinham de sua experiência no Hip Hop – as batidas 808 – às flautas tradicionais africanas e ainda colocou o tempero de uma orquestra de música clássica. “Esses três elementos flutuam sobre o personagem. A medida que seu poder cresce e ele começa a tomar Wakanda, o tema cresce junto com ele”. Um mosaico organizado entre música clássica, um banger de rap e tradições africanas, o resultado é primoroso.

Para “Wakanda”, tema que inicia o filme, Göransson convocou Baaba Maal, artista senegalês com o qual viajou em turnê durante o período na África. Além da arrebatadora voz cantando sobre a morte de um elefante na savana africana, a faixa ainda recebeu o toque do chamado Tambor Falante, que acabou virando uma das marcas registradas da trilha ganhadora do Oscar de Melhor Trilha Original neste ano. “Quando fui ao show de Baaba Maal, assim que ele começou a cantar, foi como acordar de um coma e eu quis recriar esse momento a partir da trilha. A música é da África. Eu jamais poderia compor essa trilha sem ir até lá passar um tempo com os Griots, ouvir suas histórias e conhecer os ritmos que vêm sendo passados de geração em geração”, disse em entrevista ao Genius.

A estatueta do Oscar teve de arranjar espaço na prateleira de Göransson, porque duas semanas antes ele chegou em casa com quatro gramofones do Grammy, incluindo os de Canção do Ano e Gravação do Ano. E isso pode ser explicado em três palavras: “This is America”. Donald Glover também vinha de uma sequência de êxitos impressionante, levando o Globo de Ouro de Melhor Ator e Melhor Série de Comédia por Atlanta. Eis que chegava, novamente, a hora de colocar de novo a roupa de Childish Gambino. O retorno foi uma porrada com clipe marcante e produção de Göransson. Enquanto Gambino solta suas rimas sobre a violência nos Estados Unidos, o beat de “This Is America” traz um trabalho de percussão polifônico e maravilhoso – influência da trilha de Pantera Negra? – e uma linha de voz regada a Gospel que serve como respiro para a batida imponente e os graves gordos. Ainda tem ad-libs cantados por Quavo, 21 Savage e Young Thug que deram ainda mais poder e carisma à faixa, o primeiro número 1 da carreira de Childish Gambino no Hot 100 da Billboard. Com vídeo lançado de surpresa e atualmente ultrapassando a marca de 550 milhões de visualizações no YouTube, “This Is America” é uma das canções mais icônicas dessa década.

A última dobradinha da dupla foi o EP Summer Pack, lançado por Gambino em julho de 2018. Mas, até o momento, essa é a história do sueco que, tal qual Quincy Jones, é capaz de transitar por trilhas sonoras e hits radiofônicos e ser (muito) bem-sucedido em ambos. Além de receber elogios calorosos de Hans Zimmer, Ludwig Göransson é mais um dos tantos sintomas que apontam para o impacto sonoro do Hip Hop enquanto força inescapável e de que as ideias musicais mais inovadoras da atualidade podem, sim, partir de uma MPC que entrega um beat para um rapper. E como é lindo ver essa combinação flutuar até as trilhas sonoras orquestradas vencedoras do Oscar.

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