Thiago Pethit e o Mal Estar da Consolação

“Olhando a trajetória de qualquer artista, a gente entende melhor quem ele é à medida em que ele se coloca no mundo”, conta o músico

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Fotos: Monkeybuzz

PRÓLOGO

2010, 2012, 2014 – Não era difícil prever os passos de Thiago Pethit há poucos anos, quando seus três primeiros discos foram espaçados com o mesmo intervalo. O que mudava a cada um eram os conceitos próprios a cada obra, refletidos em personas no eu-lírico e nos palcos, como se ele fosse um a cada disco. Só impressão.

Assumidamente controlador, o paulistano recortou facetas suas e imprimiu nos três lançamentos, guiando as narrativas – tanto as dentro das obras, quanto as histórias que contamos sobre ele. Aquela “trilogia” da primeira metade da década funciona isoladamente como uma pequena jornada do artista romântico (Berlim, Texas) que cria uma ilusão irônica dentro de seus dramas (Estrela Decadente) e, por último, encontra um novo status autoprojetado (Rock’n’Roll Sugar Darling).

Mas eram outros tempos de um outro Brasil. 2016 não seguiu as regras do jogo que o próprio Pethit inventou e, em um país aos berros, sua voz não cantou. Entre livros, filmes e um novo bairro para morar, Pethit coletou inspirações em outro(s) ritmo(s) de trabalho e, assim, nasceu Mal dos Trópicos.

ATO I – A CIVILIZAÇÃO

Ele disse nunca ter feito uma festa de audição de disco, disse também que até pensou em marcar uma e não ir (escrevo sem aspas, porque recito de memória), mas lá estávamos dois dias antes do álbum chegar às plataformas de streaming para escutarmos em primeira mão aquela obra cujo subtítulo lê-se Queda e Ascensão de Orfeu da Consolação.

Falou ele que o lugar não poderia ser outro, já que L’Amour foi o único inferninho que frequentou na vida – justo na época em que trabalhava em Mal dos Trópicos -, daí a casa ser cenário (como ele bem explicou gesticulando em voz dramática) da cena que serve de clímax no registro, bem na faixa-título, quando as Bacantes devoram Orfeu naquela calçada do centro e ouvimos:

“Essa é uma história de amor e maldição
Dizem que o amor é um mal dos trópicos
Mas a fome é mais veloz
A cabeça coroada, estandarte na calçada
Ouro e royal azul
A serpente suicida enrolada ao teus pés
Em frente ao L’Amour”

A esse ponto no disco (faixa 8 de 9), São Paulo já foi apresentada e estabelecida como o cenário da tal queda e da tal ascensão. É o “beijo no Copan” mencionado em Orfeu, ou, antes do já citado trecho na música Mal dos Trópicos, ele cantar: “Essa é uma história de amor e maldição/Na República ao som do Techno”. O berço do músico, sua cidade de criação, criações e malcriações, ganha ares mitológicos sem perder suas raízes contrastantes e dicotômicas, como explicitado no primeiro clipe da videografia Mal dos Trópicos.

São Paulo é a anti-heroína de toda a história. É ela quem oferece, principalmente em sua noite, as mais diversas oportunidades do indivíduo saciar os seus desejos mais primitivos, seja no contato dos corpos ou no entorpecer os sentidos. Ao mesmo tempo, a capital é o pólo nacional da cultura do trabalho e de tudo o que nasce a partir dessa dinâmica, principalmente a inibição dos desejos para o funcionamento dessa máquina.

“Pelos bares da Consolação”, o eu-lírico esculpido por Pethit para a obra busca o carnal, o impulsivo, o mundano. Há uma tensão que não se sabe se vem dessas escolhas serem respostas à intimidação dos desejos que essa sociedade impõe, como se essa sua jornada nascesse do descontentamento de um modo de vida pouco humanizado (não é incorreto se lembrar que, em meio a esse modo de vida, ainda nasceu a cultura de redes sociais), ou se a trajetória surgiu espontaneamente de acordo com cenas e personagens que Orfeu descobriu ao longo da vida. Tudo leva a crer que a primeira opção é a válida.

ATO II – O INDIVÍDUO

Eu estava com muita saudade de ouvir a minha voz, de cantar mesmo, mais do que fazer uma performance”, Pethit conta enquanto bebe café na sala de sua casa, entre seus livros e um piano. A tarde oscila entre a garoa e o calor abafado, e o céu que intercala cinza, azul e diferentes intensidades de luz combina com a Santa Cecília, bairro central em SP onde ele mora há dois anos e observa da grande janela da sala (aquela vista nas cenas principais de Orfeu).

“Estava com saudades de como é fazer um show em que uma grande importância é o que sai da minha garganta, o meu sentimento nesse timbre, poder respirar entre as frases musicais – porque os shows dos últimos dois discos eram muito mais alucinantes, a performance talvez contava mais do que a expressão. É o prazer de se ouvir, de comunicar um sentimento com a voz. Essas músicas nasceram com essa relação de saudade de me ouvir”

Ele conta que enxerga o novo disco de maneira parecida com seu primeiro: “No Berlim-Texas, eu tinha um tesão muito particular, o de descobrir como fazer música um pouco livre do que significa o depois que você lança, sabe? Porque, depois do lançamento, o mundo te responde e você acaba vendo um monte de coisa, que não dá pra fazer isso, ou que precisa fazer aquilo, e você fica um pouco mais cínico em relação ao fazer – cínico no sentido de analítico. É menos um processo de fruição e prazer, e mais da cabeça. Eu achei que isso nunca mais fosse acontecer, que eu nunca mais conseguiria fazer música dessa maneira e, enfim, acho que isso faz parte. Me lembro quando era ator e eu tive a mesma sensação nos primeiros papéis, de um prazer muito grande e, depois, você vai ficando mais analítico. Mas eu voltei a fazer música porque me deu tesão de fazer, uma sensação muito parecida com o que tive no primeiro disco”.

Sabemos bem, a nostalgia é um terreno seguro para aqueles que estão insatisfeitos com o agora. No entanto, querer voltar aos processos familiares ao início da sua carreira é muito mais um contato consigo mesmo sendo reaprofundado. Ele conta que, na entressafra de shows e gravação, ele ficou dois anos longe das redes sociais e, rindo, brinca: “Foi a melhor época da minha vida”. Estar longe dos palcos, inclusive o do Instagram, fez Thiago conhecer mais de si para, em sua agitação criativa, desenvolver o novo disco.

“Em geral, olhando a trajetória de qualquer artista, a gente entende melhor quem ele é à medida em que ele se coloca no mundo. Eu sinto que, em cada trabalho que eu faço, eu tenho que encontrar quais são as informações que você ainda não tem sobre mim e que eu quero comunicar. É sempre sobre comunicação, troca, compreensão”

Para Pethit, seu processo criativo é “muito intuitivo”, correlacionando ideias e fragmentos de inspirações que, futuramente, geram novos conceitos. Através de um livro dado por uma amiga, por exemplo, ele chegou à obra do fotógrafo alemão Herbert Licht (“fotos que refletem muito um momento idílico de corpo, juventude, sexo, liberdade, tesão, punção de vida”), o que ele uniu em sua cabeça às referências da mitologia grega que já queria trabalhar, inclusive sob o nome Mal dos Trópicos, e ele entendeu então quais decisões estéticas queria tomar.

“Eu sou muito imagético, faz parte da minha própria criação, ela já vem com imagens. Eu sou muito dado a essa coisa de símbolos, acho que todos os meus trabalhos têm isso. Símbolos e arquétipos, seja Pop Art ou mitologia, fazem muito parte da minha linguagem como pessoa, desde que eu era criança. Tive experiências na infância que foram muito duras. Tive contato com a morte, com a falta, com estar só, com o feio e com o abandono muito presentes, e [quando] muito novo, sobretudo uma relação com a morte de um jeito muito precoce, e eu claramente passei a usar a simbologia como a expressão de uma coisa que eu não podia compreender. Desenhando um símbolo, eu conseguia comunicar o que pra mim era incompreensível ainda. Eu só consegui andar adiante com o disco quando eu entendi que tinha o símbolo ali, a questão mitológica. Enquanto isso não estava claro pra mim, não sabia muito pra onde ir”

Colocar uma máscara é uma liberdade para ser quem você é. É uma dicotomia, mas aumenta nossa capacidade de se mostrar. Ela te dá uma proteção para que você se mostre. E eu claramente faço uso disso. Eu inconscientemente sei que estou fazendo isso o tempo inteiro. Eu sou muito reservado. Eu às vezes acho que eu não tenho nada a ver com aquilo que se projeta sobre mim (risos). Estar exposto no palco, para mim, é estar exposto com a máscara, estou protegido por essa entidade. Eu posso me expressar, gosto de estar exposto assim. Mas a minha verdadeira natureza é o oposto de tudo isso. Eu sou super reservado, sou super tímido, eu odeio festas, não gosto de ficar mostrando minha vida na Internet – se eu não fosse artista, não teria redes sociais. Eu preciso dessas máscaras para conseguir me expor. O que eu acho que é consciente é procurar as máscaras certas para certas mensagens ou momentos”

Toda essa coisa de amor mitológico me deu um clique”, conta ele, “eu estava um ano antes já pensando nesses assuntos que têm a ver com mitologia, com esse mal dos trópicos, que é uma força maior. Escrevi uma música, Rio, sobre desastres naturais que eu comando pela minha tristeza, Orfeu já era sobre um mito… vi que já estava criando material para aquela primeira ideia sem ter me dado conta”. “Eu tinha na cabeça algo muito trevoso e muito mais sombrio do que isso que eu fiz”, explica o músico, “não coincidentemente, o que eu mais gostei de ouvir em 2016 (quando começou a pensar o novo disco) foi Teto Preto, Mamba Negra, essa onda super distópica, pesadona. Eram coisas que estavam muito relacionadas com o que eu estava pensando, com um Brasil que deu errado, ou que é errado. 

ATO III – O ÉPICO TRÁGICO

“Meu país está em guerra
E as leis na minha terra
Nem um deus será capaz de mudar
Mas tudo aquilo que eu desejo
O mundo inteiro no teu beijo
É raso e só demais feito Narciso”

Esses versos de Teu Homem parecem sintetizar grande parte do conteúdo do álbum, como a busca pelo hedonismo como cura para o sofrimento. Mais do que isso, como é evidente, fica registrado para sempre como é se sentir no Brasil de 2016 até hoje.

Muita gente tem me perguntado sobre a política dentro do disco e se ele é político. Gente, até o escapismo é um reflexo político”, comenta ele, “tudo é um reflexo político, econômico e social. Todas essas máscaras, essas personas, esses discos refletem tudo isso, de algum jeito”. 

Ele diz que Mal dos Trópicos “é o meu primeiro disco em que estou de fato olhando para o Brasil, para um formato da música brasileira”, e chama de “angustiante” o momento quando, em 2016, sentia que havia muitas “coisas que a gente não queria dizer, coisas que a gente não queria acreditar e coisas que a gente sentia que não podia falar, porque, se dissesse, talvez piorasse (risos)”.

O desfecho de Mal dos Trópicos representa a síntese de sua ideia central. A entrega às punções dos bares da Consolação, em meio a todo esse mal estar civilizatório que acanha, ou nega, os desejos, é a solução que Pethit encontra para o nosso momento político – “a tragédia tem final, mas, antes, o Brasil precisa de Bacantes”. Conhecer o artista, seja em sua discografia, seja em seus shows ou mesmo em entrevistas, ajuda a entender o conteúdo espetacular (literalmente) com que ele trabalha, entendendo a função de seu trabalho não em criar modelos literais de vida, mas facilitar compreensões através de suas muitas alegorias – estejam elas no batom brilhante, na jaqueta de couro ou nas alegorias mitológicas.

“A arte não é sobre a realidade em si”, explica ele, “ficar o tempo todo atento ao que está acontecendo e tentar o tempo todo recriar a realidade é um pouco sobre isso. Arte é sempre uma interação com a realidade. E ela, a realidade, é inevitável”.

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ARTISTA: Thiago Pethit
MARCADORES: Entrevista, Novo álbum

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.