Otávio Castro é a gaita e a banda toda

O gaitista e multi-instrumentista carioca fala sobre ampliar possibilidades sonoras – e retirar estigmas – da gaita e destrincha seu mais recente álbum, “Dale!” (2022)

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Fotos: Divulgação

Edu da Gaita é uma das primeiras e mais marcantes figuras da gaita no Brasil. Nascido em 1916 no Rio Grande do Sul, em Jaguarão, cidade na fronteira entre Brasil e Uruguai, ele começou a competir nos concursos de rádio ainda na infância e foi, assim, ganhando prêmios. Veio para São Paulo tentar a carreira de músico profissional, pulando de trabalho em trabalho, e depois seguiu para o Rio de Janeiro. Pode parecer difícil rastrear a presença da gaita na música brasileira, mas basta, por exemplo, lembrar-se de versões de “Tico Tico no Fubá” e “Brasileirinho” para entender o valor popular do instrumento. A mais famosa do Edu da Gaita vem, no entanto, da música erudita: trata-se de uma interpretação de “Moto Perpetuo”, de Paganini. É que Edu da Gaita era um competidor. “Edu dignificou a harmônica porque muita gente com violino não conseguia tocar o que ele tocava. Ele tocava coisas difíceis. Ele ganhava prêmios. Bom de briga mesmo. Fumante, magrelo e indignado com as coisas”, diz Otávio Castro, de 41 anos, gaitista e multi-instrumentista carioca que vê Edu da Gaita como referência incontornável na história da gaita no Brasil.

“Edu da Gaita dignificou a harmônica porque muita gente com violino não conseguia tocar o que ele tocava. Ele tocava coisas difíceis, ganhava prêmios. Bom de briga mesmo. Fumante, magrelo e indignado com as coisas. Assim como o Edu dignifica a harmônica, o que eu tenho feito é dignificar a diatônica, que foi muito estigmatizada pelo blues”

“Assim como o Edu dignifica a harmônica, o que eu tenho feito é dignificar a diatônica, que foi muito estigmatizada pelo blues”, dispara. Esse estigma a que o músico carioca se refere é a ideia de que a harmônica diatônica é um instrumento que toca somente uma tonalidade. A gaita se populariza no século 20 quando começa a ser distribuída para jovens combatentes da Primeira Guerra Mundial e, assim, o instrumento chega aos Estados Unidos. Em solo americano, a gaita vai parar na mão dos trabalhadores. “O blues tem uma presença muito grande nos presídio e nas fazendas de algodão, com as work songs”, explica Otávio. “Todas as work songs eram trabalhadas na voz e com o som do próprio trabalho, seja cortando pedra, pau, arando solo. Quando a gaita chega, ela é tocada com força, com fôlego. Esse contexto social conta com um instrumento que trabalha o acorde dominante e o fundamental, que são os acordes de preparação, mais angustiante, e o de resolução. A grande reviravolta da música no século 20 é que os negros americanos criaram um gênero musical todo em cima do acorde dominante somente. Como ele é angustiante, tem o tensionamento, ele é o melhor acorde para representar o lamento do blues. A música negra começou a se tornar uma música de muita tensão. Aquele blues rasgado, sabe? É uma música que não se resolve.”

Muitas vezes protagonista no blues, a gaita ficou conhecida mundialmente como instrumento de um tom só. Ainda que, nos anos 1970, a harmônica já fosse entendida como semicromática por conta da mobilidade das palhetas da gaita — cada gaita diatônica tem duas palhetas de 10 furos dentro dela, que podem ser reguladas com a boca —, quando Otávio chegava para fazer participações especiais com outras bandas, ele notava que a gaita era sempre vista como um instrumento café com leite, limitado. E isso, é claro, gerava muito incômodo no jovem músico — o que é muito curioso porque o próprio Castro começou a tocar gaita depois de sacanear um amigo que mostrou o instrumento para ele. Quando o auge de ser descolado era tocar cover de Megadeth e Metallica, o instrumento de menos de 17,5 centímetros de largura por 2,5 centímetros de altura parecia um pouco singelo demais. Mas foi só ouvir desse mesmo amigo que o blues é o pai do rock que Otávio se dobrou.

Ao dar aulas para um aluno que queria tocar tudo em uma gaita só, Otávio transformou sua relação com a harmônica diatônica. Mais tarde, entendendo melhor o mecanismo da gaita, chegou à conclusão de que a harmônica diatônica é, na verdade, cromática. Se Howard Levy transformou a história da diatônica pelo seu uso cromático, pela sua forma de tocá-la, Otávio Castro é hoje o brasileiro que toca qualquer música com uma gaita só. A tendência é que cada vez mais pessoas façam isso e Otávio tem se dedicado a espalhar esse conhecimento, decidido a transformar a história do instrumento. “Eu tenho feito muitas lives sobre isso e tentado popularizar ao máximo porque a harmônica diatônica é um instrumento muito barato, entre R$ 400 e R$ 500, e tem o mesmo número de notas de uma flauta transversal, então a gente consegue popularizar esse instrumento para pessoas mais pobres e também para pessoas com mobilidade reduzida. Eu já dei aulas para uma pessoa tetraplégica e o único instrumento que ele conseguia tocar era a gaita, entende?”.

“Eu não sou virtuoso em todos os instrumentos, então quando faço um disco como esse, o foco é a música, não a performance individual. Mas essa coisa de gravar todos os instrumentos me faz recuperar meu passado. Permitir que o processo criativo tome a minha história desse jeito é muito carinhoso”

No processo de Dale! (2022), Otávio usa três gaitas: a harmônica cromática – também conhecida como gaita de chave porque tem um botão lateral que inverte a passagem de sopro e, por isso, acessa uma segunda sorte de tonalidades; a harmônica diatônica, que é a tal da gaita do blues; e a gaita harmônica baixo, de som ímpar e grave que performa muito bem, como o nome anuncia, como baixo acústico. “Faço a linha da gaita baixo como fundamento do acorde, uso a cromática para abrir as notas e a diatônica vem por cima solando”, conta. “E, se ouvir o disco com atenção, dá para perceber que eu canto todas as melodias — eu deixo minha voz bem baixa porque, pra mim, é como um pedal analógico.” Além disso, Otávio grava toda a percussão, contrabaixo e teclado do disco. Atabaque, conga e zabumba comanda a percussão do álbum, além de outros instrumentos tradicionais indígenas que foram presentes de seu pai, Everardo Castro, músico que participou ativamente da construção sonora da bossa nova. Durante o estudo de campo para composição do poema sinfônico “Amazonas”, Everardo viajou com João Donato para passar sete dias na Amazônia e, nessa ocasião, ganhou estes instrumentos musicais nativos – hoje, parte do repertório do filho, Otávio Castro.

A aventura de tocar o disco todo sozinho surgiu em Natiumbi (2020), quando Otávio temeu que algo pudesse acontecer com ele durante a pandemia de Covid-19 e decidiu registrar músicas autorais e canções que atravessaram sua vida, como “E Nem dá Pra Dizer”, de Hermeto Pascoal, e “Viver de Amor”, de Toninho Horta. Na sua casa no meio da floresta da Tijuca, entre quatro cachorros e dois gatos, o músico passou a gravar uma faixa por dia, mesmo sem o total domínio do seu home studio. “Natiumbi foi o disco que me revelou como multi-instrumentista e eu nunca quis esse nome pra mim porque é muita responsabilidade”, afirma. “As pessoas que tocam outros instrumentos se dedicam muito. Mas foi um efeito da pandemia. O mais louco é que as pessoas começaram a dizer que a banda era boa. ‘A banda é unida’, comentavam.” O primeiro álbum de Otávio foi Promessa (2019), um disco de choro, seguido de Bom Retiro (2019), mais jazzeado, e Natiumbi (2020), que tem a pegada da MPB. Logo em seguida, por meio de um edital, conseguiu gravar um disco ao vivo ao lado de um pianista e um contrabaixista, Intensidade (2021). Seu último lançamento é Dale!, em que retoma todo o controle criativo.

Dale! foi feito com mais tempo, menos pressão e mais domínio das possibilidades do home studio. Segundo Otávio, a vantagem de tocar tudo é poder ser fiel ao arranjo e não negociar a condução de nenhum instrumento. Por outro lado, esse processo impõe que o músico encare suas próprias limitações. “Eu não sou virtuoso em todos os instrumentos, então quando eu faço um disco como esse, o foco é a música, não a performance individual”, elabora. “Mas essa coisa de gravar todos os instrumentos me faz recuperar meu passado. Quando eu tocava, ainda menino, percussão com minha irmã ou minha adolescência de baixista roqueiro… Meu passado todo vem comigo e permitir que o processo criativo tome a minha história desse jeito é muito carinhoso”.

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ARTISTA: Otavio Castro