SINAPSE: sair do quarto e encarar as ondas

Thanya Lyer, Ava Rocha, Jards Macalé e “Movimento dos Barcos”

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (sempre às quartas-feiras).

MOVIMENTO DOS BARCOS

Jards Macalé, Ava Rocha e o descanso

 

A musicista canadense Thanya Iyer lançou no mês passado um álbum chamado rest (“descanso”). As músicas são calmas e ensolaradas, mas o título faz pensar em uma leva de trabalhos artísticos que foram gestados durante a pandemia. Mais especificamente, sem transformar a quarentena em um tema em si, rest parece tentar digerir o que o período de interrupção significou em nossas vidas.

Ela diz: “rest é, em muitos aspectos, um reflexo de mim mesma, fazendo a pergunta: ‘quem sou eu quando tudo para?’”. Ficar presa em casa indefinidamente permitiu que Iyer tirasse o período para fazer uma “crítica do descanso”, eventualmente voltando a escrever músicas como parte de sua nova prática.

O álbum exibe a voz de Iyer e um piano em primeiro plano, e, no fundo, violoncelos, oboés e clarinetes oferecem um papel de parede texturizado. A artista canta sempre com gentileza e paciência, como se, ao fazê-lo, estivesse sorrindo. O clipe de “Leave the Room and Face the Waves (“saia do quarto e encare as ondas”) reflete essa calmaria: ela aparece deitada na cama, respirando devagar e com os pés encostados na parede,

Recentemente, um tweet viralizou dizendo que “o tanto de música brasileira falando sobre sentar é o reflexo de uma sociedade cansada”. O sucesso momentâneo da piada não parece se dar ao acaso, misturando desejo reprimido e esgotamento que caracteriza os anos desde o início da pandemia.

A música “Movimento dos Barcos”, de Jards Macalé e José Carlos Capinan, foi composta em 1972. É claro que não tem nenhuma relação com as crises contemporâneas, mas é inevitável escutá-la a partir do nosso ponto de vista. Nela, Macalé canta: “Estou cansado e você também / Vou sair sem abrir a porta / E não voltar nunca mais / Desculpe a paz que eu lhe roubei / E o futuro esperado que eu não dei / É impossível levar um barco sem temporais”.

A música foi originalmente lançada por Maria Bethânia no seu show Rosa dos Ventos, de 1971. Jards viria a gravá-la no ano seguinte, em seu álbum de estreia. Desde então, ganhou várias versões no cancioneiro brasileiro. A cantora Eliete Negreiros chegou a escrever sobre a importância da música em seu repertório, associando a canção ao estado de espírito dos anos 1970, onde “transitoriedade, transformação, impermanência, descoberta de si, do outro, do mundo, mudança de costumes” eram palavras de ordem na contracultura.

Uma das pessoas a gravar “Movimento dos Barcos” foi a artista interdisciplinar Ava Rocha. No vídeo para a sua versão da canção, ela aparece encarando as ondas do mar. O vídeo dá um zoom em direção ao mar revolto, e depois retrocede ao início. Parada, a artista observa, como se simultaneamente descansasse e lamentasse o eterno movimento da vida.

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Autor:

é músico e escreve sobre arte